O NOVO CÓDIGO CIVIL E O DIREITO DO TRABALHO

JUÍZA MARIA FRANCISCA DOS SANTOS LACERDA

INTRODUÇÃO

O Professor Miguel Reale, no discurso proferido na cerimônia de sanção da lei que instituiu o novo Código, afirmou que o Código Civil é o código do homem comum, já que dispõe sobre a situação social e a conduta dos seres humanos, mesmo antes do seu nascimento, dadas as normas protetoras dos nascituros e, depois de sua morte, por preservar sua última vontade e fixar o destino de seus bens.

E nós demos as boas-vindas a esse código, por representar mais um instrumento de cidadania, uma vez que sua característica marcante é o sentido social, em contraste com o sentido individualista que condicionava o Código Beviláqua, em face das razões de seu tempo. Reflete a prevalência dos direitos sociais sobre os individuais. A propriedade, absoluta, não mais reina, senão com seu fim social, já proclamado na CF/88.

Também a CLT é o “código”, por assim dizer, do homem comum, porque não há quem não tenha uma relação com o mundo do trabalho, seja aquele liame mais estreito, de empregado e empregador, ou, então, de empreiteiro, construtor, operário, empregada doméstica, e por aí vai. E os valores sociais do trabalho estão inseridos como fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Os dois códigos primam pelo singelo, por tratarem da vida de pessoas comuns, e serem, por excelência, os códigos da Cidadania. Um, o novo, representa os direitos civis, ou de primeira geração, junto com os direitos políticos, conforme os conceituou Bobbio e o segundo: educação, saúde e trabalho formam uma tríade dos direitos sociais que não são mais do que desdobramento dos direitos civis.

E o novo Código veio a lume com princípios que muito se assemelham aos do Direito do Trabalho. Aliás, o Direito do Trabalho nasceu como um desdobramento do Direito Civil. Sua origem está no Direito Civil (Ministra Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, in O Novo Código Civil e a Prestação de Serviços, LTr, 2003). Vejamos:

Princípio da socialidade: prevalência dos valores sociais sobre os individuais, sem descuidar, porém, do valor fundamental da pessoa humana. Exemplo: mitigou o direito de propriedade, na medida em que exaltou o seu fim social, conforme já consta da CF/88, inclusive com a redução do prazo do usucapião, conforme o caso, se os possuidores nela tiverem fixado sua morada e realizado investimento de interesse social e econômico; o pátrio poder ficou alterado para poder familiar, exercido em conjunto por ambos os cônjuges.

Princípio da eticidade. Privilegia a boa-fé, funda-se no valor da pessoa humana, como fonte de todos os direitos. Prioriza a eqüidade e os valores éticos, o princípio do equilíbrio econômico entre os contratos.

* Maria Francisca dos Santos Lacerda é Juíza do Trabalho, presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 17.ª Região, biênio 2003-2005.

Princípio da operacionalidade. O Direito é feito para ser efetivado, por isso se afastou todo conceito complicado, optando-se por uma linguagem mais precisa e atual e fiel aos valores de correção.

Na CLT, está expressamente registrado que nenhum interesse de classe ou particular pode suplantar o interesse público e também esse diploma privilegia a eqüidade, como podemos conferir no seu artigo 8.o, e, ainda, no § 1.º do art. 852-I, sobre o rito sumaríssimo, que autoriza o Juiz a adotar“, em cada caso, a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e as exigências do bem comum”. E não há lei mais singela e direta do que a CLT, que valoriza a pessoa humana e sua inteireza, e a própria CLT diz que o Direito Comum será fonte subsidiária do Direito do Trabalho, naquilo que não for incompatível com os princípios fundamentais deste.

E, por fim, àqueles que ainda teimam em “revogar” a CLT, como se fosse uma lei imprestável, ultrapassada, lembramos que o novo Código Civil não é mais exatamente o mesmo do tempo de Napoleão Bonaparte, tendo reconhecido que certas conquistas da civilização já são irreversíveis. Então, os direitos foram ampliados e não restringidos, como querem os nossos “modernos” em relação à CLT. O Código civil veio, por isso, reforçar os valores presentes no Direito do Trabalho, caminhando em sua direção, traduzindo, na essência, o que já era patente nesse ramo, que veio a ser realidade, também, no CDC: a igualdade real só se torna possível, quando, por meio da lei, o fraco se tornar forte. E essa lei em discussão demonstra que moderno é garantir direitos, moderna é a inserção de todos no mercado de trabalho, moderna é a concepção de que cidadania é conquista da civilização, que não pode mais conviver com escravos. Sim, porque ainda hoje temos escravos. Escravos por exclusão da sociedade, escravos porque vivem das migalhas que essa mesma sociedade teima em dar-lhes. Escravos que vivem em fazendas, em ruas, sem pão e sem teto, por ausência de trabalho. E querem reformar a CLT para tirar direitos.

