Poder de investigação – É preciso afastar velha máxima de que CPI acaba em pizza

por Carlos Eduardo Rios do Amaral

Inegável, o Poder Legislativo também exerce o controle fiscalizatório dos atos da Administração Pública. A Constituição Federal de 1988 autoriza a criação de CPI (Comissões Parlamentares de Inquérito) para tanto, onde terão seus integrantes, os parlamentares, poderes investigatórios próprios dos juízes.

Tanto poderão ser criadas pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado, em conjunto ou separadamente. Repetindo as Constituições estaduais e as Leis Orgânicas dos municípios o enunciado normativo da Carta Republicana, acabando por permitir, assim, que todos os entes da Federação possam ter suas próprias Comissões de Inquérito. O que é de todo recomendável frente ao princípio federativo que norteia a organização político-administrativa do país.

Diz o texto constitucional que deverão ser criadas mediante requerimento de um terço de seus membros, que deverá ser aprovado pela maioria, para apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal do agente investigado. No âmbito dos estados e municípios será inconstitucional qualquer preceito que condicionar a instituição de Comissão Parlamentar de Inquérito ao crivo de comissão permanente e específica das Assembléias Legislativas ou das Câmaras de Vereadores, ou mesmo à prévia decisão das Cortes de Contas, uma vez que devem os textos estaduais e municipais guardar simetria com o eixo central que é a Constituição Federal.

A Carta Política é clara, não poderão ser criadas indefinidamente, seus trabalhos encontram termo final determinado previamente. Mas poderão ser prorrogadas sucessivamente, dentro da legislatura em curso. Encerrado o período do mandato da Casa, seus trabalhos também devem se esgotar. Atua a duração precisa do Inquérito Parlamentar, em verdade, como verdadeiro contrapeso ao poder coercitivo exercido pelos parlamentares sobre a honra, imagem e vida privada dos particulares investigados, que não podem ficar indefinidamente como alvo de desconfianças e suposições de conveniência política.

Os poderes dessas Comissões Parlamentares de Inquérito não devem se confundir com a capacidade de formação de juízo de valor indiscutível e imutável. O aceno constitucional limitou-se a incutir em seus membros tão-somente poderes judiciários de investigação. E nem poderia ser diferente, aquele que investiga não pode julgar imparcialmente sua própria atividade de coleta de provas. E nessa atribuição de investigar dentro dos parâmetros de legalidade anote-se um dever de investigar, e não um simples poder de investigar. O Relatório Final deve estribar-se rigorosamente, assim, no empenho e nos resultados obtidos ao longo do Inquérito legislativo.

O objeto da perquirição das Comissões Parlamentares deve ser preciso, não podendo se afastar de fatos relacionados com o Poder Público. A vida privada do cidadão convocado só se verá exposta nestas Comissões quando estritamente guardarem algum fundado liame com a apuração. Qualquer desvio ou esvaziamento da finalidade para a qual foi formalmente instituída, com investigação de fatos outros não determinantes de sua instauração, certamente importará na imprestabilidade de suas conclusões finais.

O Princípio Federativo exsurge como delimitador de competência das Comissões de Inquérito. Cada legislativo deve investigar apenas os assuntos relacionados ao seu Ente federativo. A autonomia dos estados e municípios em nenhuma hipótese resta diminuída no plano de atuação dessas Comissões. A atribuição será certamente determinada pela conduta administrativa do agente e o dano ao Erário. O que não implica dizer que suas conclusões devam ser remetidas necessariamente ao Ministério Público de mesmo plano horizontal, dada a idéia de unidade desse Órgão.

O texto constitucional, sabidamente, não fez esta limitação. Atos de improbidade e crimes contra a Administração Pública e de responsabilidade, em sua grande maioria, estão ligados à ofensa contra o sistema financeiro nacional, como operação de câmbio não autorizada com o fim de promover evasão de divisas, de atribuição do Parquet Federal e perante a Justiça Federal. Pelo que se as Comissões de Inquérito das Assembléias Legislativas e Câmaras municipais se encontrassem tolhidas de encaminhar suas conclusões ao Ministério Público Federal, sem nenhuma dúvida, restariam esvaziadas de seu propósito de apuração de fatos de relevante interesse público.

Os poderes de juízes conferidos aos parlamentares membros das Comissões não é outro senão aquele previsto para a apuração de provas, tais como poder de condução coercitiva, tomada de compromisso e oitiva de testemunhas e investigados, realização de perícias, busca e apreensão, entre outros sediados nos códigos de processo. Perceba-se que não se pode confundir esses poderes de instrução com os de decisão. A busca e apreensão mencionada aqui não se confunde com aquela cautela decretada sobre pessoas e coisas, mas com aquela ordem de exibição de documento que se ache em poder de investigado ou de terceiro, e que se relaciona com o objeto da investigação parlamentar.

