"Será possível evitar que aumente a carga tributária do país?"

A polêmica que cerca a reforma tributária, hoje, é se veremos aumentar a carga tributária do país, que saltou dos 28% do PIB no início do governo FHC para mais de 36% no início do governo Lula. Especialistas afirmam que a reforma tributária em discussão, encorpada pelo lobby dos governadores, levará nossa carga tributária a ultrapassar a barreira dos 40% do PIB, apesar de o presidente da República e seus auxiliares diretos repetirem insistentemente que “não irá aumentar a carga tributária”.

A pergunta que fica no ar, ao se instalarem várias torneiras da derrama no projeto de reforma tributária, é se alguém irá fechá-las? Será possível evitar que aumente a carga tributária do país?

Alguns parlamentares e empresários até sugeriram limitar a carga tributária do país em um percentual certo, tal como se fez com os juros, na Constituição de 1988. Falou-se em um limite de 30% ou de 35% do PIB para a carga tributária do país. Atingido o limite não seria mais permitido cobrar impostos. Seria como que uma lei de responsabilidade tributária, ampliando a de responsabilidade fiscal.

Só que as coisas não funcionam assim. Os juros têm um limite constitucional de 12% ao ano desde 1988, mas nunca se observou tal limite no Brasil. Se a carga tributária for limitada na Constituição a 30% do PIB, por exemplo, como seria possível atender a esse limite?

A carga tributária do país representa a arrecadação total das três esferas de governo, federal, estadual e municipal, como um percentual do PIB. Ao colocar um limite certo e determinado, significaria isso, na prática, estancar a arrecadação de tributos municipais, estaduais e federais na época do ano em que se atingisse o limite fixado?

Se isso acontecesse em outubro, por exemplo, não se recolheriam mais impostos em novembro e dezembro? Ou então, mantidos os recolhimentos até o final do ano, mas ultrapassado o limite da carga tributária, os governos restituiriam o excesso aos contribuintes no ano seguinte?Claramente, colocar um limite máximo de carga tributária na Constituição não é a melhor solução.

Neste ponto é necessário desfazer uma confusão comum quando se discute a reforma tributária do país e o peso que as alterações dos impostos, taxas e contribuições têm sobre a carga tributária. A confusão é tratar como um coisa só a carga tributária do país e a carga tributária individual do cidadão, da empresa.

Quando se fala de carga tributária, há que compreendê-la em suas duas dimensões, bastante distintas e com mecanismos de funcionamento diferentes. Uma, aquela a que normalmente todos se referem e que povoam as estatísticas, é a carga tributária do país como um todo, medida pela arrecadação total das três esferas de governo como uma percentagem do PIB. A outra, simplesmente ignorada pela maioria dos políticos e dos analistas, ignorada pelas estatísticas, é a carga individual de tributos que pesa sobre cada um de nós, a carga tributária da empresa, a carga do cidadão.

A carga tributária do país chegou a pouco mais de 36% do PIB em 2002, pouco mais do que um terço de toda a riqueza produzida por ano no país, que foi transferida aos cofres dos governos como tributo. Impossível aplicar à carga tributária individual do cidadão, da empresa, o mesmo conceito aplicado à carga tributária do país. Não é possível afirmar que 36% do que o cidadão produz vai para o governo como tributo. Disso resultaria que cada indivíduo teria que trabalhar dois dias e meio por semana para o governo e só os outros quatro dias e meio seriam para si mesmo, aí incluídos o sábado e domingo (ufa!). Se pensarmos num ano inteiro, o indivíduo deveria trabalhar mais de quatro meses para o governo e só o restante do ano seria para si mesmo e sua família, inclusive as férias…

Claramente não é assim que a carga tributária individual do cidadão ou da empresa deve ser medida. Essa medição é muito mais complexa e tem que ser muito mais segmentada. O cidadão que paga imposto está sujeito a qual deles, para começar? Aos de renda? Aos de consumo? Aos de patrimônio? E quanto cada um desses impostos consome de sua riqueza produzida em cada ano? Quando o cidadão se organiza em empresa, em pessoa jurídica, a quais impostos sua empresa estará sujeita? Qual a carga tributária dessa empresa?

Claramente, o cálculo da carga tributária do cidadão não pode ser feito como uma fração da carga tributária do país. O que sai do bolso de cada um é muito mais sensível, para cada cidadão, para cada empresa, do que uma simples estatística macroeconômica adotada para medir a carga tributária do país todo. A soma das partes muitas vezes não dá o todo. Em se tratando de carga tributária, o todo não reflete nem de perto o que se passa em cada uma das partes. Como fazer, então?

Primeiro, a carga está concentrada em apenas uma parte do país, aquela parte formal, organizada, que paga imposto. Dizem que mais de 50% do país está fora disso. Boa parte está à margem da cidadania tributária, é informal, sonega ou se esconde dos impostos. Depois, quando paga, a maioria não sabe quanto imposto paga, nem sabe as muitas vezes que paga, pois o imposto vem embutido no preço das coisas que compra.

As empresas repassam seus impostos a seus sócios, seus empregados, seus clientes, seus consumidores. E tem mais. Cada cidadão, cada empresa está sujeita a impostos diferentes, a cargas tributárias diferentes, seja por diferentes capacidades contributivas — em alguns impostos os que ganham mais pagam mais e os que ganham menos, menos —, seja por ramos diferentes de atividade – as indústrias de cigarro ou de bebidas pagam mais impostos do que as de alimentos.

Qual a carga tributária que onera o cidadão, a empresa, os indivíduos, essa que ninguém suporta mais? Esse é o estudo que deveria ser feito para um reforma tributária substantiva, para desonerar a produção, o cidadão, para isentar os produtos e serviços de primeira necessidade, para diminuir a carga tributária do cidadão e para aumentar a carga tributária do país.

Tributos de melhor qualidade, maior justiça na distribuição da carga tributária, mais cidadãos pagando menos impostos, promovendo a inclusão tributária dos marginais e permitindo que todos exercitem, com dignidade cívica, esta parte da cidadania que é pagar impostos, que é contribuir com a sua pequena parte para a construção da sociedade, que é de todos e de cada um. Não um mero 36%, mas uma unidade singular e contribuinte para a construção do todo. Esse o estudo a ser feito.

Roberto Pasqualin é advogado em São Paulo

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