por Pedro José Fernandes Alves
Recentemente, conforme publicado no Jornal do Comércio de 7 a 9 de março passado, o desembargador Roberto Wider afirmou, numa entrevista sobre as próximas eleições, que o TRE se posicionaria sobre a não aceitação de “candidatos que não ostentam moralidade para o exercício do mandato eletivo, observada sua vida pregressa. Não estou falando somente da área criminal, com sentenças em trânsito em julgado. Temos candidatos, na eleição passada, com dezenas de anotações criminais em suas fichas. Só que, como ainda não houve sentença com trânsito em julgado, eles podem ser candidatos.”
Como acontece em tais ocasiões, vozes se fizeram ouvir para afirmar que a Constituição, conforme Artigo 5º, inciso LIV, assegura que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” e, portanto, seria incogitável obstaculizar-se a pretensão de qualquer Cidadão que, ainda que réu em qualquer processo cível ou criminal, não tivesse ainda uma sentença transitada em julgado contra ele.
Ora, a própria Constituição regula, entretanto, o exercício dos Direitos Políticos no seu Artigo 14 e seguintes, sendo que as “as condições de elegibilidade” figuram em itemização discriminatória, devendo ser objeto de lei.
Se nos mantivermos, porém, no campo dos princípios constitucionais, que necessariamente terão que ser contemplados na lei adrede reguladora, o fato é que politicamente temos que destacar os incisos II, do parágrafo terceiro, bem como o parágrafo 9º, ambos do referido Artigo 14, todos da Constituição. E, ao fazermos tal análise, devemos considerar que o Candidato deverá estar no “pleno exercício dos direitos políticos;” mas também atender às outras hipóteses de inelegibilidade que serão estabelecidas em Lei Complementar, “a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.Essa lei complementar, decorridos vinte anos da Constituição, ainda continuamos a aguardar, notando-se que nem o Executivo nem o Legislativo parecem ter a menor vontade em prepará-la.
Na realidade, ao capturar esta norma constitucional os princípios da moralidade e da probidade, nada mais faz a norma constitucional que antecipar comportamento que se exige de qualquer dos membros da administração pública direta ou indireta, pertencentes “a qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios…”, conforme prescrição constante dos Artigos 37 e seguintes da própria Constituição.
Assim, como corolário dessa exposição inicial fica a indagação: tem razão o TRE e não tem razão o TSE, por não ter acolhido como impedimento ou restrição ao exercício de cargo eletivo aqueles que, mesmo não tendo sentença transitada em julgado, em processos contra si ajuizados, possam ter processos em trâmite, em que haja, no caso de processos criminais, denúncia recebida ou, em caso de processos cíveis, citação válida? — Em que tais eventos processuais, se existentes, podem ser vetor de “prejuízo” para um Candidato, e em que podem ser vetor de “prejuízo” para a sociedade?
Parece-me que, em matéria desse jaez, mais tem a sociedade, o Cidadão-eleitor a perder que o próprio Candidato. Como temos visto, pelo exame da história de nosso país, a lentidão dos processos que têm por objeto matéria eleitoral é grande e, normalmente, o candidato contribui para ela, já que não tem qualquer interesse de terminar um processo dessa natureza. De outra parte, o cidadão eleitor se defronta com um político cujo passado não o recomenda como um cidadão “ativo e probo” e sua atuação parlamentar é marcada por um comportamento concessivo e sempre sujeito a toda sorte de transigências que objetivem sempre seu próprio interesse e não aquele dos eleitores que o elegeram e, muito menos, daqueles Cidadãos eleitores do país, em geral. Dá-se o que se poderia chamar de manifesto conflito de interesses! Esse político normalmente se caracteriza por não ter uma linha política a sustentar e, tampouco, padrões morais e de impessoalidade no trato da coisa pública.
A questão jurídica
A questão jurídica, pois, que se nos apresenta, é relativa à existência, ou não, na ausência de uma lei complementar adequada, de hipóteses jurídicas de ilegitimidade a justificarem uma recusa à inscrição de um cidadão que tenha contra si processos cíveis e penais em tramitação, que pudessem inscrevê-lo num quadro de conflitos de interesse manifesto, aliado a uma prévia presunção de que seu comportamento não se pautaria nos princípios da idoneidade e da moralidade.
O desembargador Roberto Wider, apoiando-se no Ministro Carlos Ayres Britto, que será o próximo presidente do TSE, recorda que o referido ministro do STF já teve oportunidade de proferir, quando juiz no TRE do Rio de Janeiro, um dos votos mais firmes, sobre o requisito da moralidade do Candidato a cargo eletivo. Reporta-se, a seguir, em uma declaração pública pela qual Carlos Ayres Britto afirmou que “… não pode ser candidato quem não tem moralidade para exercer o cargo” (político).
Evocando a necessidade da existência do bom senso, já que inexiste ainda a lei complementar preconizada na Constituição, Roberto Wider conclui essa parte de seu raciocínio com uma indagação: “é preciso uma lei que diga que o princípio da moralidade deve ser observado?”.