Tema aflitivo é aquele ligado à atividade instrutória das Comissões quando colidente com direitos e garantias constitucionais fundamentais expressamente consagradas pela Constituição Federal. Não há um entendimento uníssono consolidado. Até mesmo para a própria atividade dos integrantes do Poder Judiciário, no plano do devido processo legal, deve restar à saciedade demonstrado a necessidade da medida extrema pelas partes litigantes.

Muitos respeitáveis constitucionalistas entendem que o principio constitucional da reserva da jurisdição, que incide sobre os casos de decretação da prisão, de interceptação telefônica e de busca domiciliar, se estenderia indistintamente a outras hipóteses do tema da intimidade, como por exemplo, no caso da quebra do sigilo bancário, exigindo-se sempre, nestes casos, o crivo do Judiciário para o avanço da devassa parlamentar.

Aos poucos se tem franqueado às Comissões Parlamentares de Inquérito o entendimento de que podem, sim, invadir as liberdades públicas individuais, desde que de forma fundamentada e resguardando a intimidade do investigado de quaisquer sensacionalismos quando necessário, com a sempre publicidade dos meios utilizados para tal desiderato, sem prejudicar, outrossim, o interesse público à informação. Penso que o controle jurisdicional há de fazer-se a posteriori, caso posta a controvérsia sobre questão concreta, para não se congestionar a atividade parlamentar. O que não deve representar jamais uma sugestão ou impressão de ingresso para o abuso de poder e desprezo para com os valores da dignidade da pessoa humana.

Sedimenta-se, assim, a posição de que em determinadas hipóteses a apuração dos fatos ligados à gestão da coisa pública adentra a sigilos bancários, fiscais, telefônicos, de dados e de outros direitos fundamentais do cidadão. Para estes casos têm-se observado que não pode servir o direito à vida privada como pretexto ou subterfúgio para manutenção de esquemas de corrupção contra a coisa pública. O próprio desvirtuamento da natureza e do objetivo da garantia constitucional colocada à disposição do indivíduo volta-se contra sua incolumidade, que deve, sim, nestes casos, ser devassada no interesse da investigação parlamentar. Nenhum direito é absoluto, nem mesmo o direito à vida, que pode ser ceifada em casos de estado de necessidade, legítima defesa e em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Um esconderijo de uma quadrilha, com depósito de pesado armamento e central telefônica clandestina, utilizado inclusive para cativeiro ou comercialização de substâncias entorpecentes, não deve se confundir com o conceito de casa, de lar, aquele asilo inviolável do indivíduo. Assim, nem àquela conta bancária de frutífero laranjal, de testas-de-ferro mesmo, deve se propiciar a proteção da cláusula de inviolabilidade da vida privada, que não pode ser transformada em garantia de impunidade de crimes e atos de improbidade.

O direito do investigado ou indiciado ao silêncio nas Comissões Parlamentares de Inquérito também é garantido, induvidosamente. Ninguém será obrigado a depor contra si mesmo. O privilégio contra a não auto-incriminação espraia-se sobre todo e qualquer processo ou procedimento onde ao final se formará uma valoração acerca da conduta do sujeito argüido. O benefício também se estende às testemunhas. Deve-se esclarecer que, tais pessoas, malgrado arroladas como testemunhas, podem, sim, a qualquer momento, se tornar investigadas, a depender das conclusões alcançadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito, motivo esse, mais que suficiente para resguardar-lhes o direito ao silêncio.

No desenvolvimento de seus trabalhos é vedado às Comissões a tomada de medidas para acautelamento do que porventura será decidido em futura ação penal ou civil para apontamento de responsabilidade do agente público infrator. A atividade instrutória não deve se confundir aqui com o poder instrumental de cautela dos juízes. A constrição acautelatória à vida, liberdade e propriedade dos investigados, decretada pelos próprios parlamentares integrantes da Comissão, quiçá durante todo o seu funcionamento, invadiria seara reservada à atuação imparcial do Poder Judiciário.

Assim, medidas de arresto (indisponibilidade de bens), seqüestro de coisas determinadas, busca e apreensão de pessoas, apreensão de títulos, entre outras medidas acautelatórias, acaso indissociadas da atividade instrutória parlamentar, ou mesmo para fazer cessar dano ao Erário, podem e devem ser requeridas ao Poder Judiciário, já fazendo prevenir a competência do Magistrado Relator, pela prática de medida relativa à futura ação penal, anterior, assim e por óbvio, ao oferecimento da denúncia.

