Responsabilidade civil por danos ambientais

Luiz Cláudio Carvalho de Almeida

Sumário
1) Introdução

2) Da Responsabilidade Civil por Danos Ambientais. Peculiaridades em Relação à Doutrina Clássica

3) Da Previsão Legislativa

4) O Meio Ambiente como Bem de Uso Comum

5) Do Dano

6) Do Nexo Causal

7) Da Caracterização do Dano. Propostas.

8) Conclusão

9) Bibliografia

1) Introdução
Muitos são os institutos do que tradicionalmente se convencionou chamar direito privado que estão passando por uma crise de identidade.

O direito privado, por si só, não pode ser analisado da mesma forma como era visto à época da edição do Código de Napoleão.

A idéia de código pretende, de modo exaustivo, a sistematização da ordem jurídica reguladora das relações entre particulares.

A evolução histórica provou o equívoco de tal pretensão, na medida em que diversas situações fáticas não encontraram previsão no texto de lei.

Como solução ao problema do surgimento de fatos juridicamente relevantes não previstos no código, foram sendo editadas leis esparsas que os regulassem.

Todavia, a multiplicidade e riqueza da vida em sociedade fez com que as leis extraordinárias se multiplicassem formando ao redor do código, que nasceu para ser único, uma plêiade de atos normativos reguladores de fatos jurídicos não previstos originariamente.

Tais legislações esparsas, muitas vezes, não se limitaram apenas a regular aspectos não previstos pelo código, tornando-se verdadeiros estatutos de áreas do conhecimento jurídico. Retirava-se, assim, do código a condição de ato normativo básico do ordenamento jurídico das relações privadas.

Se, ainda que em convivência com a legislação ordinária, o código civil sempre foi o diploma básico, sistematizador do ordenamento privado, com o advento dos estatutos – assim entendida a legislação extravagante que esgota em seu conteúdo determinadas áreas do conhecimento jurídico, com a pretensão da criação de um sistema próprio – o código civil perde definitivamente sua condição de diploma centralizador do ordenamento jurídico privado.

Assim é, por exemplo, em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/90) e ao Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/90), diplomas legais que regulamentam uma parcela das relações de direito privado, obedecendo a princípios próprios, muitos dos quais conflitantes com que determinava o Código Civil brasileiro.

Sobre o tema, de grande valia a lição de Gustavo Tepedino[1] : “Tais diplomas não se circunscrevem a tratar do direito substantivo mas, no que tange ao setor temático de incidência, introduzem dispositivos processuais, não raro instituem tipos penais, veiculam normas de direito administrativo e estabelecem, inclusive, princípios interpretativos. Fixam, assim, verdadeiro arcabouço normativo para inteiros setores retirados do Código Civil. Não se tem aqui, do ponto de vista técnico, uma relação de gênero e espécie, ou de direito comum e especial, senão a subtração verdadeira e própria de institutos”.

Nesse contexto, surge a necessidade de se reorganizar todo o sistema jurídico no que tange às relações de direito privado.

Soaria como um contra-senso, principalmente em uma área do conhecimento humano que possui a pretensão de ciência, adotar-se em sua regulamentação atos normativos com princípios próprios e aptos a normatizar apenas segmentos do objeto maior representado pelas relações jurídicas de direito privado.

Todo sistema não prescinde de princípios vetores de seus componentes.

Para que se possa vislumbrar o direito privado como um sistema, cujos componentes tenham um mínimo de identidade, imprescindível a identificação de seus princípios regentes.

Como consectário de tudo o que foi exposto, o Código Civil não possui mais esse poder, tendo em vista os vários estatutos que surgiram a seu largo.

Hodiernamente, cabe à Constituição Federal tal função.

Situada no ápice do sistema normativo, é nela que serão buscados os princípios que darão coerência ao ordenamento.

A função antes exercida pelo Código Civil, que se propunha a ser a constituição do direito privado, transferiu-se para a Lei Maior, donde se extrairão os princípios vetores das relações de direito privado.

E é nesse contexto que deve ser analisada também o tema ora proposto.

