Os minutos desgraçados de W. R. O.

Marcelo Cury

A E. 7ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em decisão recentemente publicada, reconheceu, por maioria de votos, a responsabilidade civil do Estado por atividade jurisdicional. Impossível não comentá-la, dado seu curioso desfecho.

Determinado indivíduo (que chamaremos, como no acórdão, W.R.O.), acusado pela pretensa prática dos delitos de estupro, constrangimento ilegal (em continuidade delitiva) e ameaça (tudo em concurso de pessoas), teve decretada contra si prisão preventiva que perdurou por sete meses e em cela comum, vindo a ser, ao final do processo, absolvido por inexistência material dos crimes imputados, encontrando a sentença confirmação na segunda instância.

Por tais motivos, W.R.O. propôs contra a Fazenda do Estado de São Paulo ação de indenização por danos materiais, estimados em R$ 795.845,30, e morais, no importe de R$ 1.000.000,00, num total geral de R$ 1.795.845,30 (o equivalente, na época, a 17.958,45 salários mínimos).

A demanda, contudo, foi julgada improcedente, tendo W.R.O., ao apelar, alegado que o decisum revelou-se inconstitucional, ilegal e injusto, tendo violado a coisa julgada, a presunção de inocência e a supremacia da Constituição sobre a lei ordinária, além de ter negado efeito à absolvição no feito criminal, ditada, repita-se, com base na inexistência material dos crimes imputados, aflorando ilegítima, portanto, a prisão preventiva que fora decretada (esta, aliás, durando sete meses, excedeu ao prazo razoável, ferindo assim o princípio da igualdade), ponderando W.R.O., finalmente, que vários dispositivos constitucionais importam ao caso, aludindo especificamente aos incisos V, X, XV, XXXV, XXXVI, LVII e LXXV do artigo 5º da Lei Maior.

Distribuído o apelo à referida 7ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, entendeu o ilustre relator designado que o recurso merecia parcial provimento.

Anotando em seu voto, inicialmente, que a base da ação cível proposta encontrava-se no inciso LXXV do artigo 5º da Constituição (“O Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”), entendeu S.Exa. que o caso não sugeria “erro judiciário”, mas sim excesso de prisão, passando a sustentar, com base em excelentes lições doutrinárias, a extensão da segunda parte daquele comando constitucional aos casos de prisão cautelar ilegal ou abusiva (ou, no dizer de Rogério Lauria Tucci, citado, “prisão cautelar injusta”), é dizer, aos casos em o acusado, preso provisoriamente, vem a ser absolvido.

Examinada, na seqüência, a prova produzida nos autos, concluiu o ilustre relator designado pela ausência tanto da “justa causa remota” da custódia preventiva de W.R.O. como também da necessária “fundamentação bastante” para se tê-la decretado, não sem antes reproduzir memorável excerto do acórdão que mantivera, na esfera criminal, por unanimidade, a absolvição de W.R.O.: “Se inocorriam elementos de convicção, quanto à materialidade dos crimes imputados, ao ensejo da decisão final, difícil aceitar que se mostrassem presentes no momento em que se decretaram as prisões preventivas. Vale afirmar: no mesmo ato em que se recebeu a denúncia”.

E entendeu também S.Exa. que, na tramitação do processo criminal, “Excedeu-se o tempo da prisão preventiva, em senso estrito”, ao permanecer preso W.R.O. por sete meses, afigurando-se mesmo, como proclamado no julgamento de habeas corpus anteriormente impetrado em favor do demandante – e concedido – “insuportável” e fora dos “lindes do razoável” aquele excesso.

Em síntese, reconheceu o ilustre julgador, em seu voto, e de forma brilhante, o “direito subjetivo do demandante à indenização, e por dois motivos: prisão indevida e excesso de prisão”.

Como se disse, a apelação foi provida em parte, e isso porque a maioria da Câmara Julgadora entendeu que o caso não comportava indenização por danos materiais, seja porque incabíveis alguns dos reclamados, seja porque não comprovados outros, mas sim, e apenas, indenização por danos morais, a respeito da qual assim se pronunciou o ilustre Desembargador relator designado, no voto ora enfocado: “O autor ficou, ilegalmente, preso, por motivo da atividade jurisdicional, durante sete meses. Aquém da grade, o tempo não se conta em dias, nem sequer em horas, porém, em minutos. Observe-se que a prisão traz, hoje, consigo risco de mal grave, perigo de lesão intensa. No caso dos autos, maior o risco, dada a natureza de uma das infrações penais, imputadas ao demandante: estupro em continuidade delitiva. Sem esquecer a quebra da dignidade da pessoa humana. As celas, nos Distritos Policiais, tornaram-se jaulas obscenas e perigosas. Impossível ignorar o que todos sabem e ninguém contesta”.

E antes de apreciar o valor postulado por W.R.O. àquele título, também aduziu S.Exa., com exatidão: “Cumpre recordar que aos lesados só se pode atribuir simples compensação, alguma satisfação e consolo, para só lhes amenizar o sofrimento íntimo, nascente no comportamento de servidor público. O risco administrativo desponta integral”. Até porque, como consignado em acórdão citado por S.Exa., proferido pela 2ª Câmara Cível do mesmo Tribunal de Justiça, “A indenização por dano moral é arbitrável mediante estimativa prudencial que leva em conta a necessidade de, com a quantia, satisfazer a dor da vítima e dissuadir, de igual e novo atentado, o autor da ofensa”.

