Sérgio Vieira de Mello, a metáfora da água e o desespero da ONU

Vieira de Mello morreu aos 55 anos. A ONU, com a mesma idade, saiu gravemente ferida. Pode-se dizer, até, que a trajetória profissional do brasileiro, no limite entre a guerra e a paz, acompanhou os problemas recentes da entidade

Carlos Hugo Studart

Nos últimos 30 anos, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello esteve nos lugares mais desolados do mundo levando socorro a civis flagelados pelas guerras. Começou a vida cuidando de hordas de famintos e campos de trucidados em terras esquecidas como Bangladesh, Sudão, Moçambique e Camboja. No Líbano, escapou de tiros cruzados na pior de suas muitas batalhas. Idealista, era o brasileiro que construiu a biografia mais próxima à de Giuseppe Garibaldi. “Não esperem que eu fique tratando de direitos humanos apenas em gabinetes confortáveis”, disse recentemente. “Gosto de sujar as botas de lama”. Doutor em Filosofia pela Sorbonne, era um intelectual refinado que galgou os principais postos das Nações Unidas. Chefiou a missão da ONU na Bósnia, presidiu o Timor Leste e acabou eleito Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

Na tarde de terça-feira, 19 de agosto, era Sérgio Vieira de Mello quem estava sedento. Representante da ONU no Iraque, ele viu um caminhão bomba explodir na frente de seu gabinete em Bagdá. Despencou dois andares. Uma viga de ferro prendeu suas pernas. Por duas horas, conseguiu falar ao telefone celular enquanto aguardava que lhe resgatassem dos escombros. “Água, água, água”, suplicou. Era o sinal clínico de hemorragia interna terminal. Logo depois o telefone emudeceu. Quando finalmente se chegou a Sérgio, só havia um corpo esmagado pelo terrorismo que tomou conta do Iraque desde que os Estados Unidos anunciaram, a 1º de maio último, que haviam vencido a guerra contra o regime de Saddam Hussein. Morreram na explosão 24 pessoas.

O ato chocou o mundo –uma comoção que não se via desde os atentados de 11 de setembro. “Não posso pensar em ninguém que fosse mais indispensável ao sistema das Nações Unidas que Sérgio”, lamentou Kofi Annan, secretário-geral da ONU. “Vieira de Mello empenhou sua vida para fazer avançar a causa dos direitos humanos”, disse o presidente dos Estados Unidos George W. Bush. Coube a Jacques Chirac, o presidente da França, resumir o sentimento internacional: “Estou consternado e irado”. No Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decretou luto oficial de três dias.

Vieira de Mello morreu aos 55 anos. A ONU, com a mesma idade, saiu gravemente ferida. Pode-se dizer, até, que a trajetória profissional do brasileiro como funcionário da organização, afeito a missões complicadas, no limite entre a guerra e a paz, acompanhou os problemas recentes da entidade. Chamada meses atrás de “irrelevante” pelo próprio presidente Bush, a ONU apela por reconhecimento e por novas atribuições no cenário internacional. Nesse sentido, o apelo desesperado do brasileiro por água, instantes antes de morrer, pode servir de metáfora à atual situação das Nações Unidas.

O atentado em Bagdá matou Vieira de Mello mas atingiu também uma idéia – a do multilateralismo das relações internacionais, em oposição ao vôo solo e arrogante dos Estados Unidos contra o Iraque. No pós-guerra, a ONU assumiu o papel secundário de assistência humanitária. Vieira de Mello tinha poderes vagos. Coordenava a distribuição de remédios e alimentos, mas só opinava (sem decidir) sobre assuntos menores. Quem manda de fato no Iraque é o governador Paul Bremer, instalado no cargo pelos EUA.

Agora, paira o temor de que os falcões norte-americanos usem o atentado para aprofundar ainda mais a política unilateral. A primeira reação de Bush foi cobrar dos demais países apoio incondicional em sua cruzada contra o terrorismo. “O mundo civilizado não vai se intimidar; esses terroristas não vão determinar o destino do Iraque”, disse Bush. No Itamaraty, a avaliação é que se vive o pior impasse da história da organização. “O atentado constitui um sério revés para o processo de reconstrução institucional do Iraque”, escreveu o chanceler Celso Amorim.

