Sobrevivência demandará renovada empatia pela natureza

A humanidade enfrenta hoje um desafio inigualável a qualquer outro em nossa história: conseguir alcançar um equilíbrio com a natureza ao mesmo tempo em que continua a expandir as oportunidades econômicas para as bilhões de pessoas que ainda não experimentam um nível decente de vida no planeta. E enquanto encaramos essa prodigiosa tarefa, a esperança pode muito bem ser a mais importante commodity de todas. Para sobrepujar os nossos problemas não é o suficiente ter deles a noção.

Precisamos de uma real expectativa de como resolvê-los, bem como uma estratégia viável para fazê-lo. Voltar no tempo para encontrar o equilíbrio com a natureza dificilmente parece uma alternativa. Mas no limiar de um novo milênio o que significa seguir em frente? Assim como qualquer aeroplano, por exemplo, do ultra-leve ao Boeing 747, precisa se adequar igualmente às leis da aerodinâmica, da mesma forma qualquer sociedade durável precisa conviver em harmonia com a natureza. Em algum ponto os oceanos e a atmosfera precisarão ser estabilizados e as necessidades humanas terão que encontrar uma nova acomodação com as demais formas de vida terrestres.

Tecnologia menos poluente e menos dependente de recursos naturais pode ser a chave para uma sociedade que pretende passar na prova do tempo. Mas a ciência e a engenharia sozinhas não serão suficientes. Novos valores podem ser igualmente mercuriais para a nossa futura prosperidade, talvez até mesmo para nossa própria existência. Atender às necessidades materiais e energéticas do século XXI pode até ser uma das tarefas mais fáceis que enfrentaremos, já que o óleo e o carvão hodiernos poderão ser substituídos por geradores solares e turbinas eólicas localizadas em planícies e desertos remotos, mas esse não é nem de longe o nosso maior desafio.

Tal e qual o escritor Júlio Verne vislumbrou há mais de 100 anos, o hidrogênio pode ser extraído da água, utilizando-se eletricidade resultante do sol e do vento. Este combustível inteiramente não-poluente poderia então ser canalizado para as nossas cidades e indústrias. Empregado hoje para impulsionar foguetes e naves espaciais, o hidrogênio poderá um dia abastecer carros, casas e fábricas. Mesmo na Era da Informação nós ainda vivemos em um mundo material, e recuperar o equilíbrio — já em franca derrota — com a natureza, significará encontrar novas formas de fornecer as milhões de toneladas de metais, madeira, cimento e plásticos dos quais todos dependemos.

Atualmente depauperamos florestas inteiras e escancaramos o seio da terra para obter a maioria dessas matérias-primas. Deixamos para trás paisagens desoladas e pilhas de lixo tóxico, a poluir o subsolo, os oceanos e os lagos. O melhor caminho será fechar o círculo vicioso, através da reciclagem de todos os materiais que usamos e redesenhar tudo, desde jornais até prédios, de forma a minimizar os requerimentos materiais. Os programas europeus e norte-americanos de reciclagem urbana conseguiram, no espaço de apenas uma década, reduzir a quantidade de lixo doméstico em mais de 50% e algumas cidades já projetam 90%. Produtos como carros e computadores já vêm sendo produzidos para rápida e eficiente reutilização.

Algumas indústrias automobilísticas, por exemplo, estão fabricando uma nova geração de veículos que podem ser rapidamente desmantelados, com a grande maioria de seus componentes sendo utilizáveis em outros carros ou até em outros produtos. Eliminar virtualmente todo o lixo e reduzir grandemente a nossa dependência de materiais virgens já foi um sonho, mas hoje está se tornando uma meta prática e fundamental para a humanidade. O problema ainda reside na desigualdade econômica mundial, que vem recrudescendo nestes tempos de globalização.

E os países subdesenvolvidos e emergentes, que prosseguem inadvertidos, e a qualquer custo, sua subida na pirâmide da industrialização, como enfrentarão esses desafios ostentando sérias deficiências orçamentárias? Para isso, a raça humana terá que substituir a produção de plásticos e outros materiais derivados do petróleo. Uma idéia promissora é a chamada economia dos carboidratos — substituir os petroquímicos por materiais de origem biológica, que poderiam ser utilizados em tudo desde as folhas plásticas de embalagens de cozinha até carcaças de automóveis.

O Instituto de Auto-Dependência Local – Institute for Local Self-Reliance, nos Estados Unidos, acredita que uma fração dos milhões de toneladas de hastes de milho, palha de arroz e outros resíduos agrícolas gerados todos os anos no mundo, poderia muito bem substituir a grande maioria dos plásticos existentes. Uma das tarefas hercúleas adiante de nós será alimentar as mais de 8 bilhões de pessoas em meados do século XXI, que experimentará ainda a escassez de água potável. A biotecnologia certamente desempenhará um papel basilar em aumentar a produtividade de grãos e tornar as safras menos dependentes de água e mais resistentes às pestes, mas será preciso também engendrar uma radical mudança na dieta humana. Mais de um terço dos grãos do mundo atual se destinam a alimentar animais, que, por sua vez, produzem carne, ovos e laticínios, que fornecem à humanidade uma dieta rica em proteínas e gorduras, mas o processo de conversão é deficiente.