2) Da Responsabilidade Civil por Danos Ambientais. Peculiaridades em Relação à Doutrina Clássica
A responsabilidade civil por danos ambientais tem encontrado grande dificuldade de entendimento tanto por parte da doutrina quanto da jurisprudência.

Permite-se creditar os equívocos que mais das vezes são flagrados nas decisões dos Tribunais à falta de compreensão das peculiaridades que possui o instituto da responsabilidade civil por danos causados ao meio ambiente.

Tradicionalmente, os estudos relativos à responsabilidade civil baseiam-se na concepção de responsabilidade subjetiva, baseando-se sua caracterização no trinômio culpa (em sentido lato), nexo causal e dano.

Entretanto, no que se refere ao dano ambiental, preferiu o legislador pátrio adotar a teoria da responsabilidade objetiva.

Contudo, muito embora a responsabilidade objetiva não represente propriamente uma novidade na dogmática do direito, sua aceitação na consciência jurídica ainda não se aperfeiçoou, de modo que se percebe em vários julgados uma certa resistência à sua aplicação plena.

Nos termos previstos pelo Código Civil pátrio a responsabilidade civil pode advir do inadimplemento contratual (art. 1.056) ou de ato ilícito (art. 159).

Tendo em vista os fins visados pelo presente ensaio, não se cogitará de responsabilidade contratual, vez que a responsabilidade por danos causados ao meio ambiente não possuem essa natureza.

Prevê o art. 159 do Código Civil : “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”.

Percebe-se que o código adota a culpa, em seu sentido amplo, como regra para a caracterização da responsabilidade extracontratual.

O dispositivo transcrito acima não encontra aplicação em sede de danos ambientais, vez que, como se verá mais adiante, o legislador brasileiro optou por adotar nessa seara a responsabilidade objetiva, calcada na teoria do risco.

Segundo Sílvio Rodrigues[2] “Na responsabilidade objetiva a atitude culposa ou dolosa do agente causador do dano é de menor relevância, pois, desde que exista relação de causalidade entre o dano experimentado pela vítima e o ato do agente, surge o dever de indenizar, quer tenha este último agido ou não culposamente”.

A base científica da responsabilidade objetiva é encontrada na chamada teoria do risco, segundo a qual cabe o dever de indenizar àquele que exerce atividade perigosa, consubstanciando ônus de sua atividade o dever de reparar os danos por ela causados, independentemente da comprovação de culpa.

No abalizado dizer de Sergio Cavalieri Filho[3] : “Risco é perigo, probabilidade de dano, importando, isso, dizer que aquele que exerce uma atividade perigosa deve-lhe assumir os riscos e reparar o dano dela decorrente. A doutrina do risco pode ser, então, assim resumida: todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou, independentemente de ter ou não agido com culpa. Resolve-se o problema na relação de causalidade, dispensável qualquer juízo de valor sobre a culpa do responsável, que é aquele que materialmente causou o dano”.

3) Da Previsão Legislativa
Conforme acima exposto, o legislador pátrio adotou no que se refere aos danos ambientais o critério da responsabilidade objetiva.

Preceitua o art. 14, § 1°, da Lei n° 6.938, de 31 de agosto de 1981: “Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente”.

No mesmo sentido já dispunha a Lei n° 6.453, de 17 de outubro de 1977, ao tratar da responsabilidade civil por danos nucleares. Prevê seu art. 4° : “Será exclusiva do operador da instalação nuclear, nos termos desta Lei, independentemente da existência de culpa, a responsabilidade civil pela reparação de dano nuclear causado por acidente nuclear”.

A Constituição Federal também não se furtou de tratar do tema.

Dando, por certo, especial relevância aos danos causados por atividade de exploração de energia nuclear, haja vista a notória periculosidade de empreendimentos de semelhante natureza, fez constar de seu texto a responsabilidade civil por danos nucleares independentemente da existência de culpa (art. 21, inciso XXIII, alínea “c”).

Quanto aos princípios gerais atinentes ao meio ambiente, reservou a Carta Magna um capítulo inteiro, o de número VI, dentro do título VIII, que trata da ordem social.

