Imputação Objetiva e Fim de Proteção da Norma de Cuidado

Antonio Carlos Santoro Filho
Juiz de Direito em São Paulo

Sustenta Claus Roxin que, mediante o recurso ao “fim de proteção da norma”, a sua “teoria da imputação objetiva” resolve outras espécies de problemas que, no campo da causalidade, seja adotando-se a teoria da conditio sine qua non, seja adotando-se a teoria da “causalidade adequada” ou ainda a da “causalidade relevante”, restam insuperáveis: os casos nos quais, embora a superação do risco permitido eleve o perigo de ocorrência de um determinado curso causal, a imputação do resultado pareça insensata (1).

1º Exemplo: Dois ciclistas dirigem no escuro, um atrás do outro, sem iluminar as bicicletas. Face à ausência de iluminação, A, que trafega à frente, colide com outro ciclista, vindo do sentido oposto. O resultado teria sido evitado, se o ciclista B, que trafegava atrás, tivesse iluminado a sua bicicleta (2).

2º Exemplo: Um cirurgião dentista extrai dois dentes de uma paciente sob anestesia geral e a paciente falece em razão de um colapso cardíaco. Apesar da paciente ter alertado o cirurgião de que tinha algo no coração, o dentista não submeteu a paciente a exame por clínico geral, com o que violou uma norma de cuidado. O problema, entretanto, face às suas peculiaridades, não seria descoberto pelo exame do clínico geral (3).

Argumenta Roxin que o fim da norma que exige a iluminação de bicicletas é evitar acidentes que decorram imediatamente da própria bicicleta, e não iluminar outras bicicletas, e que o dever de chamar o clínico geral não tem por objetivo estender a vida do paciente a curto prazo, de forma que, não tendo se realizado o perigo que a norma de cuidado violada queria prevenir, inviável torna-se a imputação do resultado (4).
O recurso ao fim de proteção da norma não nos parece desarrazoado. Ao contrário, é fruto de uma interpretação teleológica do direito penal, que, como sustentamos (5), constitui substrato indispensável ao juízo de adequação típica, uma vez que o modelo de conduta proibida (tipo) porta sempre um sentido axiológico, não bastando, para a sua configuração, um processo de subsunção objetivo e isento de valoração.
É certo que nos exemplos acima não sobram dúvidas de que os comportamentos não são alcançados pela norma penal incriminadora. Resta perquirir, no entanto, se a não imputação típica somente pode ser obtida com a interpretação teleológica da lei penal – o que, para nós, constitui um terceiro limite ou dimensão da tipicidade -, ou se o juízo de subsunção já resta excluído pelos outros planos de imputação (causalidade jurídica relevante e imputação subjetiva).
No caso dos ciclistas, embora o comportamento, efetivamente, não esteja compreendido no fim de proteção da norma, não se poderia cogitar de imputação objetiva (causal) somente pelo fato de A ter trafegado com as luzes apagadas, pois, não tendo havido acidente com a sua bicicleta, realmente não causou, no sentido naturalístico, que constitui pressuposto para a causalidade jurídica, resultado algum.
De fato, não tendo A se envolvido diretamente no acidente, somente a circunstância de estar trafegando com a bicicleta apresenta-se como absolutamente irrelevante. Dúvida poderia haver apenas sobre a imputação do resultado a título omissivo – ter deixado de iluminar terceiros -, na medida em que, embora lhe fosse possível, deixou de atuar para evitar o resultado.
A eventual dúvida, contudo, é resolvida pelo § 2º, do art. 13, do Código Penal brasileiro, pois não havendo, no caso, subsunção do comportamento omissivo a qualquer das hipóteses previstas pelos seus três incisos, não se criou, em relação a A, o “dever de atuação”.
Assim, ausente a condição de “garante”, torna-se penalmente irrelevante a omissão, na medida em que não se subsume ao elemento objetivo nuclear do tipo – verbo.
Também em relação ao segundo exemplo, embora a finalidade de proteção da norma resolva o problema de não tipicidade da conduta, entendemos que, neste caso, apesar de existente a causalidade física em relação à cirurgia de extração de dentes – se não aplicada a anestesia o paciente não sofreria um colapso cardíaco -, e, em princípio, um comportamento imprudente – o exame prévio deveria ter sido determinado -, o curso causal desencadeado não pode ser atribuído à inobservância do dever de cuidado objetivo, o que exclui a culpa em sentido estrito.
Com efeito, a culpa em sentido estrito constitui um elemento normativo do tipo penal, consistente na inobservância, por parte do agente, do dever objetivo de cuidado imposto na situação concreta, inobservância esta que deve ser adequada à causação do resultado previsto pelo tipo.
Ora, se assim é, a culpa não pode ser afirmada se restar – como no caso analisado, no qual o resultado morte em nada seria alterado (ou evitado) pela realização do pré-exame – inviável atribuir à conduta, por força da infração ao dever objetivo de cuidado, o fator determinante à ofensa ao valor tutelado pelo tipo.
A infração ao dever de cautela, aqui, por não guardar qualquer relevância causal para a ocorrência do fato lesivo – na medida em que teria sido desencadeado mesmo que observadas todas as precauções cabíveis à espécie -, pode quando muito caracterizar uma infração de cunho administrativo, mas jamais o elemento constitutivo do injusto culposo.
Este foi o posicionamento adotado pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao tratar de caso semelhante, no qual o motorista, embora tenha agido de maneira imprudente (transportando passageiros no compartimento de carga e sob efeito de álcool), não causou, com tal imprudência, o fato, isto é, em que inexistiu o liame causal entre a infração ao dever de cuidado e o resultado:

