Taxação dos inativos – do racional ao irracional

A história demonstra que a vida em sociedade e seus sistemas jurídicos sofreram uma série de importantes e profundas transformações, aparentemente lentas e progressivas, na formulação de direitos que conduziram a uma verdadeira revolução na nossa concepção jurídica, política, econômica e social.

Essas transformações dos sistemas jurídicos possibilitaram a passagem de um sistema irracional para um sistema racional de direito: o arbítrio deu lugar à justiça e à legalidade, a anarquia do regime feudal foi substituída pelo reforço do poder de certos reis e senhores, a economia fechada cedeu para a economia de troca, o costume foi suplantado pela lei1.

Do mesmo modo, a realidade concreta da vida possibilita-nos reconhecer que muitos daqueles sistemas jurídicos, sem prejuízo de sua simultânea abertura material e estabilidade2, estão tomando forma novamente: estamos na contramão da história e da própria lógica na evolução da vida em sociedade, passando de um sistema racional para um sistema irracional de direito. Ao menos é essa a conclusão a que chegamos após análise crítica de situação vivenciada pelos servidores públicos estaduais inativos (aposentados ou pensionistas) concernente à contribuição previdenciária.

No que diz respeito ao regime previdenciário dos servidores públicos do Estado do Rio Grande do Sul, em muito similar ao dos demais entes federados, é sabido que a condição jurídica de servidor público estadual sujeita referido servidor a contribuições sobre seus vencimentos/proventos, visando contribuir com o regime de previdência a que pertence, compreendidos os benefícios previdenciários e de assistência à saúde.

Em objetiva análise tem-se o seguinte: até o mês de junho do ano de 2004 o servidor contribuía com 9% ao mês, conforme a Lei n. 7.672/82; de novembro de 1995 a maio de 2000 o servidor contribuiu com 2% ao mês, conforme a Lei Complementar n. 10.588/95, contribuição esta excluída por força da Lei Complementar n. 11.476/2000; e a partir de julho de 2004 contribui o servidor com 11% e mais 3,1%3 mensais, de acordo com as Leis Complementares n. 12.065/2004, 12.066/2004 e 12.134/2004.

Ocorre que, com a inatividade do servidor público, ou mesmo ao tempo em que preenche as condições necessárias para a inatividade, de acordo com a Emenda Constitucional n. 20/98, cessa para este servidor a contribuição previdenciária obrigatória que visa custear a seguridade social, vale dizer, não deverá mais ter descontados de seus proventos o percentual de 5,4% (Lei n. 7.672/82) e 2% (Lei n. 10.588/95).

Malgrado a disciplina legal4 e a posição do Judiciário5, nosso Estado, durante praticamente todo o período que compreendeu o mês de dezembro de 1998 ao mês de junho de 20046, fez incidir contribuição previdenciária sobre os proventos dos inativos (5,4% e 3,6%7, Lei n. 7.672/82, e 2%, Lei n. 10.588/95): segundo informações veiculadas pelo jornal Zero Hora em 28-5-2004, p. 20, atualmente 99,6 mil inativos contribuem para a previdência, todos os meses, com 5,4% sobre seus proventos, sendo que 15,5 mil inativos estão isentos da referida contribuição por força de ordem judicial.

Cumpre esclarecer, a bem da verdade, que a contribuição previdenciária complementar exigida por força da Lei Complementar n. 10.588/95, em percentual correspondente a 2% dos proventos líquidos que percebe o servidor inativo, em data de 3 de maio de 2000, por força da Lei Complementar n. 11.476, teve sua incidência sobre os inativos afastada, conforme modificação operada no art. 1o da Lei Complementar n. 10.588/95, em que pese a cobrança tenha sido efetivada pelo Estado do Rio Grande do Sul por alguns meses posteriores.

Ainda que a Emenda Constitucional n. 41/2003, expressão do Poder Constituinte Reformador, juridicamente limitado, tenha instituído de modo compulsório a esses mesmos servidores o dever de contribuírem mensalmente para a previdência, e independentemente da solução adotada pelo STF no julgamento das ADIs 3.105 e 3.1288, que questionaram a mencionada exigência da contribuição previdenciária dos servidores que antes da EC 41/2003 já eram inativos, o fato é que a contribuição previdenciária cobrada compulsoriamente dos inativos sob o regime jurídico da EC 20/989 não poderia ter sido exigida dos servidores jubilados antes da EC 41/2003. Essa afirmação é de fácil e lógica constatação, afora as inúmeras decisões judiciais que sufragam esta posição e a verificação de que estavam esses servidores submetidos a regime jurídico que os isentava de contribuição previdenciária, ante a razão de ser de toda discussão jurídica travada no STF por força das ADIns 3.105 e 3.128: afinal, o reconhecimento do direito à isenção de contribuição previdenciária sob a égide da EC 20/98, norma de eficácia plena, não é objeto de controvérsia, e sim se a eficácia – jurídica e social – da EC 41/2003 alcançaria os servidores que já haviam adquirido a inatividade antes de sua existência e vigência. Não fosse assim, não teríamos cogitado sobre a atual taxação dos inativos no STF.