No capítulo em referência, composto tão-só do art. 225, achou por bem o legislador constituinte qualificar o meio ambiente como bem de uso comum do povo, impondo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (art. 225, caput).

De maneira expressa, no que tange à responsabilidade civil, dispôs o texto constitucional nos parágrafos 2° e 3° do art. 225, verbis:

§ 2° “Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei”.

§ 3° “As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”

Consoante se depreende da leitura do texto acima transcrito, o legislador constituinte não fez constar expressamente do texto constitucional previsão da responsabilidade objetiva do degradador, tarefa incumbida à legislação infraconstitucional.

Na verdade, a opção pela responsabilidade objetiva em matéria de danos ambientais resulta muito mais da natureza do dano do que propriamente de uma opção do legislador.

4) O Meio Ambiente como Bem de Uso Comum
Conforme declarado por nossa Carta o meio ambiente é bem de uso comum do povo.

A expressão não representa novidade no ordenamento pátrio, vez que já prevista pelo Código Civil, na classificação dos bens públicos (art. 66, inciso I).

Tradicionalmente alinha-se a doutrina a entender tais bens como pertencentes ao poder público, sendo tão-somente o uso franqueado ao povo[4].

Nesse sentido, o escólio de Caio Mário[5] : “No direito atual, o que é franqueado é o seu uso, e não o seu domínio, sendo eles, portanto, objeto de uma relação jurídica especial, na qual o proprietário é a entidade de direito público (União, Estado, Município) e usuário todo o povo, o que aconselha cogitar do direito sobre eles, tendo em vista este sentido peculiar do direito público de propriedade que os informa, no qual faltam elementos essenciais ao direito privado de propriedade, e se apresentam outros de caráter excepcional”.

Contudo, não nos parece que o tratamento dado pela Constituição de 1988 ao meio ambiente tenha se restringido ao estabelecimento de relação de domínio.

O próprio Caio Mário menciona autores outros[6] os quais, considerando as peculiaridades da relação jurídica em comento, negam seu caráter dominical, vislumbrando uma relação de guarda, de gestão e de superintendência[7].

Numa perspectiva mais consentânea com a nova ordem constitucional, vale o registro do pensamento de Carlos Alberto de Salles[8]: “Os bens públicos ou, melhor dizendo, bens comuns, como o meio ambiente, se caracterizariam pela impossibilidade de apropriação privada, impondo uso e fruição em comum. A distribuição desses bens deve ser feita de forma que a quantidade usada por um indivíduo seja disponível em igual quantidade para o uso de todos. Como a quantidade produzida ou disponível desses bens não pode ser dividida como bens privados e colocados à venda, sua provisão tem de ser feita através do processo político, não do mercado.”

A ótica privatística que norteou a edição do Código Civil não é a mesma que serve de supedâneo à nova ordem constitucional.

A interpretação a ser dada à expressão “bem de uso comum do povo” prevista no art. 225, caput, da Constituição Federal, não deve ser a mesma dada à expressão prevista pelo art. 66, inciso I, do Código Civil. Neste a norma visa a tutelar o patrimônio, naquele o direito à qualidade de vida.

Vale a transcrição, ainda que longa, da exposição de José Afonso da Silva a respeito do presente debate[9] : “A Constituição declara que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Veja-se que o objeto do direito de todos não é o meio ambiente em si, não é qualquer meio ambiente. O que é objeto do direito é o meio ambiente qualificado. O direito que todos temos é à qualidade satisfatória, o equilíbrio ecológico do meio ambiente. Essa qualidade que se converteu num bem jurídico. A isso é que a Constituição define como bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida. Teremos que fazer especificações depois, mas, de um modo geral, pode-se dizer que tudo isso significa que esses atributos do meio ambiente não podem ser de apropriação privada, mesmo quando seus elementos constitutivos pertençam a particulares. Significa que o proprietário, seja pessoa pública ou particular, não pode dispor da qualidade do meio ambiente a seu bel-prazer, porque ela não integra a sua disponibilidade”. (Grifos no original).

Assim, ao tratar de responsabilidade civil ambiental, não se cogita de dano causado ao Poder Público, numa ótica privatística de meio ambiente, mas sim de tutela do direito de toda qualidade de vida, ou seja, de compensação pelo desequilíbrio ambiental causado.