Neste ponto, acho que é indispensável que façamos, juntos, algumas ponderações. Creio que devemos nos inspirar na afirmação que René Rémond, in Regard sur le siècle, Ed. Presses de Sciences Po, 2000, faz a fls. 11, sobre o tema Il y a siècle et siècle ( ): Pourquoi ne pas accepter cette ocasion de jeter un regard en arrière et de mesurer le chemin parcouru ? — Quand ce ne serait que pour mieux savoir d´où nou venons. — D´autant que l´exercice comporte des enjeux qui sont loin d´être négligeables. 2.
Assim, a primeira reflexão seria sobre como solucionarmos tal aparente paradoxo, consistente em termos um princípio constitucional não viável, em razão de que inexiste, ainda, uma lei específica para regular a questão? — Um jurista europeu ou americano nos conduziria, sem dúvida, para uma ponderação de interesses. Nessa ponderação, por óbvio, o coletivo terá que se sobrepor ao individual, já que, visto sob o ângulo da perda maior, o coletivo agrega os cidadãos e, assim, a sociedade, que poderá ser irrecuperavelmente perdedora se seu representante no Legislativo proceder de forma inadequada ou comprometida. A doutrina sempre registra essa prevalência, sendo que Blackstone, citado por Gilmar Mendes e Suzana de Toledo Barros, essa última em seu livro O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, Brasília Jurídica, 1996, a fls. 34, dizia que, na versão de Suzana de Toledo Barros, “a liberdade natural só poderia sofrer restrições quando adequadas e necessárias ao benefício de todos”.
Efetivamente, sopesando-se que conseqüências haveria se um candidato “sem moralidade” fosse eleito para um cargo político, o exame, desde o passado aos dias correntes, bem demonstraria que a Cidadania estaria fragilizada e que só a sociedade seria perdedora. Portanto, na análise qualitativa dos princípios que estariam em jogo, parece-me sem dúvida necessário que se opte, em tema de representação popular, de exercício da democracia, pela prevalência do coletivo sobre o individual.
O individual, afinal, não seria um perdedor senão temporal, porque seu eventual êxito na demanda ou nas demandas que determinaram seu afastamento inicial de uma eleição poderia, em caso de vitória dele, representar o “resgate” de sua dignidade e, sem dúvida, a possibilidade de participar de um próximo pleito pleno de fundamentos em que o Cidadão pudesse no Candidato reconhecer um injustiçado. Além disso, contra aqueles que “provocaram” seu afastamento, sempre haveria a possibilidade de reivindicar, o candidato “prejudicado”, os danos morais que lhe foram ocasionados, especialmente se demonstrado que tudo não passara de uma “armação”.
Cremos que uma análise da Constituição, feita com prudência, equilíbrio e razoabilidade, redundará na necessidade de se equilibrarem as disposições do inciso II, do parágrafo 3º, com as do parágrafo 9º, ambos do artigo 14, e aquelas principiológicas do artigo 37. Se este exercício de proporcionalização convivencial for feito, não creio que haverá qualquer incompatibilidade em que se entenda que o Candidato, acima de tudo, tem que ter o pleno exercício dos direitos políticos, mas também não poderá, na esfera criminal, ter tido uma denúncia recebida e, na esfera civil, ter tido uma citação válida. Em ambos os casos, observado o due process of law (o devido processo legal), o denunciado ou réu, eventual candidato, já terá tido a chance de ter o pleito contra si promovido devidamente analisado por um magistrado que, tendo avaliado as condições da ação contra ele proposta, terá concluído pela sua presumível regularidade, razão da aceitação da denúncia ou da ordem de citação.
Estamos convencidos de que o Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, presidido pelo desembargador Roberto Wider, está trilhando o caminho que melhor atende ao interesse público e à cidadania. Como ele mesmo declara, em sua entrevista, não há perspectivas de que o apelo ao voto consciente do cidadão seja acolhido com plenitude nas próximas eleições, contudo, os exemplos das experiências passadas aí estão: “Esse é o caminho que podemos trilhar. O outro está aí o resultado. Políticos desacreditados, um Congresso e um Executivo cheios de problemas” E, ainda, adiante: “Em um momento em que você conseguir escolher melhor os políticos, a reforma política que sair desse ambiente será melhor. Se você escolher maus políticos, a reforma política que vai sair é nenhuma, porque eles não procuram fazer nada”.
Uma verdade inescusável nos parece decorrer de uma indagação: como poderá um político, envolvido em processo criminal ou cível, exprimir-se, como representante da sociedade, no exercício da representação, se tiver manifesto conflito de interesses entre uma norma coativa, sancionadora, que haverá de votar, e o próprio encaminhamento judiciário do processo contra si movido?
Se pudermos, pois, ver o Judiciário acolher o posicionamento do desembargador Roberto Wider, o fato é que estaremos começando a responder a uma questão que René Rémond, na obra já citada, a fls. 11, assim formula: “Chercher à déterminer si, au cours de ce siècle, l´humanité a plutôt progressé ou si sa condition s´est au contraire dégradée, c´est poser la question du sens même de l´histoire: selon la réponse, le pessimisme sera justifié ou l´espoir legitimé”.(Procurar determinar se, no curso deste século, se a humanidade progrediu ou se sua condição, ao contrário, se degradou, é questionar o sentido mesmo da história: segundo a resposta, o pessimismo será justificado ou a esperança legitimada)
Revista Consultor Jurídico