Resta sabermos, então, fiéis ao princípio da legalidade e, é claro, não descurando do fato de que o direito deva ser justo, razoável, solidário e igualitário, qual a razão da exigência mensal da contribuição previdenciária dos inativos no período de dezembro de 1998 a junho de 2004, bem como os motivos que levaram os que se beneficiaram de noticiadas contribuições a não repeti-las voluntariamente aos servidores inativos.

Estaríamos retornando ao sistema irracional de direito, em que a arbitrariedade prevalece sobre a lei, em que o acatamento da administração ao direito e à lei deixou de ser regra de observância permanente e obrigatória, desvirtuando-se a gestão dos negócios públicos e os fundamentos da ação administrativa?

Notas:

[1] Cf. JOHN GILISSEN, Introdução Histórica ao Direito, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.

[2] Cf. INGO WOLFGANG SARLET, A eficácia dos Direitos Fundamentais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003

[3] Em recente decisão, monocrática, proferida em 13 de agosto de 2004, o ilustre Desembargador do TJRS Henrique Osvaldo Poeta Roenick assim se posicionou quando do julgamento do Agravo de Instrumento n. 70009459694:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. CONTRIBUIÇÃO ASSISTENCIAL À SAÚDE INSTITUÍDA PELA LEI COMPLEMENTAR N. 12.066/04. ILEGALIDADE DO DESCONTO POR AUSÊNCIA DE COMPULSORIEDADE FACE À NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL.

Sendo a assistência à saúde apenas um dos pilares da seguridade social e não tendo ela o caráter da solidariedade que tem a previdência social, não se pode entender que o plano de saúde disponibilizado pelo Estado do Rio Grande do Sul tenha o caráter contributivo-compulsório. Aderem a tal plano os servidores (ativos e inativos) e pensionistas que assim entenderem, sendo perfeitamente lícito aos demais a não-adesão e, por isso, nestas circunstâncias, indevido o desconto respectivo. Como conseqüência, não têm eles qualquer direito aos benefícios correspondentes. Princípio da liberdade negativa de associação, previsto no art. 5º, XX, da CF/88. Não-obrigatoriedade da contribuição que vai declarada. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO LIMINARMENTE”.

Mais recentemente, a 1.ª Câmara Cível do TJRS, por ocasião do julgamento do recurso de Agravo de Instrumento n. 70009292608, à unanimidade reconhecendo a facultatividade na contribuição ao IPE-Saúde, por maioria manifestou que os 3,1% deverão ser deduzidos dos 11%, e não adicionados, percentual este considerado como o balizador para as contribuições previdenciárias.

[4] Cf. EC 20/98.

[5] Cf. STF, ADIn 2010-2, ADIn 2049-8, ADIn 2.087-1, ADIn 2197-4, ADIn 2189-3.

[6] A partir de julho de 2004 o Estado do Rio Grande do Sul, por força da Lei Complementar n.12.065, de 29-03-2004, em vigor noventa dias após a data de sua publicação, atendendo à nova disciplina trazida pela EC n. 41/2003, dispôs sobre as contribuições mensais de 11% para o Regime Próprio de Previdência Social que incidirão sobre os salários de contribuição dos servidores ativos e inativos.

[7] A rubrica de 3,6%, em vigência até o mês de junho de 2004 por força da Lei n. 7.672/82, porquanto destinada à assistência à saúde, embora sem caráter compulsório, era exigida de todos os servidores, ativos, ou inativos, tão-somente sendo excluída, através de ordem judicial, a contribuição previdenciária correspondente a 5,4% (Lei n. 7.672/82) e 2% (Lei n. 10.588/95).

[8] Como sabido, o STF, por 7 votos a 4, reconheceu a constitucionalidade da taxação dos inativos disciplinada pela EC 41/2003.

[9] Vale dizer: para os servidores públicos inativos do Estado do Rio Grande do Sul, até o mês de junho de 2004, à luz da Lei Complementar n. 12.065/04.

* Danilo Alejandro Mognoni Costalunga
Mestrando em Direito pela PUCRS, Especialista em Direito Processual Civil, Professor de Direito no UniRitter, membro efetivo do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual) e Advogado.

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