Se parássemos por aqui, poderíamos afirmar com segurança que, além de brilhante, o julgado, apesar de não unânime (e de não ter ainda, até onde sabemos, transitado em julgado), seria também paradigmático, dada a excelência dos argumentos expendidos à concessão do direito reclamado, que, por motivos de espaço, não podemos reproduzir integralmente, apenas remetendo o leitor à fonte já citada, pois o texto, até aqui, se presta tanto ao deleite daqueles que prezam pela observância dos direitos e garantias fundamentais como também à instrução daqueles que os ignoram ou abominam.

Porém, havemos de observar como se procedeu a fixação da indenização por danos morais no caso em estudo. É exatamente por isso, aliás, que nos vimos impelidos a comentar aquele acórdão.

Pediu W.R.O., a título de indenização por danos morais, a importância de R$ 1.000.000,00. E se decidiu: “É muito. O referido critério leva a arbitrar a indenização em sete mil reais, levando-se em conta toda a circunstancialidade, em que se acha imerso o fato concreto da prisão”.

Neste passo, diga-se, não teríamos problemas em reproduzir integralmente os argumentos expendidos ao afastamento do valor postulado por W.R.O., pois tudo o que se disse, a respeito, foi apenas isto: “É muito”.

Ora, ainda que se tivesse o valor postulado como excessivo, necessário era que se justificasse, com base em algum elemento minimamente objetivo, ou referencial, a indenização que se entendeu “suficiente”, não bastando, à fixação dela, a só invocação de belas considerações teóricas acerca do tema. Donde se indagar: por que sete mil reais (o equivalente, hoje, a 46,35 salários mínimos)? Por que justamente sete mil reais? Mil reais por cada um dos sete meses que W.R.O. ficou preso, acusado injustamente de estupro, em cela comum, vindo, ao final, a ser absolvido por inexistência material do crime? Ora, se é assim, e se no cárcere o tempo se conta “em minutos”, teríamos que convir, fazendo os devidos cálculos, que a indenização acabou sendo fixada à base de R$ 1.000,00 por mês de prisão, ou R$ 33,33 por dia de prisão, ou R$ 1,38 por hora de prisão, ou R$ 0,02 (dois centavos), aproximadamente, por minuto de prisão ilegal e injusta…

Ora, uma coisa é a “simples compensação, alguma satisfação e consolo”, a “amenizar o sofrimento íntimo”; outra é fixar-se, num caso gravíssimo como o de W.R.O., um valor muito inferior àqueles que vêm sendo concedidos a indivíduos que têm seus nomes indevidamente inscritos em cadastros de maus pagadores.

Um voto tão exuberante em sua longa fundamentação, ao reconhecer a necessidade de o Estado ser responsabilizado por prisão cautelar indevida e excessiva, interpretada corretamente garantia constitucional perfeitamente aplicável ao caso, não poderia ter um fim desses. Chega a ser frustrante. Mais que isso: quase que uma perda de tempo. O princípio e o meio, com o perdão do trocadilho, não se ajustam ao fim. Pois que belo “consolo” recebeu W.R.O.!

Melhor seria, simplesmente, sustentar-se que W.R.O. não tinha direito algum a ser tutelado, ou que a Fazenda não tinha obrigação de indenizar quem quer que fosse, como se sustentou no voto vencido, o que pelo menos é lógico. Ou ainda que um indivíduo possa ser preso preventivamente sem nenhuma base legal, que essa prisão possa ser excessiva e que, absolvido ao final, deva ele calar-se e conviver até o fim de seus dias com a humilhação sofrida.

Pois o que não conseguimos conceber é como se possa defender, através de extenso arrazoado, e com invejável erudição e pertinácia, a extensão do preceito constitucional previsto na segunda parte do inciso LXXV do artigo 5º da Constituição aos casos de prisão cautelar (talvez até de forma pioneira na jurisprudência) para, numa única expressão, solitária, tímida, lacônica (“É muito”), afastar-se a pretensão posta em juízo e fixar-se uma indenização que, a rigor, face à dantesca situação vivida por W.R.O., equivale a indenização nenhuma. E que, evidentemente, não se presta à “dissuasão” de quem quer que seja à prática de “novo e igual atentado”.

Enfim, o que constatamos com espanto é que: (a) deu-se, e de forma brilhante, correta interpretação ao dispositivo constitucional antes reproduzido, criando-se mesmo morada jurisprudencial para insuspeitadas considerações doutrinárias sobre o tema; (b) na prática, todavia, isso de nada valeu à sorte de W.R.O., sobretudo se na cela seu tempo efetivamente se contou “em minutos”, em desgraçados minutos de dor e angústia, que não valem mais, ao que parece, do que dois centavos cada um (a Fazenda do Estado de São Paulo, aliás, agradece).

Dissemos que a decisão, até onde sabemos, ainda não transitou em julgado, e, por isso, pensávamos em encerrar estas linhas dando, com a devida vênia, graças a Deus. Mas, pensando bem, julgamentos de embargos infringentes são sempre imponderáveis, não é mesmo?

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