Da possibilidade de julgamento ultra e extra petita nos Juizados Especiais Cíveis

Geraldo da Silva Batista Júnior

O presente trabalho tem por objetivo enfocar o julgamento da lide à luz do princípio da correlação entre o pedido do autor e o dispositivo da sentença, mas também tendo em consideração as inovações introduzidas pela Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.

Iniciemos com um exemplo: um clube de uma cidade do interior do Estado do Rio de Janeiro criou uma qualidade de sócio especial para filhos de antigos sócios que tivessem perdido o direito de continuar como dependentes dos pais em razão da idade. As condições de pagamento oferecidas eram melhores que as dos sócios comuns, inclusive com possibilidade de amplo parcelamento.

Logo após a posse da diretoria seguinte, foi constatado que esta criação tinha se dado ao arrepio dos estatutos sociais da entidade, o que levou o novo presidente a proibir o acesso destes “novos sócios” às dependências do clube. Dezenas de ações chegaram ao Juizado Especial com pedidos de que fosse determinada a readmissão dos associados excluídos, sem nada mencionar a respeito dos pagamentos já efetuados. A questão foi examinada e observou-se que realmente a instituição da nova modalidade de sócio era contrária aos estatutos da entidade e que o pedido inicial não podia ser concedido. Restaram indagações: e o dinheiro pago? Poderia o juiz, nestas mesmas ações, determinar que o clube devolvesse as parcelas pagas pelos excluídos?

O exemplo acima citado serve para provocar um questionamento a respeito da aplicação do princípio da correlação entre o pedido inicial e a sentença (também denominado princípio de adstrição do juiz ao pedido da parte) aos Juizados Especiais Cíveis. A solução para o problema não é das mais simples, porque, ao mesmo tempo em que o citado princípio jurídico é basilar no Direito Processual Civil Brasileiro, não se pode esquecer que os Juizados têm como característica a possibilidade de ajuizamento de ações pela própria parte interessada, sem a assistência de advogados. Como exigir, num país de milhões de analfabetos e semi-analfabetos, o conhecimento a respeito deste instituto processual, de modo a que os autores (ou reclamantes) apresentem com clareza suas pretensões em juízo? Têm os usuários deste novel sistema de Justiça ciência do que sejam cumulações simples, sucessivas, alternativas ou eventuais de pedidos? É evidente que não.

Para uma reflexão mais profunda é preciso analisar o contexto em que nasceram os Juizados de Pequenas Causas hoje transformados em Juizados Especiais Cíveis.

A bela obra “ACESSO À JUSTIÇA”, do grande Mauro Cappelletti[1], demonstra a preocupação, no mundo inteiro, com o acesso de todos à Justiça. São suas estas palavras:

“De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação. O acesso à justiça, pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos.” [2]

Na mesma obra o autor relaciona as principais barreiras para o efetivo acesso à Justiça. Seriam elas: 1- custas judiciais; 2- pequenas causas (às vezes os custos excedem o montante da controvérsia em questões decididas nos processos judiciários formais); 3- tempo; 4- pequenas possibilidades da população em geral, em termos de recursos financeiros e aptidão para reconhecer um direito e propor uma ação ou sua defesa; 5- dificuldades do litigante eventual frente ao habitual (normalmente grandes empresas com estrutura jurídica organizada); 6- dificuldades na defesa dos interesses difusos.

Basta uma breve análise dos obstáculos enumerados, para que possamos observar que são mais pronunciados em relação às pequenas causas e aos autores individuais, especialmente os pobres.

Prossegue, em sua obra, o festejado mestre enumerando as soluções práticas para os problemas de acesso à Justiça. Volto a transcrever suas palavras:

“O recente despertar de interesse em torno do acesso efetivo à Justiça levou a três posições básicas, pelo menos nos países do mundo Ocidental… Podemos afirmar que a primeira solução para o acesso – a primeira “onda” desse movimento novo – foi a assistência judiciária; a segunda dizia respeito às reformas tendentes a proporcionar representação jurídica para os interesses “difusos”, especialmente nas áreas de proteção ambiental e do consumidor; e o terceiro – e mais recente – é o que nos propomos a chamar simplesmente “enfoque de acesso à justiça” porque inclui os posicionamentos anteriores, mas vai muito além deles, representando, dessa forma, uma tentativa de atacar as barreiras ao acesso de modo mais articulado e compreensivo. ”[3]

Conforme demonstra com propriedade o eminente autor, esta visão moderna do “enfoque de acesso à Justiça” é muito mais do que assistencialista, evidenciando a necessidade de medidas de caráter geral, com reformas no campo dos direitos material e processual, além das estruturas dos órgãos de assistência jurídica, jurisdicionais e administrativos. Esta tem sido a tendência do Direito Nacional nos últimos tempos. Observe-se, dentre outros diplomas legais, o Código de Defesa do Consumidor, com suas mudanças estruturais, que criou, inclusive, órgãos administrativos para fiscalização de direitos e orientação dos consumidores.

