Co-participação por atos negativos (esposa de delinqüente): Conduta impunível

(*) João Gaspar Rodrigues

É comum ocorrer a prisão de criminosos que praticavam sua atividade dentro do lar com a anuência passiva da companheira ou da esposa. Daí naturalmente surge a questão de saber os limites entre a criminalização e a licitude da conduta da esposa em tais casos.

De plano, ressai que o simples conhecimento da realização de uma infração penal ou mesmo a concordância psicológica caracterizam, no máximo, conivência, que não é punível, a título de participação, se não constituir, pelo menos, alguma forma de contribuição causal, ou então, constituir, por si mesma, uma infração típica. Tampouco será responsabilizado como partícipe quem, tendo ciência da realização de um delito, não o denuncia às autoridades, salvo se tiver o dever jurídico de fazê-lo[1].

Assim não há que se falar em co-participação negativa (ou por atos negativos) de esposa de traficante, quando esta não estando de combinação com o delinqüente e não tendo a obrigação de vigilância, assiste indiferente à ação criminosa ou não a denuncia, sabendo todavia que será cometida. Isso porque a defesa social não basta para impor obrigações jurídicas aos particulares, pelo que a solidariedade entre os cidadãos e os cidadãos com a autoridade pública não constitui um dever jurídico, existindo funcionários oficiais prepostos precisamente para o cumprimento de tais deveres.

Para que se delineie a participação é necessário que ocorra uma cooperação positiva objetiva e subjetivamente. Não há crime, adverte Bettiol, fora da presença de dois coeficientes, o material e o psicológico, na participação também, que é sempre uma forma de atividade delituosa, devem ser encontrados necessariamente estes dois elementos. Isto significa que não se pode conceber juridicamente uma forma de participação se o partícipe não tiver cooperado tanto objetiva quanto subjetivamente com o autor na prática do crime[2].

Não pode ser considerado partícipe de um crime quem não tenha tido um comportamento relevante sob o aspecto causal, colaborando efetivamente para o aperfeiçoamento do delito. A repulsa ou a indiferença excluem a participação. A propósito ensina Aníbal Bruno que “uma atitude totalmente negativa, como a simples presença no ato de consumação ou a não-denúncia à autoridade pública de um fato delituoso de que se tem conhecimento, não pode constituir participação punível”[3].

Em geral as incriminações são normas proibitivas, e por isso os crimes são crimes comissivos. Na verdade, o Direito Penal mais veda a agressão, por atividade positiva, aos bens jurídicos tutelados penalmente do que impõe o dever de salvaguardar, agindo, esses mesmos bens. Por isso, é muito menor o número de crimes omissivos; em decorrência, não se reconhece a co-participação por mera omissão.

O dever de agir que torna penalmente relevante a omissão terá de ser um dever expressamente sancionado pela lei penal, engendrando a figura do “garante”. Desse modo, é bom que se diga, não é a inércia como característica da omissão que importa à definição desta; o não fazer aquilo a que se era obrigado é que constitui a essência da omissão. Não há omissão sem transgressão de dever jurídico de atuar. A omissão não é simples não fazer, mas não fazer algo que o agente podia e devia realizar.

Von Weber[4] sustenta que é pressuposto da omissão que haja um dever jurídico de agir, afirmando que as proibições se dirigem a qualquer um, mas as ordens, só a um restrito número de pessoas. De fato, se “eu não tenho o dever de agir”, equivale a dizer que “eu tenho o direito de me abster de fazer algo” (que é o agir). Logo é uma “omissão em si”, sem relevância jurídica.

O §2.º do art. 13 do Código Penal põe em destaque a relevância da omissão definindo-lhe os lindes jurídicos: “A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado”.

No que tange especificamente à esposa (amásia, concubina etc) de traficante que tem ciência da atividade criminosa do cônjuge e com sua omissão (ou ação) tenta subtraí-lo à ação da autoridade pública, a lei penal lhe isenta de pena no caso de sua atitude constituir crime de favorecimento pessoal (art. 348, §2.º, CP). A jurisprudência reconhece em seu prol inexigibilidade de conduta diversa quando age para favorecer o marido ou companheiro (TJSP, RJTJSP 111/516 e 110/476), em virtude de a mulher não ter em nosso meio “forças para impor uma norma de conduta, porque não é dos nossos hábitos, principalmente nas classes inferiores da sociedade sujeitarem-se os homens às exigências das mulheres” (extraído do voto do Des. Rel. Acácio Rebouças, in: RJTJSP 15/445).

Outro caso emblemático de omissão impunível se dá com o passageiro que após ingressar no carro é informado pelo condutor de que transporta ou conduz consigo entorpecente; sua inércia não constitui transgressão penal. Também a simples co-habitação com usuário ou traficante, detendo ciência da existência do tóxico na moradia comum, não basta ao reconhecimento de infração penal.

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[1] Cezar Roberto Bitencourt, “Teoria Geral do Delito”, p. 258-259.

[2] “Direito Penal”, Vol. II/293.

[3] “Direito Penal”, Vol. I, Tomo II/278.

[4] “Grundriss des Strafrechts”, 1949, p. 58.

( * ) O autor é Promotor de Justiça em Tabatinga-AM e está lançando o livro “Tóxicos: uma abordagem da Lei n. 6.368/76”.

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