Felizmente, estamos procurando o debate antes de qualquer reforma e, otimista como sempre sou, penso que a reforma virá para melhorar, seguindo o exemplo do nosso novo código civil, que foi aclamado em prosa por todos nós, em que pesem algumas dificuldades, porque nada é perfeito.

INFLUÊNCIA DO NOVO CÓDIGO

Maioridade civil

A redução da idade para alcance da maioridade não afetou o Direito do Trabalho, no que diz respeito a 18 anos, porque a CLT já entendia como maior o trabalhador de 18 anos.

A influência terá quanto à cessação da incapacidade do menor de 16 anos, pela existência de relação de emprego, que signifique economia própria. O que poderíamos entender por economia própria? Salário mínimo? No formalismo jurídico, sim, porque a Constituição de 1988 (art. 7.º, inc. IV) assenta que o salário mínimo deve atender às necessidades vitais do trabalhador e de sua família, com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. O salário mínimo será nosso norte nesse aspecto. Quem trabalha e recebe um salário mínimo e tem 16 anos completos alcançou a maioridade, embora saibamos que esse nosso salário mínimo (hoje de 240 reais) não dá maioridade a ninguém, porque não satisfaz nenhuma necessidade do trabalhador.

Entretanto, se a pessoa de 16 anos pode votar, pode também resolver seus problemas trabalhistas, sem maiores conseqüências. Para o Direito do Trabalho, acredito que a jurisprudência vá caminhar no sentido de aceitar o salário mínimo como parâmetro.

Mas há outros aspectos: mesmo emancipado, o menor de 18 anos não poderá trabalhar em local insalubre, prestar serviços em horário noturno ou que lhe seja prejudicial à moralidade. Permanece moderna a dicção dos artigos 402-405 da CLT, mesmo porque se trata de preceito constitucional (art. 7.o, XXXIII). Aliás, o desenvolvimento físico da pessoa não se coaduna com a maioridade ficta, pela emancipação, pois, fisicamente, continua sendo menor, sofrendo os efeitos deletérios da jornada noturna ou do trabalho insalubre, com maior intensidade do que um trabalhador maior.

Outra questão relevante é a prescrição. Diz o art. 440 da CLT que, contra o menor de 18 anos não corre nenhum prazo de prescrição. Mas não é razoável entender-se que esse dispositivo prevalece, porque, antes, o menor (de 18 anos) trabalhador necessitaria de assistência para ir a juízo. Com o trabalho, emancipou-se, podendo exercer todos os atos da vida civil e, portanto, pode reivindicar em juízo qualquer direito.

Interessante, também, é a alteração relativa à prescrição do direito não-patrimonial. O Juiz, agora, só pode conhecer de ofício a prescrição que beneficiar o absolutamente incapaz. Por outro lado, ficou facilitada a argüição pelas partes, uma vez que poderão fazê-lo em qualquer grau de jurisdição e não só na instância ordinária, como antes. E a interrupção da prescrição só poderá dar-se uma vez, acabando, de vez, a oportunidade de diversas interrupções, como ocorria na Justiça do Trabalho, por causa de arquivamentos, ou desistências.

A decadência, que podia ser conhecida de ofício, recebeu novo tratamento, permanecendo autorização para ser conhecida pelo juiz, apenas a legal, não a convencional, que deve ser alegada pela parte a quem aproveita.

Responsabilidade Civil

Assenta a Constituição Federal de 1988 (art. 5.o, X) que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização por dano material ou moral decorrente dessa violação.

E o novo Código Civil trouxe disposição semelhante, em seu art. 12: “Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão a direito de personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.”

Direitos da personalidade são aqueles destinados a resguardar a dignidade humana. Trata-se da honra, do nome, da vida, da saúde. A personalidade é o ponto de apoio de todos os direitos e obrigações (Caio Mário, in Instituições de Direito Civil, vol. 1, Forense, 1991).

Já o art. 186 corrigiu falha do anterior 159, quando incluiu o dano moral como ato ilícito (“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”).

