Do princípio da abstração da ilicitude na aplicação da definição legal do fato gerador da obrigação

Levi Quaresma

A tributação de atividades ilícitas é, dos temas do Direito Tributário, induvidosamente, o que mais perplexidade e incompreensão causa aos não iniciados. Em primeiro lugar, indagam os leigos, se uma determinada atividade é considerada ilegal pelo Estado (o “jogo do bicho”, por exemplo, tipificado no Artigo 58 da Lei de Contravenções Penais), pode o Poder Público pretender cobrar imposto de tal atividade pelo próprio Poder Público considerada ilícita? Em segundo lugar: se o Poder Público passar a cobrar imposto de uma atividade ilícita, isso não importa em verdadeira “legalização” dessa atividade anteriormente considerada ilícita?

Por mais estranho que possa parecer aos leigos, SIM e NÃO são as respostas cabíveis a cada uma dessas duas indagações.

Começando pela segunda, convém afirmar-se, de logo, que se o Poder Público passa a cobrar imposto de uma determinada atividade ilícita, NÃO será somente em razão dessa nova atitude do Poder Público que se poderá considerar “legalizada” a atividade tributada. A atividade que era considerada ilícita antes de ser tributada continuará a ser considerada ilícita depois de ser tributada. Mesmo porque, em alguns casos (como no “jogo de bicho”), a Pessoa Jurídica de Direito Público tributante (o Município, no caso do ISS – Imposto sobre Serviços, sobre o “jogo de bicho”) nem competência terá para “legalizar” (ou destipificar, como dizem os juristas) a contravenção. Como não se ignora, a competência para legislar sobre o Direito Penal não é do Município e nem do Estado (Unidade da Federação), mas exclusivamente da União (cf. Artigo 22, I da Constituição Federal).

Quanto à primeira indagação, a resposta é SIM. Pode, sim, o Poder Público considerar ilegal uma determinada atividade (o “jogo de bicho”, por exemplo)e, ao mesmo tempo, cobrar tributo de tal atividade ilícita. É o que decorre do “Princípio da abstração da ilicitude na interpretação da definição legal do fato gerador da obrigação tributária”. Tal princípio mereceu inteira acolhida em nossa Lei Tributária Codificada (cf. Artigo 118, I do Cód. Trib. Nacional), “in verbis”: “A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se: I – da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos; II – dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos”.

O Código Civil declara nulo o ato jurídico quando praticado por pessoa absolutamente incapaz; quando ilícito ou impossível o seu objeto, quando não revestir a forma prescrita em lei; quando preterida solenidade considerada essencial à sua validade; finalmente, quando a lei taxativamente o declarar nulo ou lhe negar efeito (cf. Cód. Civil, Artigo 145). Assim, por expressa determinação legal, a natureza ilícita do objeto do ato e a própria invalidade jurídica (decorrência da natureza ilícita do objeto do ato) devem ser abstraídas na interpretação da definição legal do fato gerador da obrigação tributária (cf. Artigo 118, I do Cód. Trib. Nacional).

É compreensível a incompreensão dos leigos. BALEEIRO dá-nos conta de que até entre os doutos tal questão foi controvertida, muitas vezes, na Europa. AMILCAR FALCÃO cita a repugnância do próprio Tribunal Federal de Recursos em admitir a incidência do Imposto de Renda nos proventos da exploração do “jogo do bicho” e de outras formas de jogos proibidos.

Não há mais razão para tal, diante do texto legal codificado. Nem razão jurídica e nem, pensamos, razão moral. Afinal – raciocinemos com BALIEIRO sobre a tributação das atividades eticamente condenáveis ou condenadas – não será “pior deixá-las imunes dos tributos exigidos das atividades lícitas, úteis e eticamente acolhidas”?

Não se veja em tal posição, aprioristicamente, qualquer postura de necessária inércia, omissão ou indiferença do Poder Público (em qualquer de seus escalões: federal, estadual ou municipal) quanto aos objetivos de repressão das atividades ilícitas. Ao contrário, a tributação de tais atividades constituir-se-á, inequivocamente, em mais uma fonte de elementos probatórios com que as autoridades competentes encarregadas da prevenção e repressão das infrações penais poderão contar para levar a bom termo a “persecutio criminis”. Afinal, há muito tempo é preceito legal: “Os rendimentos derivados de atividades ou transações ilícitas ou percebidos com infração à lei são sujeitos à tributação, sem prejuízo das sanções que couberem” (cf. Artigo 26 da Lei nº4.506, de 30/11/1964 / artigo 574 do Regulamento do Imposto de Renda/1975).

É claro que a questão do “jogo de bicho” – que vimos tomando por base exemplificativa para as presentes considerações – estaria por merecer enfoque específico, aprofundando-se a discussão sobre a persistência do Poder Público em mantê-lo na ilegalidade, ao arrepio da quase total ausência de reprovação social, enquanto o próprio Poder Público desenvolve e propagandeia os seus próprios jogos, as suas próprias loterias… Em outra oportunidade, porém.

Levi Quaresma é Procurador de Justiça junto ao Tribunal de Contas do Estado do R.J. e
ex-aluno da 5ª Turma (1964-1968) da Faculdade de Direito de Campos, Procurador de Justiça do Ministério Público/RJ junto ao Tribunal de Contas do Estado, Professor de Direito Processual Penal e Direito Administrativo e Diretor da Faculdade de Direito de Campos.

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