Nesse ponto, passa-se à análise do dano ambiental.

5) Do Dano
A Lei n° 6.938/81, art. 3°, incisos I e II, arrola, conceitua o que seria degradação da qualidade ambiental e poluição. Transcreve-se:

“Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:

II – degradação da qualidade ambiental, a alteração adversa das características do meio ambiente;

III – poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente:

a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;

b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas;

c) afetem desfavoravelmente a biota;

d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente;

e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos”.

Entende-se, portanto, como dano ambiental qualquer alteração adversa da qualidade ambiental, reputando-se exemplificativo o rol previsto pelo inciso III, do art. 3°, da Lei n° 6.938/81.

Consoante acima exposto, não se cogita de culpa do degradador, mas sim do dano e do nexo de causalidade.

O tratamento dado à responsabilidade civil ambiental advém, por certo, da natureza do bem tutelado.

Considerando-se que o dano causado à qualidade de vida da coletividade por alguma atividade consiste na apropriação indevida por particular de um bem que a todos pertence e que a todos cabe preservar, permite-se a ilação de que a exigência da comprovação de culpa para fins de indenização poderia remeter à coletividade o ônus de arcar com os prejuízos advindos de atividade desenvolvida por terceiro em proveito próprio.

Nas hipóteses em que, sem embargo da cabal demonstração do dano, não se demonstrasse culpa, o ordenamento acabaria por chancelar a apropriação em benefício particular do meio ambiente.

O que fez o legislador foi impor aos que desenvolvem atividade potencialmente poluidora o ônus de reparar os danos causados, restabelecendo, na medida do possível, o equilíbrio ambiental afetado.

Outro não é o ensinamento de Paulo Affonso Leme Machado[10]: “Não se aprecia subjetivamente a conduta do poluidor, mas a ocorrência do resultado prejudicial ao homem e seu ambiente. A atividade poluente acaba sendo uma apropriação pelo poluidor dos direitos de outrem, pois na realidade a emissão poluente representa um confisco do direito de alguém em respirar ar puro, beber água saudável e viver com tranqüilidade. Por isso, é imperioso que se analisem oportunamente as modalidades de reparação do dano ecológico, pois muitas vezes não basta indenizar, mas fazer cessar a causa do mal, pois um carrinho de dinheiro não substitui o sono recuperador, a saúde dos brônquios, ou a boa formação do feto”.

Todavia, existe a preocupação de que a adoção da responsabilidade objetiva possa redundar em exageros que repugnam ao direito.

Tal preocupação já exsurge da obra de alguns doutrinadores, já havendo propostas no sentido de para que surja o direito à indenização o prejuízo há de ser periódico e anormal, entendo-se que o limiar da anormalidade seria ultrapassado quando a utilização do meio ambiente se torna, em função da atividade do degradador, parcial ou totalmente impróprio ao uso da coletividade (Paulo Leme Affonso Machado[11] cita os trabalhos de Patrick Girod e Giles Martin como exemplos dessa tendência).

Contudo, no mais das vezes, o grande dilema com que se depara o operador do direito é o da dificuldade da comprovação do dano ambiental.

Não são poucas as hipóteses em que os limites do processo são insuficientes para a apuração em juízo do dano ambiental, seja porque seus efeitos se protraem indefinidamente no tempo, seja porque inexistem técnicas precisas para sua apuração.

Tal problema é muito bem apresentado por Francisco José Marques Sampaio, estudioso do tema[12] : “É comum, entretanto, que, ao propor ação civil pública de responsabilidade por danos ambientais, o poder público – ou as associações civis de proteção ao meio ambiente, também legitimadas pela Lei n° 7.347/85 – se defronte com obstáculo, às vezes de difícil transposição, de apresentar ao órgão jurisdicional provas conclusivas da ocorrência do dano, de sua extensão e do liame causal. Essa dificuldade decorre, muitas vezes, da própria natureza do dano, como acontece com aqueles cujos efeitos somente se manifestam ao longo de anos, ou mesmo de décadas”.