Ocupação norte-americana no Iraque é um desastre. Três meses depois do fim da guerra, continua irregular o abastecimento de água e energia. Juntas, as guerras do Afeganistão e do Iraque já custaram a vida de 150 americanos. Pelo menos 60 deles tombaram durante a ocupação. Apenas 5 mil soldados foram destinados à segurança de um país com uma população igual à de São Paulo. Seriam necessários pelo menos 100 mil policiais. Para a pequena Bósnia, a ONU enviou 60 mil homens para a mesma missão. A guerra já custou US$ 65 bilhões aos EUA e a ocupação torra U$ 2 bilhões por semana. A conta da reconstrução pode sair por US$ 600 bilhões.

Também são quase nulas as esperanças de que se crie no Iraque um regime democrático. Se forem promovidas eleições livres, é certo a vitória de algum líder xiita, desestabilizando todo o Oriente Médio. A melhor saída seria instalar no poder algum ditador moderado, simpático ao Ocidente –como Saddam de tempos atrás. Outra saída é ir ficando com as tropas num Iraque cada vez mais humilhado. Há previsões de até 12 anos de ocupação. O que teria saído errado? “Os americanos estão pagando o preço do unilateralismo”, avalia Paulo Kramer, professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Na comunidade internacional, é grande o interesse de um Iraque próspero e livre, mas como os americanos decidiram agir sozinhos, também foram deixados à própria sorte para se safarem da enrascada. Das tropas de ocupação, 148 mil soldados são americanos e somente 13 mil vieram de outros países, 19 nações diferentes, incluindo Inglaterra.

A melhor solução parece ser entregar à ONU a administração do Iraque. Na Bósnia, a ONU forte foi essencial para conter os Sérvios. No Afeganistão, o representante da organização tem emprestado credibilidade ao governo de Hamid Karzai para se impor aos senhores feudais. O problema no Iraque é que o atual arranjo é o mais conveniente para que as empresas norte-americanas lucrem com a reconstrução. A missão que Kofi Annan confiou a Sérgio Vieira de Mello era exatamente deixar os americanos seguros de que poderiam confiar poderes às Nações Unidas. O brasileiro era tido como amigo entre os americanos. Chegou ao cargo de Alto Comissário dos Direitos Humanos com o apoio do presidente Bush. Foi para o Iraque por escolha pessoal de Condolezza Rice, a poderosa assessora especial de Segurança da Casa. Na ocasião, chegou a ser acusado pacifistas de estar legitimando a invasão do Iraque.

Nada incomodava mais Vieira de Mello do que a acusação de apoiar cegamente as decisões da diplomacia americana –até porque ela era falsa. Numa entrevista ao jornal francês Le Monde, em julho, ele foi claro. “O unilateralismo tem limites”, disse. “Estou persuadido que os Estados Unidos farão uma reflexão e logo descobrirão a importância da participação da ONU e do multilateralismo”.

“O paradoxo desse atentado é que pode criar condições políticas para se repensar o papel da ONU”, disse José Maurício Bustani, embaixador em Londres, considerado o maior especialista brasileiro em questões multilaterais. “A única esperança de paz no Iraque é que se encontre alguma fórmula de administração que não tenha o caráter de ocupação estrangeira”.

O problema, e eis um grande imbróglio dilema para o futuro das Nações Unidas, é que o sangue em Bagdá tem uma dupla mensagem: os terroristas quiseram expor a terra de ninguém herdada depois da invasão anglo-americana. Mas miraram também na ONU. A população iraquiana não vê com simpatia a organização. A relacionam com os 13 anos de embargo e dificuldades no cotidiano. No início de agosto, numa manifestação pública em Bagdá, eram visíveis cartazes com a seguinte frase: “Nações Unidas, vão para o inferno”. O ataque de terça-feira foi o pior da história da ONU. Nos anos 90, ao término da Guerra Fria, os crimes contra a organização cresceram. Conta-se, até hoje, em cinco décadas de atividade, a morte de 1.828 civis e militares em missões de paz. Apenas em 2003, com o crime da semana passada, já são 44 mortos –no ano passado, 62 pessoas ligadas à ONU perderam a vida.