Sem dúvida, as maiores preocupações do Direito atual estão relacionadas com o acesso à Justiça e a efetividade das decisões judiciais.

É neste contexto que nasceu a idéia dos Juizados Especiais. Tais órgãos jurisdicionais foram criados com o objetivo de eliminar ou pelo menos diminuir alguns dos obstáculos ao efetivo acesso à Justiça. É por isso que, em primeiro grau, não há custas, que é possível postular sem advogado, que o processo é essencialmente oral e informal e outras coisas mais.

Nesta esteira de raciocínio, visualizamos que nem todos os conceitos tradicionais do Direito Processual Civil podem ser levados para o sistema dos Juizados, sob pena de se anular inteiramente seus benefícios e o esforço no sentido de amenizar as barreiras ao acesso à Justiça no nosso País. Em outras palavras: para tornar inoperante um Juizado Especial basta que no seu comando coloquemos um Juiz que não tenha consciência dos seus objetivos e que seja apegado aos dogmas formais do processo tradicional.

Nas circunstâncias representadas pelo exemplo com o qual este trabalho foi aberto, podemos indagar: por que não deliberar o juiz imediatamente sobre a questão da devolução do dinheiro? Não consistiria isto em prestação rápida e efetiva da jurisdição, anseio de todos e objetivo principal dos Juizados? Pretendemos mostrar que sim, mas alguns Juízes ainda resistem, invocando o princípio da correlação entre o pedido inicial e a sentença.

Passemos a uma reflexão sobre este instituto processual. Merece transcrição o ensinamento de Moacyr Amaral Santos, vejamos:

“Fiel ao princípio dispositivo, o Código consagra o princípio de adstrição do juiz ao pedido da parte. Fê-lo no art. 128… Repete-o no art. 460, agora como requisito da sentença: a sentença deverá ser a resposta jurisdicional ao pedido do autor, nos limites em que este o formulou. Afastando-se desses limites, a sentença decide extra ou ultra petita… A sentença deverá conter-se nos limites do pedido, tanto no que concerne ao pedido imediato como no que concerne ao pedido mediato.” [4]

Apesar das resistências, devemos entender que este princípio jurídico não se aplica aos Juizados Especiais Cíveis. A razão principal consiste na incompatibilidade entre os fins desta nova Justiça e os dogmas formais tradicionais.

A solução para a questão foi dada pelo próprio legislador, no art. 6o da Lei nº 9.099/95, que estabelece:

“O juiz adotará em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum.”

Foi sábio o legislador ao permitir que o Juiz decida por eqüidade no âmbito dos Juizados Especiais e fez isto em razão de ser esta Lei produto de um pensamento jurídico compromissado com o efetivo acesso à Justiça. Ele previu que o julgador, em determinadas situações, enfrentaria dificuldades para decidir processos instaurados por leigos, em relação aos quais sequer houve despacho liminar de apreciação do pedido inicial, e que, se a este estivesse amarrado, as injustiças e extinções sem julgamento de mérito superariam em muito o número de sentenças meritórias capazes de solucionar de forma satisfatória os litígios surgidos no meio social.

O mestre Vicente Greco Filho faz[5] distinção entre decisão por eqüidade, afirmando que ela existe quando o juiz atua criando a norma legal por expressa autorização da lei, e eqüidade, que consiste no abrandamento dos rigores legais, por força de interpretação. A segunda pode ser encontrada em qualquer julgamento, mas a primeira depende de autorização legal, porque nela o julgador exerce atividade criativa de individualização da norma, como é o caso do art. 1.109 do CPC.

Alguns autores ainda insistem em dizer que o art. 6o da Lei nº 9.099/95 não autoriza o Juiz a decidir por eqüidade. Contudo, esta não pode ser a interpretação deste dispositivo. Como bem esclarece o citado mestre Vicente, a eqüidade pode ser encontrada em qualquer decisão[6], razão pela qual, afirmar que o mencionado art. 6o não encerra autorização para o Juiz decidir por eqüidade, e sim apenas para abrandar os rigores da lei, é tornar esta norma inócua. O consagrado Aurélio Buarque de Holanda Ferreira[7] ensina que equânime é o adjetivo que denota equanimidade, “eqüidade em julgar”.

Por último, poder-se-ia objetar com a assertiva de que o julgamento ultra ou extra petita, mesmo fundado no art. 6o da Lei nº 9.099/95, consiste numa violação ao princípio do contraditório, já que o réu (ou reclamado) não teria se defendido das questões não postas no pedido inicial apreciadas na sentença. Esta objeção também não se constitui em obstáculo intransponível. Façamos, primeiramente, uma análise do princípio do contraditório. Humberto Theodoro Júnior o define da seguinte maneira:

“…consiste na necessidade de ouvir a pessoa perante a qual será proferida a decisão, garantindo-lhe o pleno direito de defesa e de pronunciamento durante todo o curso do processo… Decorrem três conseqüências básicas desse princípio:

a) a sentença só afeta as pessoas que foram parte no processo, ou seus sucessores;

b) só há relação processual completa após regular citação do demandado;

c) toda decisão só é proferida depois de ouvidas ambas as partes.” [8]

Pensamos ser perfeitamente possível o julgamento preconizado neste trabalho sem ofensa ao contraditório.