E prossegue o autor[13] : “Há situações, outrossim, em que a comprovação do dano ambiental, de acordo com a grande certeza que o direito processual exige para autorizar a sentença condenatória, é dificilmente viável”.

Como aferir, por exemplo, a extensão de um dano provocado por vazamento de material radioativo? Ou da emissão de um poluente tóxico?

E não é somente na comprovação do dano que se concentram os obstáculos.

Também eles são encontrados na caracterização do nexo de causalidade.

6) Do Nexo Causal
Ainda que comprovado de modo inequívoco o dano, haverão hipóteses em que surgirão dificuldades na demonstração da relação causal.

Registra-se a mesma questão apresentada sob a ótica de Paulo Affonso Leme Machado[14] : “Além da existência do prejuízo, é necessário estabelecer-se a ligação entre a sua ocorrência e a fonte poluidora. Quando é somente um foco emissor não existe nenhuma dificuldade jurídica. Quando houver pluralidade de autores do dano ecológico, estabelecer-se o liame causal pode resultar mais difícil, mas não é tarefa impossível”.

Permite-se extrair do pensamento do autor, que a solução do problema residiria em considerar indivisível o dano, não se permitindo exigir da vítima a delimitação da responsabilidade de cada degradador.

Não é despiciendo lembrar que, adotando-se raciocínio contrário, correr-se-ia o risco de, por vias transversas, se permitir a discussão em juízo da culpa do agente, o que foi vedado pelo ordenamento.

Havendo pluralidade de agentes degradadores, qualquer deles poderá ser demandado em conjunto ou isoladamente pela reparação do dano causado, bastando a prova do dano e da relevância causal de sua conduta, remetendo-se ao juízo sucessivo de uma eventual ação de regresso a discussão acerca da quota-parte devida por cada um.

Aliás, essa é a solução prevista pelo Código Civil, que ao regular as obrigações por atos ilícitos, como os atos lesivos ao meio ambiente, determina que, havendo mais de um autor da ofensa, todos serão solidariamente responsáveis por sua reparação (art. 1.518), cabendo ao devedor que satisfaça por inteiro a dívida o direito de exigir dos demais o ressarcimento das respectivas quotas pagas a maior (art. 913).

Quanto aos problemas na determinação do dano, se afiguram de mais difícil transposição.

7) Da Caracterização do Dano. Propostas.
Autores, como Francisco José Marques Sampaio, se alinham na defesa da utilização das presunções legais.

Apregoa o autor em destaque[15] : “Tratando-se de responsabilidade civil por dano ambiental, a instituição de situações de presunções de dano encontra fundamento na previsibilidade da ocorrência do dano – no presente ou no futuro – como conseqüência de fato que, normalmente, provoca determinado tipo de dano”. (Grifos no original)

Outra proposta que se extrai dos ensinamentos de Francisco José Marques Sampaio é a da inversão do ônus da prova[16] : “O princípio que norteia a inversão do ônus da prova no Código do Consumidor é, em tese, aplicável à responsabilidade civil por danos ambientais, pois as razões que justificam a inversão do ônus da prova são comuns em ambos os casos”.

E prossegue[17] : “A inversão do ônus da prova permite ao aplicador da lei superar obstáculos que surgem para a formação de sua convicção. Assim, ao se certificar da existência do fato imputado, potencialmente causador de dano ambiental, o magistrado não estará obrigado a condicionar o acolhimento do pedido de reparação à comprovação do dano e do nexo de causalidade, como usualmente ocorre. Poderá pressupor existência de um desses requisitos, desde que autorizado por lei a fazê-lo, nos limites que o bom senso indicar, e verificar se a prova produzida pela parte ré foi suficiente para elidi-la”.

Sem embargo de inexistir no ordenamento pátrio regra geral que consagre de maneira ampla as sugestões propostas por Francisco José Marques Sampaio, permite-se vislumbrar hipóteses legais em que a mesma solução pode ser extraída de texto legal em vigor, sem que haja a necessidade de inovações legislativas.

Assim podemos tratar as atividades para as quais se exige o estudo de impacto ambiental.

