Vias de fato prescinde de representação

Antonio Simini Júnior

Vêm sendo esposado por alguns, entedimento de que a contravenção de vias de fato [artigo 21, LCP] é de ação penal pública condicionada a representação, tendo em conta que se o legislador a exigiu para delito mais grave [lesões corporais], com maior razão o instituto deveria ser aplicado ao delito menos grave.

Data venia, tal entendimento se mostra equivocado à luz de uma interpretação sistemática dos textos das leis.

Primeiro, porque a lei 9.099/95 não exige representação para início da persecução penal, em relação à contravenção de vias de fato. Dessa forma, não pode o Poder Judiciário avocar para si função legiferante e criar obstáculos para propositura da ação penal, uma vez que não foi esta a opção do legislador.

A título de argumentação, nosso ordenamento jurídico oferece uma dezena de exemplos comprovando que, para algumas infrações mais gravosas, ou se atribui ao ofendido o direito de iniciar a instância penal ou se condicionou a ação a sua prévia anuência.

Segundo, porque tal interpretação contraria frontalmente nossa legislação. Diz o artigo 101, § 1°, do Código Penal que: “A ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido ou requisição do Ministro da Justiça”.

Por seu turno, estabelece o artigo 24, caput, do Código de Processo Penal que: “Nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público, mas dependerá, quando a lei o exigir, de requisição do Ministro da Justiça ou de representação do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo”.

Da análise desses dois dispositivos, conclui-se que os casos em que o legislador exige representação, como condição de procedibilidade da ação penal, deverá constar expressamente de lei.

Outra não é a lição de DAMÁSIO E. DE JESUS [DIREITO PENAL, 1° VOLUME, PARTE GERAL, EDITORA SARAIVA, 1991, P. 576]: “Quando o CP, na Parte Especial, após descrever o delito, silenciar a respeito da ação penal, será pública incondicionada (…) Quando o CP, ou lei extravagante, após definir o delito, se referir a ação penal, então ela não será pública incondicionada, mas pública condicionada ou exclusivamente privada”.

Dessa forma, não existe ação penal pública condicionada a representação por vontade manifesta do julgador.

Este também o entendimento do eminente juiz Ricardo Dip, proferido em julgamento pioneiro pela Décima Primeira Câmara do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, nos autos do Recurso em Sentido Estrito nº 1.082.673/7, da Comarca de Nuporanga, datado de 30 de janeiro de 1998, cuja ementa passo a transcrever: “Ementa: Vias de fato. Sentença que, com invocação analógica do art.88, Lei n. 9.099, de 1995, julga extinta a punibilidade, em face de decadência por míngua de representação tempestiva. Recurso do Ministério do Público. Provimento: o argumento a maiore ad minus supõe que os dados fundamentais de congruência não sejam afetados por uma dissemelhança vultosa o bastante a infirmar a similaridade de base. Os argumentos de analogia só podem ser esgrimidos na suposição da lacunaridade legislativa. Se, ao reverso, não há lacuna, mas remissão a uma regra genérica (art. 100, Cód. Pen.), que atua como verdadeiro princípio, deve entender-se que não cabe extensão ou restrição analógica, mas simples declaração do significado regulativo, i.e., na linguagem dos lógicos, considerar a norma sob a óptica de uma especificação do sentido da lei”. Contudo, se o assim fizer o julgador, estará produzindo insegurança na aplicação do direito [cf. RJTACRIM 30/228, RJTACRIM 30/228, RJTACRIM 37/520, RJTACRIM 37/531].

Ademais, o fato de ser o delito de vias de fato menos grave que o de lesão corporal leve, também não dá ensejo a representação. Do contrário, em prevalecendo esse entendimento, deveríamos passar a exigir a representação para outros delitos previstos no Código Penal, v.g., os de perigo para a vida ou a saúde de outrem (artigo 132), maus-tratos (artigo 136), rixa (artigo 137), constrangimento ilegal (artigo 146), todos de menor ou igual gravidade ao de lesões corporais e que, necessariamente, implicam no uso de violência à pessoa Esta também a lição de Júlio Fabrini Mirabete.

Além disso, os bens jurídicos tutelados são distintos. Nas vias de fato o bem jurídico é mais amplo, porquanto protege a incolumidade pessoal, visando prevenir o advento tanto de lesões simples, como de vulnerações mais intensas como, por exemplo, lesões graves, lesões gravíssimas e, com certeza, a morte.

Ora, diante do exposto, fica claro a inviabilidade da representação do ofendido no delito de vias de fato.

Por outro lado, impor a necessidade de representação onde não prevista pela norma, é incorrer em flagrante inconstitucionalidade, na medida em que se estaria criando um obstáculo ao exercício, pelo Ministério Público, do jus persequendi assegurado pelo artigo 129, inciso I, da Carta Magna.

Finalmente, “deve-se ter presente que a seleção dos bens jurídicos tuteláveis pelo Direito Penal e os critérios a serem utilizados nessa seleção constituem atribuição do Poder Legislativo, sendo vedado aos intérpretes e aplicadores do direito essa função, privativa daquele poder Institucional. Agir diferentemente constituirá violação dos sagrados princípios constitucionais da reserva legal e da independência dos Poderes”.[CÉSAR ROBERTO BITENCOURT, IN LIÇÕES DE DIREITO PENAL, PARTE GERAL, EDITORA LIVRARIA DOS ADVOGADOS, 1995, 3ª EDIÇÃO REVISTA E AMPLIADA, P. 40] Em outras palavras, é o legislador que deve traçar os limites do desvalor da ação, do desvalor do resultado e, a partir daí, estabelecer as sanções e os procedimentos adequados.

Antonio Simini Júnior é Promotor de Justiça de Dracena – SP.

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