O Direito na era da tecnologia dos softwares

Fabiana Nunes Correia *

“A adaptação é a grande lei da vida, e do mundo não-vivo. São condições exteriores e interiores que tornam necessárias as adaptações, sem as quais não se estabeleceria um modus vivendi e desapareceriam os seres”. (Pontes de Miranda).

Muito conhecida é a polêmica filosófica acerca das possibilidades de problematização teórica do Direito, ponto de partida primário ao seu manejo consciente. E, embora as divergências assumam múltiplas facetas, de certa forma a questão tende a se inclinar entre dois pólos: aqueles que, na esteira de Hans Kelsen, com sua “Teoria Pura”, enxergam o direito em uma dimensão fechada, reduzida à norma, e, de outro lado, aqueles que pretendem compreender o universo jurídico em uma dimensão fenomênica, pluridimensional, a exemplo do que faz Miguel Reale, ao vislumbrar uma relação dinâmica entre fato, valor e norma.

As possibilidades concretas dessa polêmica abstrata vêm à tona com a tomada de consciência acerca da perceptível aceleração das transformações que presidem a realidade contemporânea. As questões e problemas emergentes desse contexto impõem à ordem jurídica um papel fundamental: prever, evitar e solucionar conflitos, justo quando a sua complexidade tende a se intensificar. Não vivemos apenas em uma economia de escala; vivemos em uma sociedade de escala, de escala global.

O impacto da introdução, adoção e difusão das questões afeitas às tecnologias da informação no campo do Direito tem ofertado implicações profundas. Implicações em escala global.

Nos primeiros dias “de vida” do computador, as necessidades jurídicas foram satisfeitas pela adaptação das normas existentes e pela criação de soluções legislativas ad hoc. Mas, com a tecnologia da informação ultrapassando o status de “novidade”, tornando-se cada vez mais integrada e presente no cotidiano das sociedades, tais “arranjos” tornaram-se insatisfatórios.

Como se sabe, os programas de computador vêem sendo produzidos em larga escala, ocupando posição de destaque na chamada “indústria da informática”, responsáveis que são pela efetiva geração de renda e postos de trabalho. Todavia, em contraste com essa expressiva importância conquistada pelos softwares na economia mundial, tem prevalecido uma induvidosa confusão conceitual sobre a sua natureza técnica e jurídica e, conseqüentemente, imprecisões que obstaculizam a solução de conflitos.

Uma das repercussões dessa problemática pode ser identificada no tratamento jurídico conferido à tributação dos softwares no Brasil.

Ao conceituar o software como “(…) a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnicas digital ou analógica, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados”, a Lei 9.697/98 não contempla a definição clara quanto à sua natureza jurídica para fins de tributação. Afinal, seria: serviço, serviço de comunicação ou mercadoria?

Há uma inclinação, à luz de uma interpretação técnica da Lei 9.697/98, para se tratar o programa de computador como o resultado de um serviço, o que acarretaria a possibilidade de sua tributação pelos municípios, por intermédio do ISS. Ocorre que a norma complementar básica do ISS, contida no Decreto Lei nº406/68, não elenca o software no rol dos serviços tributáveis. De outro lado, os 27 Estados falidos brasileiros, enxergando a possibilidade de engordar seus caixas com os recursos extras do “boom” da revolução tecnológica, têm forçado o entendimento de que o software é mercadoria e, portanto, tributável pelo ICMS.

O Superior Tribunal de Justiça tem recepcionado a celeuma com uma visão “salomônica”, compreendendo os programas de computador em duas categorias: o software personalizado, gerado de uma solicitação específica, o que configuraria uma prestação de serviço e, paralelamente, o “software de prateleira”, produzidos em escala padronizada e colocados no mercado como se fossem mercadorias. Assim, Estados e Municípios pretensamente contemplados.

Ocorre que a inteligente distinção construída pelo STJ é notoriamente provisória, além de criticável tecnicamente (pelo menos assim dizem os iniciados em tecnologia da informação). Os softwares personalizados, se bem aceitos, certamente serão produzidos em grande quantidade e, segundo os conceitos elaborados pelos nossos tribunais superiores, transformar-se-iam em softwares de prateleira, criando uma sui generis confusão conceitual, sobretudo quando se pretenda averiguar qual será o exato momento da transformação, para efeito de determinação das conseqüências jurídicas.

Na realidade, essa indefinição ultrapassa os limites das fronteiras geográficas brasileiras, ocupando lugar de destaque nas discussões relativas à tributação da tecnologia da informação.

Os EUA, líderes mundiais da “nova economia”, até hoje sustentam que o software (de prateleira ou personalizado) é produto tributado por seu “Sales Tax”, enquanto que os europeus defendem tratar-se do resultado de uma prestação de serviço.

A exemplo do que acontece no Brasil, os antagônicos posicionamentos também têm a sua razão de ser: a maximização de recursos públicos. Os EUA não tributam nem serviços, nem mercadorias a nível federal, haja vista a base da arrecadação da União ser sustentada pelo seu Imposto de Renda (“Income Tax”). Por sua vez, os Estados norte-americanos tributam a venda de suas mercadorias pelo “Sales Tax”, sendo para eles fundamental a consideração dos softwares como tal. A Comunidade Européia, que tributa tanto produtos quanto serviços mediante o “IVA”, utiliza o conceito de serviço para definição do Estado competente para a tributação, vale dizer, aquele do local onde ocorrer a efetiva prestação.

A rede mundial de computadores impõe uma base de informações comum a todo o planeta, gerando uma nova e diversificada dimensão de demandas; demandas que possuem uma identidade própria, não estando condicionadas a uma cultura geograficamente definida, mas sim à cultura uniforme, toda ela sedimentada num fenômeno global: a cultura da informática.

Nesse sentido, é incontestável a tendência de unificação dos distintos conceitos elaborados pelos Estados Unidos e pela Europa, afinal de contas, “bits” de informações são negociados mundialmente e a todo instante.

Enquanto a reunião das distintas definições acerca dos softwares não ocorre, o STJ tem optado por ratificar o tão propagado “jeitinho brasileiro”, acomodando diplomaticamente as demandas na confortável posição “em cima do muro”, aceitando o pensamento norte-americano, mas sem contrariar também, em sua totalidade, o entendimento europeu.

Começamos com uma polêmica não resolvida, terminemos com ela. A revolução da tecnologia da informação está provocando rupturas também no mundo do direito, rupturas com modelos arcaicos e unilaterais de compreensão filosófica do universo jurídico. A curto, médio ou longo prazo, a universalização do acesso às informações inevitavelmente aproximará a necessidade de convivência com as diferenças, de soluções conciliatórias, inclusive no que toca à esfera de atuação do direito: o controle social.

Nesse momento, que talvez esteja mais próximo do que longe, a questão fundamental não mais será saber se o direito é fato, valor ou norma – ou tudo isso conjugado; a questão fundamental será identificar as possibilidades de assegurar a sua instrumentalidade em um mundo presidido pela apressada cultura de massa, de escala. O direito escrito, positivado, já nasce atrasado. Qualquer opção passará pela tecnologia dos softwares, mas acabará em um direito diferente.

Revista Consultor Jurídico

Fabiana Nunes Correia é graduanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e estagiária do contencioso tributário de Martorelli Advogados em Recife/PE.

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