A Constituição Federal em seu art. 225, § 1°, inciso IV, consagra o princípio da cautela, da prevenção ou da precaução, segundo o qual para a instalação das atividades potencialmente lesivas ao meio ambiente deverá ser exigido o estudo prévio de impacto ambiental.

A exigência constitucional de estudo prévio de impacto ambiental para atividades potencialmente degradadoras traz em seu bojo o princípio da precaução, que lhe é imanente.

Tal estudo acompanhado do respectivo relatório representa um encargo para o empreendedor nas situações em que a lei o exigir.

Em tais casos, não se permite o desenvolvimento de atividade econômica sem uma avaliação o mais precisa possível dos danos a serem suportados pelo meio ambiente.

A Resolução CONAMA nº 01/86, arrola em seu art. 2°, cujos incisos compõem um rol de teor nitidamente exemplificativo, atividades potencialmente poluidoras que não prescindem da avaliação prévia de que ora se cogita.

Há verdadeira presunção de que as atividades mencionadas no dispositivo legal em referência mostram-se aptas a provocar danos ambientais. Daí a necessidade do estudo prévio.

Não é controverso que se permite aos legitimados para tanto valerem-se das medidas judiciais cabíveis para obstar empreendimentos que violem o comando que determina o estudo prévio de impacto ambiental.

Contudo, nas citadas hipóteses não se cogita de reparar o dano, mas sim de evitá-lo, devendo a ação basear-se na infração ao dever legal de realizar o estudo e o relatório que a lei exige para a atividade.

Se a despeito do dever legal o empreendedor inicia sua atividade, por igual, não se exigirá do eventual demandante a comprovação do dano, mas sim da nocividade intrínseca da obra ou atividade que se pretende obstar.

Ao demandado é que caberá elidir a presunção de lesividade de sua atividade.

A aplicação do princípio da precaução acaba por transferir ao empreendedor o ônus de provar que sua atividade não é nociva ao meio ambiente.

Ora, se o empreendedor, agindo ao arrepio da lei, pratica atividade tida como potencialmente poluidora, a ele cabe a prova de que não produziu o impacto ambiental esperado, vez que não cumpriu seu dever de efetuar tal prova de modo antecipado.

Em linhas gerais não se impõe ao demandado nenhum ônus que já não fosse dele. Apenas transpõe-se do direito material para o nível processual a exigência.

Todavia, a aplicação do princípio da precaução está longe de solucionar todos os problemas relativos à delimitação do dano ambiental. Restringe-se tão-somente às atividades para qual for exigido prévio estudo de impacto ambiental.

E mesmo nessas hipóteses poderá ser ineficaz.

Basta imaginar uma situação em que o empreendedor realize estudo prévio de impacto ambiental que não retrate com fidelidade a verdade dos fatos. Contraposto a outro estudo, em sentido divergente, nenhuma presunção emanará de nenhum dos dois documentos, afigurando-se necessária a via probatória tradicional.

Nesse ponto é que seria de grande valia, na linha do pensamento de Francisco José Marques Sampaio, a previsão legal de regras de presunção e de inversão do ônus da prova, à semelhança do que acontece no Código de Defesa do Consumidor.

Uma outra saída para o problema da responsabilidade civil por danos ambientais seria a utilização de fundos de reparação para o qual contribuiriam obrigatoriamente todos o empreendedores de atividades potencialmente nocivas ao ambiente.

Apresenta o tema o Professor Sergio Cavalieri Filho[18] : “Nas últimas décadas vem-se acentuando, cada vez mais forte, um movimento no sentido da socialização dos riscos. Em face do alarmante aumento de acidentes, principalmente no trabalho e no trânsito, tornando, muitas vezes, irreparável o dano, não só pelo montante da indenização mas, também, pela falta de patrimônio da parte que o causou, lança-se mão de técnicas de socialização do dano para o fim de ser garantida pelo menos uma indenização básica para qualquer tipo de acidente pessoal. É o que, em doutrina, se denomina de reparação coletiva, indenização autônoma e social.

O dano, por esse novo enfoque, deixa de ser apenas contra a vítima para ser contra a própria coletividade, passando a ser um problema de toda a sociedade. E o seguro é uma das técnicas utilizadas no sentido de se alcançar a socialização do dano, porquanto consegue-se, através dele, distribuir os riscos entre todos os segurados.”