A RERUM NOVARUM já tratava da ofensa à pessoa humana. A clássica frase contida no Velho Testamento “Comerás o pão com o suor do teu rosto” foi revisitada a partir dessa encíclica, que considera o trabalho uma forma de manifestação da dignidade humana, quando adverte que “é vergonhoso e desumano usar dos homens como vis instrumentos de lucros” e atribui ao Estado a tarefa de velar para que as relações de trabalho sejam reguladas segundo a Justiça e a eqüidade e para que nos ambientes de trabalho “não seja lesada, nem no corpo, nem na alma, a dignidade da pessoa humana”.

E o Direito do Trabalho procura resguardar, da mesma forma, a integridade física e moral da pessoa, quando obriga o empregador a manter o ambiente de trabalho de tal forma que proteja o empregado. Por isso é que a CLT dedica um capítulo inteiro à segurança e à medicina do trabalho, em que cuida da inspeção prévia da empresa, dos exames médicos, das comissões de prevenção de acidentes, da prevenção da fadiga etc. Traz como direito de rescisão do contrato (art. 483, “e”) pelo empregado o cometimento de ato lesivo à honra e/ou boa fama do trabalhador ou de sua família.

No campo doutrinário, no que diz respeito à integridade moral, o pioneiro nos estudos foi o professor baiano Pinho Pedreira, que, num artigo, em 1991 (LTr, vol.55) deu a exata dimensão do que seria o dano moral na relação de emprego. A partir daí, a Justiça do Trabalho encampou a idéia e sentenças e mais sentenças tratando da matéria foram proferidas pelos juizes do trabalho em todo o Brasil.

O empregador pode, pois, ser responsabilizado por qualquer dano que causar ao empregado, seja material ou moral, por ato omissivo ou comissivo. Pode ser por falta de diligência no cumprimento de uma das leis trabalhistas de que resulte um acidente ou doença profissional, ou mesmo um assédio moral, sexual, revistas de trabalhador de forma abusiva, discriminação etc.

O que se deve, entretanto, é perquirir a culpa. Culpa, segundo Aguiar Dias (apud Caio Mário, in Responsabilidade Civil) “é a falta de diligência na observância da norma de conduta, isto é, o desprezo, por parte do agente, do esforço necessário para observá-lo, com resultado, não objetivado, mas previsível, desde que o agente se detivesse na consideração das conseqüências eventuais de sua atitude”. E Caio Mário resume com propriedade: “Pode-se conceituar culpa como erro de conduta, cometido pelo agente que, procedendo contra o direito, causa dano a outrem, sem a intenção de prejudicar, e sem a consciência de que seu comportamento poderia causá-lo”. E, para que haja a obrigação de reparar, basta que a culpa seja levíssima, porque a nossa doutrina de há muito desprezou a gradação da culpa entendendo que não deve influir na determinação da responsabilidade. Para conceituar a culpa levíssima, recorro, novamente, a Caio Mário (obra citada): “é a falta cometida em razão de uma conduta que escaparia ao padrão médio, mas que um diligentissimo pater familiae, especialmente cuidadoso, guardaria.

O novo Código traz, todavia, dispositivo que dispensa a apreciação da culpa, conforme dispõe o parágrafo único do art. 927: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. Observe-se: A teoria subjetiva ou teoria da culpa continua a fundamentar, como regra geral, a responsabilidade civil, mas em face das dificuldades da vida moderna, a multiplicidade de acidentes a a crescente impossibilidade de provar a causa dos sinistros e a culpa do agente, fez com que o CCB adotasse a teoria objetiva, ou teoria do risco no dispositivo em tela. Então, trazendo a questão para o Direito do Trabalho, podemos dizer que o empregador que, normalmente, exerça uma atividade de risco, como, por exemplo, extração de minério, utilização de produto tóxico etc, se houver um dano material ou moral a um empregado, deve repará-lo, sem se cogitar de sua culpa. Responde simplesmente pelo risco de sua atividade. E a ação que pede reparação pode cumular dano material e moral, conforme Súmula 37 do STJ.

