'Agências reguladoras falharam em desempenho de objetivos .'

O debate em torno do recente reajuste das tarifas telefônicas tem muitas facetas e implicações, envolvendo questões que vão dos limites dos orçamentos domésticos de cada cidadão ao fluxo de investimentos privados no país. Neste complexo conjunto, há um aspecto institucional que merece destaque: a configuração e o papel das Agências Reguladoras.

A ideologia que sustentou o processo de privatização no Brasil preconizava que o novo Estado não deveria intervir diretamente no domínio econômico, deixando esta tarefa primordialmente a cargo dos empreendedores privados. Em contrapartida, deveria o Estado fortalecer o seu papel regulador, a ser exercido por autoridades públicas mais “técnicas” e menos “políticas”, daí nascendo as Agências. Entretanto, fruto de uma adaptação apressada e superficial de institutos jurídicos de outros países, esta concepção de órgão regulador fracassou completamente no Brasil.

Em primeiro lugar, o Supremo Tribunal Federal, em várias decisões, encarregou-se de fixar que as Agências não poderiam pairar acima do princípio da legalidade, previsto em nossa Constituição. Assim, ficou evidenciado que a função reguladora na verdade corresponde à mera função regulamentar, isto é, submetida às leis, como ocorre com os demais entes da Administração Pública. Daí decorrem muitas conseqüências no tocante às tarefas normativas que as Agências desempenhariam, já que o Congresso Nacional continua a ter um lugar insubstituível, como, aliás, é o normal em um regime democrático.

Por segundo, as Agências falharam no desempenho de objetivos fundamentais. O “apagão” no setor de energia elétrica, acompanhado de semanas de constrangedores desencontros e transferências de responsabilidade, foi o primeiro sintoma disso. Depois, vieram os conflitos entre as empresas concessionárias de telefonia, não mediados adequadamente pela Anatel, de modo que acabaram por ser levados ao Poder Judiciário – arena supostamente indesejável para a “segurança dos investidores”.

Em terceiro lugar, já no governo FHC ficou claro que o modelo adotado para a escolha dos dirigentes, com mandatos fixos e não coincidentes com o do Presidente da República, seria uma fonte inesgotável de conflitos. Estes só foram mais amenos porque o próprio Fernando Henrique havia escolhido todos os dirigentes das Agências, todas criadas em seu mandato. Contudo, mesmo assim, ainda estão vivas as lembranças da polêmica em torno do preço do gás de cozinha envolvendo o presidente da República, a ANP e a Petrobrás.

Como uma derivação deste terceiro fator, vejamos a situação política que o atual modelo gera: um presidente da República é eleito, com um determinado programa de Governo, tem sua visão administrativa legitimada pela soberania popular, porém no âmbito mesmo da Administração Pública há órgãos que não são submetidos à vontade das urnas. Quem conhece a história nacional sabe que esta sistemática gerará permanentemente crises, impasses e paralisia administrativa.

Coroando a irreversível agonia deste modelo de Agências, temos agora o caso das tarifas telefônicas. Aos olhos da sociedade brasileira, as Agências estão completamente deslegitimadas, abrindo caminho para que o Congresso Nacional reveja as leis que as criaram. Esta deslegitimação nasce, neste caso concreto, do modo acrítico e pouco cuidadoso como a Anatel aderiu a uma determinada visão política e jurídica sobre os contratos mantidos com as concessionárias.

É de uma obviedade escancarada que o reajuste deferido é politicamente insustentável, em um contexto de anos e anos de perda de poder aquisitivo da população e de sacrifícios generalizados, em nome do ajuste fiscal e do controle da inflação. E mais do que isso: do ponto de vista jurídico há dezenas de instrumentos que impediriam o reajuste pretendido e levariam a uma negociação equilibrada e ponderada com os empresários do setor.

As dezenas de liminares até aqui deferidas pelo Judiciário bem ilustram esta realidade e derrubam o mito de que sempre os contratos firmados devem ser “religiosamente” cumpridos. Os romanos já tratavam do tema, há alguns milhares de anos… O Código de Defesa do Consumidor, a lei de licitações, o novo Código Civil, entre outras leis, poderiam ter sido consultados, antes do desastrado reajuste.

No tocante especificamente às tarifas telefônicas, o sistema judicial está apontando o caminho que pode levar a uma repactuação que equilibre as justas pretensões dos empreendedores com as necessidades e possibilidades do povo brasileiro. No momento seguinte, é fundamental que não se perca a dimensão estratégica do debate institucional, fazendo com que da morte de um modelo nasça outro, que preserve a autoridade e a dignidade do Poder Político e os interesses dos consumidores.

Flávio Dino é juiz federal, diretor da Ajufe e professor da Universidade de Brasília.

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