Se as classes mais abastadas consumissem menos carne, vivendo um pouco mais abaixo na cadeia alimentar, seria mais fácil prover uma dieta saudável para todos. O truque será desenvolver produtos vegetais saborosos e nutritivos, alguns dos quais possam ser indistinguíveis da carne. Claro que outro ponto fundamental de uma sociedade sustentável constitui alcançar-se uma melhor distribuição populacional entre o campo e as cidades. Novas políticas fundiárias serão necessárias para frear a expansão das áreas urbanas, que pavimentam milhares de quilômetros quadrados de terras rurais e selvagens todos os anos. Inevitavelmente as cidades subsistirão melhor se forem menos expansivas, com eficiente transporte coletivo e convenientes calçadas e ciclovias.

Para um pequeno trailer do futuro, podemos citar Curitiba, aqui mesmo no Brasil, onde um design urbano moderno e compacto e um dos melhores sistemas de transporte coletivo do mundo autoriza fácil deslocamento sem o uso de carros de passeio. E programas de governo bem planejados ajudaram Curitiba a reduzir a mendicância, a mortalidade infantil e a violência, para níveis substancialmente inferiores aos de outras capitais brasileiras. O futuro também está presente em Copenhague, na Dinamarca, onde bicicletas públicas gratuitas e 300km de ciclovias auxiliam os não-motoristas a se movimentarem.

A tecnologia da informação pode ajudar as pessoas a cumprirem seu trabalho deslocando-se menos e utilizando menos materiais. Empresas públicas e privadas de países emergentes vêm viabilizando serviços de televisão por satélite e telefonia celular a pequenas cidades e aldeias sem precisar estender milhares de quilômetros de fios de cobre e derrubar outras tantas árvores para servirem de postes. A teleconferência enseja a agilidade e a versatilidade nos negócios em nível mundial, permitindo reunir executivos e funcionários de empresas situadas em distantes continentes, sem gastar uma só gota de combustível de aviação, necessário ao seu deslocamento. Cada vez mais pessoas trabalham em suas próprias casas, utilizando-se dos modems para comunicarem-se com os seus centros de trabalho. As indústrias também podem ser transformadas.

Hoje, a maioria delas se baseia em extração, processamento e manufatura de matéria física, que consome recursos e combustível nesse processo, mas algumas companhias pioneiras estão desenvolvendo fábricas que reduzem drasticamente suas emissões, através da utilização de efluentes de um processo industrial como matéria-prima para outro. Na Dinamarca, já há mais de uma dúzia dessas indústrias, chamadas de simbióticas.

Cinzas da chaminé de uma termoelétrica são usadas na fabricação de cimento, enquanto os resíduos da criação de trutas e fábricas de medicamentos são empregados como fertilizantes. O maior desafio, contudo, reside dentro de nós mesmos. Os dramáticos avanços econômicos dos dois séculos passados foram alimentados, em parte, pela cultura do materialismo e o crescimento acelerado parece ser uma meta universalmente aceita.

Mas, como afirma o ativista ecológico Edward Abbey, “crescimento em nome do crescimento é a ideologia da célula cancerosa”. A expansão material indiscriminada e sem fronteiras destruirá a biosfera terrestre tanto quanto um tumor destrói o corpo humano. No futuro, a humanidade terá que privilegiar a qualidade do crescimento, não a quantidade. Mais software, serviços e idéias não terão o mesmo impacto ambiental que mais estradas, automóveis e prédios.

A nova era requer o desenvolvimento urgente de uma nova metodologia de pensamento, algo como “uma cultura de sobrevivência” — satisfazer as necessidades da geração atual sem colocar em risco as perspectivas da próxima. Acima de tudo, a sobrevivência demandará uma renovada empatia pela natureza. Nossos ancestrais podiam enxergar sua dependência do mundo natural diariamente. Eles viam as árvores, os animais, os rios e os mares como sagrados e os tratavam com respeito. Sem dúvida hoje em dia precisamos da volta desta reverência.

Nas palavras do biólogo Stephen Jay Gould, da Universidade de Harvard, “não poderemos vencer esta batalha para a salvação das espécies e ambientes sem forjar um pacto permanente entre nós e a natureza.” A não ser que sigamos este sério conselho, talvez não sejamos capazes de salvarmos a nós mesmos.

Nehemias Gueiros Jr é advogado especializado em Direito Autoral e CyberLaw, professor da Fundação Getúlio Vargas (RJ) e integrante do escritório Tostes & Associados.

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