Na Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal, realizada em setembro de 2002, ficaram assentadas várias questões, por meio de enunciados e um deles, o 38, trata a responsabilidade da seguinte forma: “A responsabilidade fundada no risco da atividade, como prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do novo Código Civil, configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar à pessoa determinada um ônus maior que aos demais membros da coletividade”

Saliento, ainda, o art. 187 (“Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”), uma inovação, ao tratar do abuso de direito, que, antes, já era reconhecido pela doutrina e jurisprudência, numa clara demonstração de que direito é vida. Já se admitia (vide Caio Mário, in Instituições de Direito Civil, vol.1, Forense, 1991) que o fundamento ético da teoria assentava-se no princípio de que a lei não deve permitir que alguém se sirva de seu direito, exclusivamente, para causar dano a outrem. Trasladando-se o dispositivo para o Direito do Trabalho, podemos dar o exemplo do empregador que, ao despedir o empregado, direito seu, escolta-o pessoalmente ou por preposto até a saída do estabelecimento, a fim de coibir a sua relação com os demais empregados.

E, nesse caso, realçou o Enunciado 37 do Centro de Estudos Judiciários, já mencionado, que “A responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”.

Limites Sociais dos contratos – Teoria da Imprevisão

As regras dos contratos, em princípio, não se aplicariam ao Direito do Trabalho, em face das normas específicas da CLT. Entretanto, podemos ressaltar os artigos 423 e 424, em relação aos contratos de adesão. O primeiro dispõe: “Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente”, e o segundo diz: “Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio.”

E o contrato de trabalho não é outro senão o de adesão, como de adesão são aquelas avenças em que o empregador oferece um incentivo ao desligamento voluntário. E a Justiça do Trabalho já vinha aplicando essa interpretação aos contratos dessa natureza, baseando-se no fim social dos contratos e no princípio da boa-fé, que, hoje, são expressos também nesse novo Código. O dogma da autonomia da vontade sempre foi desmitificado no Direito do Trabalho, em que a realidade da vida mostra que a desigualdade entre os homens impede a realização de um contrato justo.

É interessante que, quando se quer dar prevalência ao negociado, no Direito do Trabalho, com alteração do art. 618 da CLT, o novo Código impõe limites às convenções, ao dispor no parágrafo único do art. 2.035 que “Nenhuma convenção prevalecerá ao contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”.

Como salienta o Ministro José Luciano de Castilho (in O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof. Miguel Reale, LTr, 2003), nunca a legislação civil se aproximou tanto do espírito que fez surgir e crescer o Direito do Trabalho.

Por outro lado, a regra rebus sic stantibus (teoria da imprevisão) sempre foi aplicada no Direito Coletivo do Trabalho, em que se permite a revisão de cláusula de normas coletivas, quando, após um ano de sua vigência, tiverem sido modificadas as circunstâncias que as ditaram, como prevê o art. 873 da CLT. Essa regra está prevista no novo Código (art. 478) e constitui novidade, embora já consagrada pela doutrina que mitigou a cláusula pacta sunt servanda, de resto já acolhida pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 6.o , V).

Mesmo no Direito Individual do Trabalho é possível a aplicação da cláusula, com aval de convenção ou acordo coletivo, se se verificar que a empresa, praticando uma ou mais cláusulas do contrato, poderá ir à falência. Por isso é que a CF/88 autoriza a redução salarial. Aqui, em que pese a previsão ter o desiderato primeiro de proteger o emprego, protege, também, a empresa.

Desconsideração da pessoa jurídica

Outra novidade, mas já incorporada ao Código de Defesa do Consumidor (art. 28) e consagrada pela doutrina e jurisprudência, é a desconsideração da pessoa jurídica, para os fins da responsabilização dos sócios.

Art. 50: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial, pode o Juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidas aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”

O dispositivo não se afasta do que consta do CDC (O Juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos e contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração).

O Enunciado 51 do Centro de Estudos Judiciários, já citado, concluiu que “A teoria da desconsideração da personalidade jurídica – disregard doctrine – fica positivada no novo Código Civil, mantidos os parâmetros existentes nos microssistemas legais e na construção jurídica sobre o tema”.

O abuso de direito é a tônica da desconsideração da pessoa jurídica. O Direito do Trabalho, em que pese considerar a pessoalidade uma das características da relação de emprego, trata-a, apenas quanto ao trabalhador que deve, pessoalmente, prestar o serviço. Quanto ao empregador, é clara a CLT, que protege o empregado da mudança na estrutura da empresa, seja por sucessão, fusão, cisão ou transformação. O contrato é um elemento da empresa e, portanto, deve ser respeitado por quem detenha o controle do estabelecimento. E a conseqüência é a responsabilidade de quem recebeu o trabalho que foi prestado ou seu sucessor.