Destarte, constituindo-se a prisão provisória em medida acautelatória processual-penal, não poderão as Comissões Parlamentares de Inquérito decretá-las. Continua como função exclusiva do Poder Judiciário a segregação provisória ou definitiva de quem quer que seja. A possibilidade de prisão em flagrante, espécie de prisão provisória, outorgada às Comissões de Inquérito é equivocada. Essas Comissões não decretam prisão em flagrante, não lavram mandado de prisão em flagrante.

Qualquer do povo poderá deter quem se ache em estado flagrancial, mas a consolidação da prisão em flagrante é ato privativo do juiz, que poderá, inclusive, relaxá-la se não vislumbrar a necessidade da medida acessória. Igualmente ao que se passa com o requerimento de medidas assecuratórias, deve a Comissão representar ao Judiciário pela decretação da segregação provisória de quem quer que seja, se for o caso, instruindo o pedido com seus motivos ensejadores, que, por óbvio, deverá reportar-se ao fato determinado objeto da investigação.

Do mesmo modo não poderão as Comissões Parlamentares de Inquérito, em nenhuma hipótese e sob nenhum pretexto, cercear o direito de qualquer investigado de se valer do direito de estar acompanhado de profissional da advocacia. Desejou a Constituição Cidadã de 1988 que o advogado seja indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações. A costumeira necessidade de impetrações de Mandados de Segurança e de Habeas Corpus preventivos para que advogados possam, nas sessões das Comissões Parlamentares, fazerem valer seus direitos e prerrogativas elencados na Constituição e nas Leis traduz-se em aviltamento ao próprio Estado Democrático de Direito e ao labor profissional.

Deve-se ressaltar energicamente que não poderão, outrossim, os membros das Comissões de Inquérito dificultar ou diminuir o sagrado trabalho realizado pelos advogados, nem dispensar a estes tratamento jocoso. Todas as prerrogativas da classe duramente conquistadas nos fóruns e tribunais devem ser asseguradas na Casa Legislativa apuradora. Sob pena de nulidade e desprestígio de toda a atividade investigativa parlamentar.

Como órgão do Poder Legislativo, ficam eventuais ilegalidades perpetradas pelas deliberações das Comissões Parlamentares de Inquérito afetas ao controle posterior e imediato do Poder Judiciário do âmbito de sua esfera federativa.

Tratando a atividade dessas Comissões de procedimento inquisitivo e unilateral, despido de qualquer contraditório assegurado ao investigado, dificilmente este poderá se valer do acesso a qualquer dilação probatória na tentativa de mensurar os trabalhos da Comissão em sede judicial. Deverá limitar-se a indicar a ilegalidade ou abuso do ato parlamentar de perscrutação, o que, via de regra, poderá fazer mediante impetração de Habeas Corpus ou Mandado de Segurança, que dispensam produção de provas.

Não há, assim, a possibilidade de o investigado recorrer à via judicial para a análise de mérito das convicções formadas pela Comissão e seus integrantes, mesmo porque estas, ao final, sofrerão estudo pelo Ministério Público que, no caso de concordar com a opinião parlamentar incriminadora, deverão ser objeto de necessária e suficiente demonstração em ação judicial para eventual condenação dos envolvidos. A denúncia ministerial seria, assim, o marco inicial do acesso do acusado à ampla defesa e ao contraditório.

Por derradeiro, não deve prosperar o equivocado aforismo de que uma Comissão Parlamentar de Inquérito sempre acaba em “pizza”. Ora, as suas conclusões são encaminhadas ao Ministério Público para promoção da responsabilidade civil e penal dos agentes ímprobos. Mas, não só a este Órgão Acusador essencial à função jurisdicional do Estado. Há, ainda, um outro encaminhamento, que fica implícito no texto constitucional, a um destinatário tão importante quanto o Parquet. As conclusões de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, assentadas em seu Relatório Final, são, também, encaminhadas à consciência do povo deste país, de quem emana todo o poder, exercido por meio de representantes eleitos pelo voto.

A soberania popular exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, é que determinará a maior e incomparável promoção da responsabilidade e condenação dos agentes públicos corruptos, surrupiadores da coisa pública, pela derrota nas urnas. A pizza ou a perpétua condenação moral destes é uma escolha sua.

Revista Consultor Jurídico

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.


Você está prestes a ser direcionado à página
Deseja realmente prosseguir?