“PENAL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. HOMICÍDIO CULPOSO. EMBRIAGUEZ E TRANSPORTE IRREGULAR DE PESSOAS EM COMPARTIMENTO DE CARGA. NEGLIGÊNCIA E IMPRUDÊNCIA AFASTADAS. AUSÊNCIA DE NEXO CAUSAL ENTRE A CONDUTA DO AGENTE E A MORTE DA VÍTIMA. ABSOLVIÇÃO.
A verificação da ebriedade e o transporte irregular de pessoas em compartimento de carga, por si só, não atribuem ao agente, de maneira objetiva, a responsabilidade pela ocorrência do fato delituoso. É necessário que se estabeleça um nexo causal entre a conduta e o evento danoso, conforme preceitua o art. 13, caput, do Código Penal que consagra a teoria da equivalência dos antecedentes no ordenamento jurídico-penal pátrio. Ausente relação de causalidade entre a conduta culposa e o resultado morte da vítima, impõe-se a absolvição”. (TJRS – 3ª Câmara Criminal – AC n. 70003439379 – São Leopoldo).

Em conclusão, se o resultado, na normalidade das relações sociais, não poderia ser evitado pelo agente, ainda que observadas todas as normas de prevenção ao bem jurídico, não há de se falar em culpa em sentido estrito e nem de omissão – ou ação – penalmente relevante simplesmente pelo fato de não terem sido observadas as diligências de cautela, pois nossa lei penal prevê, de forma expressa, que somente pode ser considerada causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido (art. 13, caput), e que a omissão é penalmente relevante quando o omitente podia agir para evitar o resultado (art. 13, § 2º).

Notas
(1) Funcionalismo e Imputação Objetiva no Direito Penal, 3ª ed., pp. 335-36. Rio de Janeiro, Renovar, 2002.
(2) Funcionalismo…, p. 335.
(3) Funcionalismo…, p. 335-36.
(4) Funcionalismo…, p. 336.
(5) Santoro Filho, Antonio Carlos. Fundamentos de Direito Penal, pp. 175 e ss. São Paulo: Malheiros Editores, 2003.

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