Dessa forma, responde também o sócio, qualquer que seja sua estatura frente à empresa, de forma subsidiária, dependendo sua execução da frustração do procedimento executório dirigido contra a sociedade, cabendo a ele, se executado em primeiro lugar, invocar o benefício de ordem, mas indicar bens da empresa que possam responder pela execução.

Na verdade, no que diz respeito ao Direito do Trabalho, a doutrina já consagrou a vertente jurídica no sentido de buscar a satisfação do crédito trabalhista nos bens dos sócios, porque se considera que não é lícito a eles permitir que a empresa lese o trabalhador. Então, presume-se a existência de abuso de direito, porque estariam aquelas pessoas se valendo de um instrumento legal ( a pessoa jurídica) para se enriquecerem à custa de outrem. A lei autoriza a criação da empresa (pessoa jurídica) para facilitar as transações jurídicas, constituindo ato ilícito o inadimplemento do crédito trabalhista, de natureza alimentar e protegido pela Constituição Federal.

Da sucessão o novo Código também cuidou, quando estabeleceu, no art. 1.146, a responsabilidade por débitos anteriores, da seguinte forma: “O adquirente do estabelecimento responde pelo pagamento dos débitos anteriores à transferência desde que regularmente contabilizados, continuando o devedor primitivo solidariamente obrigado pelo prazo de 1 (um) ano”… dispositivo que já tem correspondência na CLT (art. 448). Então, nesse caso, o trabalhador tem à disposição um novo instituto: a solidariedade do sucedido, até um ano após a sucessão.

FIGURAS JURÍDICAS AFINS

a) Prestação de serviços

Antes da Consolidação das Leis do Trabalho, as disposições do CCB sobre a locação de serviços regiam os contratos de trabalho, entretanto, há diferentes conseqüências entre a prestação de serviços sob os auspícios do CCB e a CLT, regendo-se por esta a relação de trabalho em que se contrata simplesmente a atividade do trabalhador e por aquele quando o que interessa é o resultado.

Melhor seria que o novo Código alterasse as normas relativas à prestação de serviços, para que se caracterizasse o trabalho autônomo, ao invés de ignorar importantes modificações na sociedade, na economia e nas relações de trabalho, mantendo a mesma estrutura do Código anterior (1916), que trata da locação de serviços, apenas alterando o titulo e acrescentando o art. 593 (“A prestação de serviço que não estiver sujeita às leis trabalhistas ou a lei especial reger-se-á pelas disposições deste capítulo”).

É bom lembrar, entretanto, que a contratação de trabalhador nos moldes deste Código só poderá dar-se quando se trata de um resultado, quando o serviço é esporádico e com perfeita autonomia do prestador de serviços.

b) Sociedades cooperativas

São premissas do cooperativismo: ação conjunta, voluntária e objetiva para coordenação de contribuição e serviços; obtenção de resultado útil e comum a todos, e a legislação brasileira não se afastou desses princípios. A Lei n.º 5.764/71, em seu art. 3.º, dispõe: “Celebram contrato de sociedade cooperativa as pessoas que se obrigam a contribuir com bens ou serviços para exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro.”

Agora, vem o código Civil e trata das cooperativas, nos artigos 1.093 a 1.096, trazendo uma de suas características primordiais, para distinguir o sócio do empregado: “distribuição de resultados, proporcionalmente ao valor das operações efetuadas pelo sócio com a sociedade”… (art. 1.094, VII).

Na Doutrina, há uma cizânia, que começou em 1994, com a edição da Lei n.º 8.949, que alterou o art. 442 da CLT, com o acréscimo do parágrafo único, com o seguinte texto: “Qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviço daquela.” Mas, antes, o art. 90 da Lei n.º 5.764/71, já mencionada, tratava da inexistência do vínculo entre os cooperados com a cooperativa e não causava tanta estranheza. Acontece que os empresários e trabalhadores entenderam, que a nova lei, com o aval de doutrinadores de escol, abria a porta para a terceirização, inclusive a atividade-fim das empresas.

Mas é preciso ter cuidado. As cooperativas abrem espaço para a solidariedade e penso que esse pode ser o caminho para muitas pessoas que se encontram desempregadas, ou mesmo para empresas que estão pré-falimentares e com grandes débitos com seus empregados. Como exemplo de cooperativas de sucesso, citamos escolas que, num dado momento, estavam inadimplentes, reorganizaram-se sob a forma de cooperativa, reunindo seus professores e, hoje, são uma realidade bem-sucedida.

