Artigo: Seja tolerante, Lula!

Se for demais pedir que Lula seja ingrato com sua militância, será inútil reivindicar que ambos sejam tolerantes?

José Neumanne

Nos últimos 22 anos, até seus mais renitentes adversários reconheceram que o PT tem sido desde sempre o único partido político organizado, coerente com seu programa e disciplinado do Brasil. Das outras legendas com as maiores bancadas na próxima legislatura, o PMDB é uma confederação disforme de grupos regionais; o PSDB, uma congregação de dissidentes social-democratas do que restou da resistência civil à ditadura militar; o PFL, uma mistura sem nexo de coronéis nordestinos com liberais puro sangue; e o PPB, um conluio de ex-participantes da tecnoburocracia da ditadura militar que nem coragem de se assumirem como direitistas têm.

O PTB é uma caricatura do peleguismo varguista; e o PDT uma espécie de sessão espírita onde o espírito do velhinho Gegê vive a ser convocado para dar palpites. Resta o PT, que não é um monolito, pois resulta da soma improvável de bem-intencionados democratas-cristãos de esquerda com grupelhos revolucionários cobrando a revanche da guerra suja, que só se mantém coeso graças a dois tipos de cimento: o mito do autêntico homem do povo, encarnado na efígie de Lula, e um rígido centralismo democrático stalinista imposto pelo presidente nacional, José Dirceu, que reúne em sua figura e em sua biografia as duas bandas da militância: o passado do combatente da esquerda armada e o presente do burocrata organizador da máquina partidária, com posições moderadas.

O partido, caudatário da revanche da esmagada esquerda armada, ganhou corpo nutrindo-se do espírito revanchista do Brasil profundo, cujo sonho é ter um filho padre e outro funcionário do Banco do Brasil, que tinha ficado por baixo após duas vitórias dos Fernandos Collor e Henrique nas três disputas diretas anteriores pela Presidência da República – como lembrou o lúcido cientista político da USP e da Unicamp Leôncio Martins Rodrigues, em depoimento ao Estadão, logo depois do primeiro turno, no qual os petistas obtiveram a maior bancada na Câmara: 91 deputados. Isso quer dizer muito para um partido com esse perfil e para um sistema partidário como o brasileiro. Mas ainda é pouco: a bancada representa um quinto dos votos do plenário, o que a deixa longe da maioria simples, forçando o partido à exaustiva negociação com os adversários para aprovar qualquer lei.

Mas Lula não é apenas um militante petista e não seria eleito presidente no segundo turno soterrando seu adversário governista, José Serra, com uma avalanche de votos, se fosse só isso. O filho de camponeses pobres de Caetés, Pernambuco, ex-entregador de lavanderia, metalúrgico de origem e líder sindical aposentado é muito maior do que o partido pelo qual se elegeu, como lembrou naquela mesma série de depoimentos para o Estadão o professor Jairo Nicolau, do Iuperj. A conta em que se apóia esse raciocínio é simples: a legenda teve 18% dos votos para a Câmara (bem menos do que os 23% dados a Serra) e Lula, 46% para a Presidência – bem mais do que o dobro.

Essa comparação pode parecer um truísmo, mas é bom que o próximo presidente – um homem simples, com pouca instrução, mas muita identificação com o brasileiro comum – pense bastante nela na hora de compor seu governo. Como lembrou Daniel Cohn-Bendit, vulgo Le Rouge (o Vermelho), líder dos estudantes nas barricadas de Paris em 68, hoje ele não é mais o presidente de honra de um partido nem o símbolo capaz de unir os militantes que não se identificam ideologicamente uns com os outros. Ele não tem mais de cuidar das quizilas internas de seus companheiros nem zelar para que eles permaneçam unidos mesmo na divergência. Hoje ele é uma bandeira e uma esperança para todos – não apenas para os que confiam nele, mas também para os que temem -, não um guia para seus prosélitos. Cohn-Bendit sabe o que diz: apesar de haver ocupado a trincheira oposta à do chefe maquis Charles De Gaulle naquela revolta da juventude estudantil francesa, ele deu ao companheiro Lula o mesmo conselho que o general daria. Não foi o comandante da resistência e construtor da Quarta República quem disse que a ingratidão é uma das maiores virtudes que um estadista pode ter?

Talvez seja um pouco demais exigir de Lula que seja ingrato com seus companheiros aos quais deve muito da vitória. Mas quem sabe não seja de todo inútil lembrar-lhe e a seus bravos seguidores o lema daqueles desvairados quixotes mal saídos da adolescência nos bulevares parisienses em 68: “É proibido proibir”. A tolerância não tem sido uma das mais notórias virtudes dos petistas na oposição. A democracia brasileira será muito grata à militância da estrela vermelha e a seus comandantes Lula, Zé Dirceu e outros se eles a adotarem como regra, o primeiro artigo do estatuto petista em seu desembarque no ambicionado poder republicano. Não é pedir muito: eles devem isso aos milhões de eleitores que os sufragaram.

JOSÉ NEUMANNE é jornalista e escritor.

www.direito.com.br

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