No Brasil, há a previsão de fundo de reparação de danos causados ao meio ambiente, tendo, contudo, um enfoque diverso da tendência acima mencionada.

Não se trata de fundo constituído de contribuições periódicas e prévias feitas pelos potenciais poluidores para fazer frente a eventuais indenizações a serem pagas aos lesados pelos danos ambientais.

O que prevê o art. 13 da Lei n° 7.347/85 é um fundo de reparação de danos constituído pelas condenações em dinheiro em ações civis públicas propostas na defesa do meio ambiente.

Muitas vezes a ação é motivada por agressões irreparáveis ao meio ambiente que são resolvidas em perdas e danos, gerando condenações em pecúnia.

Tratando-se de interesses difusos, pertencentes à toda coletividade, não haveria como destinar tais recursos à uma pessoa, razão pela qual optou o legislador pela instituição de um fundo gerido por entes representativos da sociedade.

Tais recursos devem, por força de lei, serem destinados à reconstituição do bem lesado ou, se impossível tal reconstituição, de outros de semelhante natureza.

Na verdade, o fundo previsto pela Lei n° 7.347/85 não resolve o problema causado pela incerteza do dano.

Talvez, afigurar-se-ia como possível solução a instituição de seguros obrigatórios por danos ambientais impostos aos empreendedores de atividades potencialmente poluidoras, seguros estes que não elidiriam indenizações decorrentes de ações culposas ou dolosas do degradador, à semelhança do entendimento que se vem sedimentando na seara do acidente do trabalho (verbete n° 229 da Súmula do STF).

Todavia, o óbice que tradicionalmente se opõe a tal entendimento seria o de que se estaria criando uma espécie de autorização para degradar, cujo valor consistiria em mero acréscimo no custo de produção.

Porém, por óbvio, a criação do instituto do seguro não prescindiria de uma intensa fiscalização, bem como de mecanismos jurídicos para obstar e fazer cessar atividades cuja nocividade extrapolasse os limites do tolerável.

Além do que a possibilidade de condenações pecuniárias em hipóteses de culpa ou dolo do empreendedor por certo inibiria tais abusos.

8) Conclusão
O campo da responsabilidade civil por danos ambientais é, sem sombra de dúvida, fértil de dúvidas e possibilidades de resoluções.

Por um lado debita-se tal quadro às incertezas científicas que pairam sobre o manejo dos recursos naturais.

A interdisciplinariedade, cada vez mais presente no direito, acentua-se no direito ambiental, mormente na definição do dano.

É certo que toda a atividade humana afeta o meio ambiente, mas qual o limite de tolerância? A partir de que momento uma intervenção humana passa a provocar um prejuízo sujeito à reparação?

É preciso lembrar ainda que vários avanços tecnológicos necessários à melhoria da qualidade de vida se deram à custa de danos ambientais.

Eis aí o grande dilema que cerca o direito ambiental: desenvolvimento econômico e preservação do meio ambiente.

A própria Constituição Federal de 1988 erigiu a defesa do meio ambiente em princípio da ordem econômica (art. 170), indicando que os dois não podem ser analisados de forma indissociada.

E nesse ponto assume relevância o papel do intérprete, que à luz das informações técnicas existentes à época deve ponderar os valores contrapostos e “estabelecer os limites de ambos os bens a fim de que cada um deles alcance uma efetividade ótima”[19].

Em outras palavras, cabe ao intérprete aplicar os princípios da unidade e da proporcionalidade, buscando o fundamento de validade do direito na Constituição.

Todavia, por si só, a utilização de métodos de interpretação e de valores não se mostram suficientes a dirimir os conflitos existentes na área da responsabilidade civil por danos ambientais.

Necessário se faz a criação de mecanismos legais de aferição do dano e da responsabilidade, sob pena de se transferir ao julgador a discricionariedade (talvez arbitrariedade) de decidir sobre a ocorrência do dano, gerando grande insegurança jurídica quanto aos efeitos da intervenção nociva no meio ambiente.