No art. 2o da Lei dos Juizados Especiais estão enumerados os princípios norteadores do sistema por ela implantado. O processo orientar-se-á pela oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade.

O mesmo Humberto Theodoro conceitua processo e o diferencia de procedimento. Vejamos:

“Processo e procedimento são conceitos diversos e que os processualistas não confundem.

Processo, como já se afirmou, é o método, isto é, o sistema de compor a lide em juízo através de uma relação jurídica vinculativa de direito público, enquanto procedimento é a forma material com que o processo se realiza em cada caso concreto.” [9]

Conforme se vê, o processo é, dentre outros como autocomposição e autotutela, apenas um método de composição de litígios. Se processo é método, poderíamos, em tese, ter algum com procedimento inteiramente oral. O pedido inicial, a resposta, a produção da prova e a decisão final seriam orais. Tal modalidade não existe no nosso sistema, mas é possível, porque o que o contraditório e a ampla defesa exigem é a igualdade das partes e a possibilidade de manifestação sobre todas as questões processuais, além de possibilidade ampla de produção de prova. Deste modo, a oportunidade de se manifestar e de produzir provas pode ser concedida oralmente ao componente do pólo passivo.

Nos Juizados Especiais, apesar de o pedido inicial ser reduzido a termo, o fato é que, conforme art. 14 da Lei, ele pode ser oral, aliás, conforme já mencionado, a oralidade é norteadora do sistema. A defesa também é oral, na forma do art. 28. Ora, se é oral a essência dos processos nos Juizados Especiais, nada impede que, não tendo sido obtida a conciliação na fase inicial e chegando o feito à audiência de instrução e julgamento, se o Juiz observar que para proferir uma decisão capaz de pôr fim ao litígio entre as partes precisa deliberar sobre algo não contido no pedido inicial, coloque a questão nova para os litigantes, que sobre ela poderão se manifestar. Se imperioso, com o fim de evitar surpresas para os litigantes e apenas em último caso, poderá o Juiz suspender a audiência pelo tempo necessário à produção de provas sobre as novas questões postas em discussão. Deste modo, nenhum prejuízo haverá para a defesa. Tal procedimento tem base legal porque é análogo ao disposto no art. 27 da Lei nº 9.099/95.

Qualquer outra interpretação implica em colocar a Justiça como refém de dogmas do processo ordinário (de cujos problemas quis o legislador se libertar no âmbito dos Juizados) ou do serventuário (muitas vezes sem o preparo devido) que atende as partes na Secretaria e reduz a termo o pedido inicial, porque, em última análise, será este termo que delimitará o julgamento final.

Em conclusão, podemos dizer que, levando em consideração o contexto em que nasceram os Juizados Especiais, os fins sociais da Lei que os regulamenta, seus princípios norteadores (especialmente os da oralidade e informalidade) e com um pouco de cuidado e habilidade do Juiz para não ofender o contraditório e não violar o direito à ampla defesa, é perfeitamente viável o julgamento ultra ou extra petita nos Juizados Especiais Cíveis.

Vamos mais além para afirmar que esta prática deve ser adotada sempre que os Juízes observarem que a sua inobservância implicará em não compor definitivamente o litígio. Tal proceder conduzirá a uma grande economia processual, até com diminuição de demandas futuras, e trará uma satisfação aos interessados que desejam ver seus problemas resolvidos, e não discussões doutrinárias sobre dogmas do Direito Processual, bem como permitirá que a Lei nº 9.099/95 atinja seus objetivos.

Não basta um sistema novo de Justiça, é preciso também uma mentalidade nova para lidar com ele.

Geraldo da Silva Batista Júnior é Juiz de Direito Titular da 4ª Vara Cível de Campos dos Goytacazes/RJ e professor da Faculdade de Direito de Campos.

[1] Cappelletti, Mauro. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre, Fabris, 1988.

[2] Ob. cit., pp 9/10

[3] Ob. cit., p 31.

[4] Amaral Santos, Moacyr. Comentários ao Código de Processo Civil, Rio-São Paulo, Forense, 1973, p. 441

[5] Greco Filho, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro, São Paulo, Saraiva, 1995, p. 226

[6] No mesmo sentido: Agrícola, Celso Barbi. Comentários ao Código de Processo Civil, Rio-São Paulo, Forense, 1975, p. 522

[7] V. Dicionário Aurélio Eletrônico

[8] Theodoro Júnior, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1996, volume I, p. 27

[9] Ob. cit., p. 43

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.


Você está prestes a ser direcionado à página
Deseja realmente prosseguir?