Mas a chave é uma só: a análise do caso concreto. Se os objetivos do cooperativismo estão presentes, se se trata de uma atividade secundária da empresa, se não há subordinação ao tomador de serviços, se todos trabalham em benefício do grupo, temos a cooperativa. Maurício Godinho Delgado (in Curso de Direito do Trabalho, LTr, 2002) aponta dois princípios que devem reger o trabalho em cooperativa: o princípio da dupla qualidade é o primeiro. Significa que o filiado deve ser, ao mesmo tempo, cooperado e cliente. Cliente, porque a cooperativa lhe presta um serviço. Por exemplo: cooperativa de táxis. É a cooperativa que recebe o chamado e passa ao motorista filiado. E o segundo princípio é o da retribuição pessoal diferenciada. Significa dizer que o associado deve ter a possibilidade de ganhar muito mais como cooperado do que se trabalhasse individualmente, porque a cooperativa potencializa suas possibilidades e trabalho.

Caso contrário, o art. 442 da CLT não socorre o tomador, que arcará com os custos de uma contratação fraudulenta.

CONCLUSÃO

Vivemos a era da cidadania, por excelência. Nunca se falou tanto essa palavra como hoje. Os direitos civis, os sociais e os políticos são discutidos em todos os fóruns. E já era tempo. Entretanto, é necessário não apenas discutir esses direitos, mas exercê-los. E a cidadania tem mão dupla. Há direitos e deveres. Os cidadãos são aqueles que respeitam seus semelhantes, que cumprem seus contratos, em qualquer atividade que exerçam, seja como estudantes, professores, auxiliares de pedreiros, construtores.

E o Direito do Trabalho, como direito social, é um instrumento da cidadania, como instrumentos são todas as pessoas que trabalham com essa área do Direito.

E o novo Código Civil vem, exatamente, ao encontro dessa idéia: é preciso boa-fé, é preciso socializar o direito, é preciso que as normas jurídicas garantam, efetivamente, a igualdade, num mundo de desigualdades reais.

E o Direito do Trabalho caminhou e caminha, sempre, nessa direção e se vale do Direito Civil, em tudo que não seja incompatível com seus princípios que hoje, mais do que nunca, estão próximos.

As conseqüências deste Novo Código são, pois:

A emancipação do menor de 18 e maior 16 anos pela existência de contrato de emprego dá-se no caso de receber esse menor salário igual ao mínimo legal.

A maioridade civil, pela emancipação, afasta a aplicação do disposto no art. 440 da CLT, mas prevalece a impossibilidade de trabalho do menor em serviços insalubres, perigosos ou que lhe seja prejudicial à moralidade.

A decadência só pode ser declarada de ofício quando se tratar de decadência legal.

A responsabilidade subjetiva continua a ser regra, entretanto, o abuso de direito, bem como o exercício de atividade de risco ensejam a responsabilização objetiva do causador do dano.

A sucessão de empresas garante ao trabalhador a responsabilidade do sucessor e, solidariamente, a do sucedido, por um ano.

A desconsideração da pessoa jurídica, que já era largamente utilizada por construção doutrinária tem, agora, autorização legal.

Por fim, saliento que a sociedade moderna exige uma resposta ágil às suas reivindicações, e a conscientização de todos quanto aos princípios presentes, tanto no Direito do Trabalho, quanto no Direito Civil, é a porta de entrada para um mundo novo, onde o lucro será apenas o resultado de um trabalho bem realizado.

Bibliografia:

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DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2002.

GONÇALVES, Carlos Alberto. Principais Inovações do Código Civil de 2003. São Paulo: Saraiva, 2003.

HERKENHOFF, João Baptista. O Direito dos Códigos e o Direito da Vida.Sérgio Antônio Fabris Editor, 1993.

O Novo Código Civil: Estudos em homenagem ao Prof. Miguel Reale. São Paulo: LTr, 2003.

PEDUZZI, Maria Cristina Irigoyen. O Novo Código Civil e a Prestação de Serviços. São Paulo: LTr, 2003.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. I. 12. ed Rio: Forense, 1990.

____________ . Responsabilidade Civil. Rio: Forense, 1989.

RÁO, Vicente. O Direito e a Vida dos Direitos. 5. ed. São Paulo: RT, 1999.

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