Sob tal prisma é que assume importância a criação de um sistema de presunções, lastreado no conhecimento científico sobre o tema, que reduziria o âmbito de discricionariedade do magistrado permitindo uma condução mais segura da demanda.

Tal sistema consagraria as situações do que seria “o mais provável”, invertendo o ônus da prova, de modo a impor ao degradador o ônus de demonstrar que a situação em que se encontra é excepcional em relação ao que presumiu a lei.

Em igual sentido, relevante seria a criação de um sistema de seguro, que em situações de responsabilidade sem culpa, cobriria os danos causados pelo empreendedor de atividades poluentes, ressalvada a possibilidade de complemento nas hipóteses de culpa e dolo.

Mais uma vez vale ressaltar que o seguro só se afigura como solução havendo fiscalização eficaz a mecanismos jurídicos para obstar as atividades provocadoras de danos que excedam os limites do seguro, sob pena de se consagrar a impossibilidade de indenização em certas circunstâncias em que, a despeito da ausência de culpa (em sentido amplo), o dano causado for tremendamente desproporcional ao valor coberto pelo seguro.

A reparação do dano ambiental, como nocivo a todos, deve ser preocupação viva dos operadores do direito, abertos para as informações oriundas de outras áreas do conhecimento, os quais deverão buscar a solução dos problemas propostos como medidas de preservação da espécie humana.

9) Bibliografia
1- BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 1998.

2 – CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação Civil Pública, Comentários por Artigos. 1ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 1995.

3 – CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Malheiros. 1996.

4 – MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 7ª edição, 2ª tiragem. São Paulo : Malheiros. 1999.

5 – MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Vol 1. 28ª edição. São Paulo : Saraiva, 1989.

6 – PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 1. 12ª edição. Rio de Janeiro : Forense, 1991.

7 – PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar. 1997.

8 – RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 13ª edição. São Paulo: Saraiva. Vol. 4. 1993.

9 – SALLES, Carlos Alberto de. Execução Judicial em Matéria Ambiental. São Paulo: RT. 1999.

10 – SAMPAIO, Francisco José Marques. Responsabilidade Civil e Reparação de Danos ao Meio Ambiente. 2ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris. 1998, p. 232.

11 – SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 1997.

12 – TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 1ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.

Luiz Cláudio Carvalho de Almeida é Promotor de Justiça e Professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito de Campos.

[1] In “Temas de Direito Civil”. 1ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 8.

[2] In “Direito Civil”. 13ª edição. São Paulo: Saraiva. Vol. 4. 1993, p.10.

[3] In “Programa de Responsabilidade Civil”. São Paulo: Malheiros. 1996, p.134.

[4] Em sentido contrário Clóvis para quem o titular dos bens dessa natureza é a coletividade. Apud MONTEIRO, Washington de Barros. “Curso de Direito Civil”. 28ª edição. São Paulo: Saraiva. vol 1. 1989, p. 153.

[5] PEREIRA, Caio Mário da Silva. “Instituições de Direito Civil”. 12ª edição. Rio de Janeiro : Forense, vol. 1. 1991, p. 302.

[6] Colin et Capitant e Aubry et Rau são os autores mencionados por Caio Mário.

[7] Op. cit.

[8] In “Execução Judicial em Matéria Ambiental”. São Paulo : RT. 1999, p. 68

[9] In “Direito Ambiental Constitucional”. 2ª edição. São Paulo: Malheiros. 1997, p. 56.

[10] In “Direito Ambiental Brasileiro”. 7ª edição. São Paulo: Malheiros. 1999, p. 273.

[11] Op. cit., p. 277.

[12] In “Responsabilidade Civil e Reparação de Danos ao Meio Ambiente”. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 1998, p. 227.

[13] Op. cit., p. 228.

[14] Op. cit., p. 278.

[15] Op. cit., p. 235.

[16] Op. cit., p. 232.

[17] Op. cit., p. 233.

[18] Op. cit., p. 143.

[19] BARROSO, Luís Roberto. “Interpretação e Aplicação da Constituição”. 2ª edição. São Paulo: Saraiva. 1998, p. 186.

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