"Não é a tecnologia em si que ameaça a privacidade"

Um informe publicitário tem sido repetido na televisão brasileira nos últimos dias, fazendo propaganda do mais novo modelo de telefone celular da Siemens equipado com câmera digital. O anúncio não tem o pudor de esconder que o equipamento pode ser usado como ferramenta para perturbar a privacidade alheia; ao contrário, faz apologia disso. Nele, um paparazzo consegue adentrar numa festa privada portando esse tipo de celular, depois de revistado pelos seguranças. Permanece durante a festa fingindo estar falando ao celular e, assim, consegue fotografar o beijo de um casal de celebridades que se pretendia anônimo. Ao serem despertados pelo sinal do flash, o casal aciona os seguranças, que correm para tomar o aparelho, sem sucesso, pois o paparazzo já havia conseguido enviar a foto através de uma conexão com a Internet — o celular também tem esta função. A foto do casal se beijando é estampada na edição de uma revista logo em seguida.

Essa propaganda pode parecer uma simples brincadeira, mas na verdade é o que vai acontecer daqui por diante. A questão da privacidade individual sempre esteve atrelada dramaticamente aos avanços tecnológicos. Semelhantes fenômenos aconteceram com o aparecimento das câmeras fotográficas, depois com os equipamentos de gravação, com as câmeras de vídeo, passando pelos computadores e, finalmente, com as redes de computadores (que tornaram a informação pessoal disponível através do mundo). Todos esses foram inventos que permitiram observar momentos pessoais, coletar informações armazenar fatos. Em razão da funcionalidade que permitem, existe uma dominante tendência da tecnologia ser utilizada para eliminar a privacidade individual.

Mas na verdade, não é a tecnologia em si que ameaça a privacidade. São as pessoas que se utilizam da tecnologia e as condutas que elas adotam que criam as violações à nossa privacidade. O caso da propaganda do celular da Siemens é exemplar. O celular com câmera pode ser utilizado para inúmeros outros fins, que trazem comodidade para o usuário sem interferir com a privacidade de terceiros. Mas também pode ser utilizado para espreitar a privacidade alheia, como a própria publicidade fez questão de propagar (não se preocupando com a etiqueta do politicamente correto). Portanto, é o uso irrestrito da tecnologia que elimina a privacidade. Em sendo assim, a questão resume-se a identificar que condutas são permitidas em relação ao uso desses novos aparelhos. E nisso os governos têm um papel decisivo.

O Ministro da Informação e Comunicação (MOIC) do Japão já manifestou sua intenção de regular o uso de telefones celulares que têm cameras instaladas (“cameraphones”). Pretende enviar em breve à Assembléia Nacional uma lei restringindo o uso desse tipo de telefone. O plano é submeter uma lei determinando que os “cameraphones” funcionem emitindo um som toda vez que uma foto é tirada. O barulho do sinal sonoro serve como alerta às pessoas nos locais públicos onde a foto for tirada. A lei imporá essa obrigação aos fabricantes desses celulares, de forma a prevenir “violações a direitos humanos” e espionagem empresarial, diz um deputado do partido democrático. O Governo Coreano também está ponderando proibir o uso de celulares com câmera em alguns lugares, como piscinas públicas, pois a preocupação com a privacidade tem aumentado nos últimos dias (segundo comunicado oficial publicado no site do Ministério da Informação e Comunicação [1] ).

O uso de tais telefones também parece ameaçar o sigilo industrial. Para se resguardar contra furto de tecnologia, a Samsung Eletronics, a gigante coreana fabricante de equipamentos eletrônicos e possivelmente o maior fabricante de chips do mundo, proibiu, desde o dia 14 deste mês, seus empregados de usar telefones celulares equipados com câmeras no interior das suas fábricas. Os empregados serão autorizados a portar exclusivamente os telefones que declararem para registro nos locais de trabalho e, mesmo assim, terão que cobrir as lentes dos aparelhos enquanto estiverem no interior das fábricas. A retirada dos adesivos antes de deixar o local do trabalho será considerada infração trabalhista.

Ironicamente, a Samsung é um dos líderes mundiais na fabricação de telefones celulares com câmeras. A proibição foi adotada pelo simples motivo de que a Samsung quer proteger sua tecnologia de ponta contra espionagem industrial. Alguns dos seus executivos expressaram preocupação quanto ao impacto que essa medida possa trazer nas vendas de telefones equipados com câmeras digitais. Mas ela parece não ter escolha, pois a disseminação de celulares cada vez mais potentes e aperfeiçoados constitui uma ameaça ao vazamento de informações corporativas e know-how industrial. Outras empresas coreanas como LG Eletronics, a Hyundai e a Kia Motors também planejam fazer o mesmo (segundo reportagem publicada no Chusun.com [2])

O Ministro da Informação e Comunicação da Coréia disse que a proibição não infringe nenhum direito individual, desde que se dê conhecimento ao proprietário da câmera. A tendência é esse tipo de restrição se espalhar por todas as indústrias.

A tensão não acaba por aí. Os donos de livrarias no Japão anunciaram que vão lançar uma campanha esta semana contra uma nova modalidade de shoplifters — pessoas que visitam as lojas para fotografar páginas de revistas e livros sem comprá-los, valendo-se dos tais telefones celulares. A partir de hoje, os donos de livrarias irão colocar avisos em seus estabelecimentos advertindo os leitores para a proibição do uso de telefones celulares equipados com câmeras.

O shoplifting, como é conhecido o tipo de crime em que uma pessoa furta alguma coisa de uma loja fingindo ser um consumidor, sempre foi um grande problema para os livreiros. O shoplifting digital está se tornando uma dor de cabeça ainda maior, na medida em que os telefones celulares equipados com câmera estão se massificando e sua qualidade também está aumentando.

Um fator complicador para conter esse tipo de conduta está na falta de previsão expressa nas leis de proteção autoral. Existe dúvida se o ato de fotografar páginas dos livros expostos constitui um crime semelhante aos nelas previstos, pois em geral coíbem apenas a reprodução de uma obra com fins comerciais. Além do mais, a prática do digital shoplifter é difícil de coibir, pois os empregados da loja não podem distinguir se o cliente está tirando uma foto ou simplesmente fazendo uma ligação.

O uso de aparelhos celulares com função fotográfica está disseminado no Japão, país líder nesse tipo de tecnologia. Esses aparelhos portáteis englobam também a função de acesso à Internet, com a possibilidade de a pessoa enviar e receber e-mails com as fotos nele tiradas. Os provedores dos serviços de telecomunicações estão atentos a esse problema, e já advogam a necessidade de reorientar a conduta dos proprietários desses aparelhos.

Demócrito Reinaldo Filho é juiz de Direito em Recife/PE, fundador do Instituto Brasileiro da Política e do Direito da Informática (IBDI), coordenador do livro “Direito da Informática – Aspectos Polêmicos” (Edipro, 2002) e responsável pelo site InfoJus.

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