Prisão não deve ser recomendada para usuários de drogas

Luiz Flávio Gomes*

A legislação sobre drogas no Brasil achava-se concentrada (basicamente) na Lei 6.368/76, que era (e é, em certo sentido) fiel retrato da política norte-americana sobre o assunto, que revela cunho claramente repressivo. Em fevereiro do corrente ano (2002) entrou em vigor no nosso país a Lei 10.409/02, que pretendia disciplinar inteiramente a matéria. Em virtude de sua extraordinariamente paupérrima qualidade técnica, apesar de o Parlamento ter demorado onze anos para sua elaboração, um terço dela foi vetado pelo Presidente da República.

Conclusão: as duas leis citadas acham-se no momento em vigor (cada uma disciplinando uma parte do tema). Nossa legislação, como se vê, virou uma colcha de retalhos (para mais detales cf. www.ielf.com.br). A insegurança que se produziu é enorme. Por sinal, os juízes que não estão seguindo a lei nova (10.409/02) podem estar dando ensejo à nulidade de todos os processos. Veremos o que os Tribunais superiores (STJ e STF) decidirão. Desde logo, digo que se (ainda) fosse juiz, estaria respeitando o procedimento novo (que é muito mais racional).

Com o objetivo de consolidar (num só diploma legislativo) os textos legais mencionados, o governo encaminhou ao Congresso Nacional novo projeto de lei (6.108/02). Mas no Senado foi aprovado um substitutivo (PL 115/02).

Criam-se novos delitos (financiamento do tráfico, por exemplo), incrementam-se as penas do tráfico de entorpecentes (mínimo de oito anos), regulamenta-se como crime de média gravidade a cessão esporádica e sem fins lucrativos de drogas, desde que entre adultos, e confere-se tratamento jurídico especial ao usuário (que deixa, em princípio, de ser tratado como criminoso).

Em princípio (dissemos) porque, por via indireta, ainda se prevê pena de prisão ao usuário. É o seguinte: como regra serão aplicadas contra ele medidas alternativas (prestação de serviços à comunidade, restrição de direitos etc.). Mas se descumpridas essas medidas, pode haver conversão em prisão. Isso é absurdo, na medida em que hoje de modo algum ninguém mais recomenda a prisão para usuário. Como se vê, é preciso rever esse ponto do projeto de lei em andamento.

A tendência mundial mais sensata, no momento, é não considerar o usuário como criminoso. A criminalização do porte de drogas para uso pessoal vem senso refutada por todos os seguimentos acadêmicos e científicos avançados do planeta. As legislações mais atualizadas (Espanha, Portugal, Suiça etc.) excluíram o usuário do âmbito penal. Já não há espaço, dentro de uma política de redução de danos e de riscos (que é a política européia, oposta à norte-americana), para a falida linha da “War on Drugs” (Guerra às Drogas).

Outro equívoco que já está começando a ganhar corpo entre nós consiste na chamada Justiça Terapêutica (também de linhagem americana). Pretende-se que todos os usuários sejam submetidos a tratamento. Isso constitui erro clamoroso. É preciso distinguir o usuário dependente do não dependente. O mero experimentador ou ocasional usuário não tem que se submeter a nenhum tratamento, porque dele não necessita. O tratamento não pode nunca ser visto como uma “pena” ou um “castigo”. É apenas uma oferta para recuperar o dependente.

Cabe recordar que nenhum tratamento pode ser imposto (obrigatório). Aliás, tratamento compulsório está fadado a não produzir nenhum resultado positivo. Todo tratamento só tem chance de prosperar quando há efetiva (e ativa) participação do paciente. E mesmo assim, quando bem individualizado. Remarque-se, de outro lado, que a denominada Justiça terapêutica necessita de estrutura, de profissionais capacitados e, sobretudo, de muito investimento.

“Ninguém caminha para o futuro andando para trás” (Joseph Herfesheimer). O mais sensato e responsável, em suma, no assunto drogas, consiste na adoção de uma política claramente preventiva. Educação antes de tudo. E que os pais e professores, dentre tantos outros, assumam sua responsabilidade de orientação e conscientização.

A pior postura (leia-se: a mais desastrada decisão) consiste em confiar que o Direito penal possa resolver qualquer coisa relacionada com as drogas. Se você não cuida do seu filho, não espere que o Direito Penal faça isso por você e muito menos que essa tarefa seja desempenhada por autoridades policiais, que não contam com o mínimo preparo para cuidar de quem necessita de atenção, educação, não de prisão.

Descriminalizar a posse para uso próprio é mais do que urgente. A política de mera despenalização (que transformou esse fato em crime de menor potencial ofensivo) era necessária, mas não foi suficiente. Isso não significa legalizar as drogas, senão adotar uma política educativa responsável (retirando-a, na medida do possível, do Direito penal). Nossos legisladores já sinalizaram positivamente com esse caminho. É preciso esgotá-lo até suas últimas possibilidades. Aliás, é a única via racional nessa questão, tão repleta de irracionalidades.

Revista Consultor Jurídico.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, diretor-presidente do IELF – Instituto de Ensino Jurídico (www.ielf.com.br) e autor do curso de DP pela Internet (www.iusnet.com.br)

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