Sérgio Vieira de Mello sempre esteve de missões difíceis, quase sempre perigosas. Aparecia em nome da ONU ao cabo dos conflitos, como juiz de paz, mas sem condições de fazer um trabalho decente. Sua maior vitória foi conseguir criar de uma nação independente no território do Timor Leste, entre 1999 e 2001. “Sua grande qualidade era a capacidade de construir consenso”, conta o diplomata Paulo Uchôa, braço-direito de Vieira de Mello no Timor. “Era um homem de impressionante carisma, calmo e valente, afeito a negociações complicadas”. Ele vinha sendo apontado como o predileto do padrinho Kofi Annan para substituí-lo na Secretaria-Geral da ONU.

Curioso o fato da maior estrela da história das nossas relações internacionais não ser diplomata. Ao contrário, Vieira de Mello construiu sua carreira bem longe do Itamaraty. Seu pai, o embaixador Arnaldo Vieira de Mello, foi caçado pelo regime militar. Magoado, o filho Sérgio fez concurso para os quadros da ONU. Casado com uma francesa, ele deixa dois filhos que sequer falam português. Eles não queriam enterrar o pai em solo brasileiro. A maior mágoa que Sérgio levou para o túmulo, contudo, foi um artigo publicado em 2001 pelo assessor especial do presidente Lula, Frei Beto, onde foi acusado de promover uma intervenção branca no Timor Leste, em “deleitáveis férias” na capital Díli. “Seu artigo é uma vergonha e uma covardia”, reagiu Sérgio em outro artigo. “O fato do Sr. ser religioso não lhe confere o direito de propagar difamações, acusando policiais e funcionários internacionais de ladrões, assassinos, racistas e neocolonialistas”. Foi a única manifestação violenta na vida de Vieira de Mello.

Outra questão que a morte de Vieira de Mello deixa exposta é sobre a responsabilidade do Brasil no cenário internacional. Hoje, o Brasil luta por uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU. Tal pretensão é boa para nosso ego, não parece ser compatível com a nossa competência. O Brasil está se insinuando com uma produção de vento. Posições relevantes no cenário internacional exigem a contrapartida da assunção das responsabilidades, que o Brasil não cumpre nenhuma, sequer paga as dívidas. Hoje, o País deve quase US$ 200 milhões a organismos internacionais, calcula o chanceler Amorim. Na Unesco, o Brasil não paga há dois anos e está prestes a perder o direito de votar. Em 1996, Vieira de Mello chegou a ser escolhido para o cargo de Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados, mas acabou preterido porque o Brasil já não pagava as contribuições.

O preço mais alto a pagar por nossas pretensões, contudo, é em sangue. Na Guerra das Malvinas, a coroa britânica enviou o príncipe Andrew para pilotar um helicóptero quando tinha apenas seis meses de asas. Levantou vôo em um esquadrão que servia de isca aos Exocets inimigos. Morreram naquela guerra 649 argentinos e 255 britânicos. Andrew poderia ter sido um deles. Participar do Conselho de Segurança significa também enviar nossos melhores quadros para zonas de conflito. Ao perigoso Iraque, por exemplo. Vale lembrar que o Brasil já participou de 16 missões de paz da ONU, em países como o Zaire, Nova Guiné e Moçambique. Quase todos os nossos soldados forraram o bolso com diárias em dólar, mas três deles foram entregues às família dentro do saco de lona. Por isso é bom estar consciente de que, quando as missões dão certo, homens como Sérgio Vieira de Mello retornam ao lar heróis da humanidade. Mas por vezes se volta como mártir.

CARLOS HUGO STUDART, jornalista e historiador, é editor do site Direito.com.br

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