por Wagner Bordon Tavares
Recentemente, chegou ao meu conhecimento o seguinte caso: um promotor de Justiça, durante a inquirição de uma testemunha em um “procedimento de investigação criminal instaurado pelo Ministério Público”, deu voz de prisão em flagrante pelo crime de falso testemunho à depoente e a conduziu ao distrito policial para a formalização do ato, o que não ocorreu em razão da testemunha ter se “retratado parcialmente”. Pergunto: a autoridade policial, ou seja, o delegado de polícia deveria, ou não, ratificar a voz de prisão?
Considero que a voz de prisão em flagrante exarada pelo promotor de Justiça não deve ser ratificada pela autoridade policial uma vez que, nessa hipótese, não há fundamento jurídico legítimo para ampará-la. Aliás, entendo que referendar uma voz de prisão nessa circunstância equivale a concordar com uma arbitrariedade e legitimar um poder inexistente. Vejamos.
Em primeiro lugar, não há de se falar em crime de “falso testemunho” se o depoimento foi produzido em procedimento não previsto no ordenamento jurídico, ou seja, sem fundamento legal que valide a sua existência, e mais, presidido por inquisitor sem competência à prática do ato de inquisição.
Como é cediço, o nosso sistema processual penal, do tipo acusatório, estabelece, nitidamente, a separação e as atribuições dos envolvidos na persecução penal. Inicialmente, na fase extraprocessual, no âmbito da Polícia Judiciária, temos a autoridade policial, ou seja, o delegado de polícia, com atribuição constitucional para, de maneira imparcial, esclarecer o fato criminoso e a respectiva autoria, e, na seqüência, temos a fase processual com as participações independentes do promotor de justiça, titular da ação penal pública; do acusado, amparado por seu defensor, e do juiz de direito.
Durante a fase extraprocessual, ou seja, investigativa, a autoridade policial, salvo raras exceções legais que afastam a sua competência, instaura inquéritos policiais para colher elementos probatórios a fim de verificar a ocorrência ou não de uma infração penal.
Assim, devido a sua imparcialidade e independência funcional, o delegado de polícia, autoridade legalista, atua para esclarecer o fato supostamente criminoso com o escopo de obter a verdade real dos fatos.
No caso sob análise, é fácil verificar que o sistema processual-constitucional, que congrega, dentre outros, os princípios da legalidade e do devido processo/procedimento legal, foram claramente violados por aquele que deveria tutelar o ordenamento jurídico e fiscalizar o seu cumprimento.
Em que pese existir entendimento em contrário desprovido de qualquer embasamento legal, é sabido que dentro do sistema processual penal brasileiro o Ministério Público ainda não dispõe de legitimidade para realizar investigações criminais. Aliás, o Poder Constituinte Originário foi explícito ao atribuir ao Ministério Público o poder-dever de instaurar “inquéritos civis” e “requisitar diligências investigativas e a instauração de inquérito policial”, de modo que em nenhum artigo, parágrafo, inciso ou alínea houve menção à possibilidade de o Ministério Público investigar fatos criminosos, encargo esse que deixou, expressamente, aos cuidados da Polícia Judiciária.
Ademais, nem mesmo em nível infraconstitucional existe legislação que permita ao Ministério Público realizar investigações criminais, exceto, é claro, a Lei Orgânica do próprio Ministério Público, em âmbito federal e estadual, no que se refere aos crimes cometidos por membros do parquet, cuja previsão legal, inclusive, é de duvidosa constitucionalidade.
Segundo recentemente decidiu o brilhante juiz de direito Marcelo Semer, titular da 10ª Vara Criminal da comarca de São Paulo:
“A legitimidade para a realização de investigação criminal não se encontra entre as funções institucionais do Ministério Público […] a titularidade da ação não equivale à titularidade da investigação criminal. A repartição de competências administrativas impostas pela Constituição ao invés de implicar mutuamente a titularidade da ação e da investigação, as distinguiu em dois órgãos: a Polícia e o Ministério Público. Não vale a regra interpretativa que se costuma empregar no abono à tese permissiva: quem pode o mais, pode o menos. São competências distintas que o legislador constituinte optou por manter em órgãos separados, justamente para preservar o equilíbrio no processo penal”.
Destarte, faz-se necessário preservar as distintas funções entre os órgãos, Polícia e Ministério Público, para se atingir o escopo do ordenamento jurídico, qual seja, manter a independência e harmonia entre as instituições encarregadas da persecutio criminis a fim de assegurar ao investigado, indiciado ou réu, um processo penal justo, com delegados e promotores imparciais e garantidores dos direitos fundamentais. Essa, evidentemente, foi e ainda é a vontade do legislador.
Para dirimir a questão, asseverou, também, o douto magistrado que:
“O princípio da legalidade tem diferentes dimensões quando se tratam do cidadão ou do administrador. Para o cidadão, a legalidade funciona como salvaguarda: ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, salvo por determinação de Lei. Para o agente público, o princípio da legalidade é o limitador de sua própria competência: no âmbito administrativo, só é possível fazer o que a Lei determina.
Por isso, tampouco se pode fundamentar a legitimidade da investigação na existência de poderes implícitos. Não há imposição de poder estatal ao cidadão que não esteja previsto no ordenamento constitucional. Neste sentido, o processo penal, que é garantia de direitos fundamentais, por tratar-se de instrumento de limitação da ação do Estado, também se perfaz numa adequação típica: não há procedimento capaz de vulnerar a liberdade do cidadão, para o qual não exista expressa previsão legal”.
Essa também é a opinião da subprocuradora-geral da República Delza Curvello Rocha ao comentar o acórdão proferido pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal nos autos do Recurso Extraordinário 205.473-9 onde se decidiu, unanimemente, que não cabe ao membro do Ministério Público realizar, diretamente, investigações criminais, mas sim requisitá-las à autoridade policial competente.
Segundo a ilustre subprocuradora-geral da República, “o fato de ter a Constituição Federal de 1988 entregue ao Ministério Público a titularidade exclusiva da ação penal pública não transfere para a instituição nenhuma parcela das atribuições dos órgãos policiais, constitucionalmente fixadas, nem autoriza o parquet a exercer administrativamente essas atribuições, concorrendo com a atividade policial.
Dessa forma, a instauração de procedimentos administrativos investigatórios destinados à formação de culpa, à investigação do indivíduo, para instruir futura ação penal, foge à atuação direta de qualquer órgão público, inclusive do Ministério Público, porque devem ficar jungidos a quem detenha constitucionalmente a titularidade para instaurar esse tipo de procedimento. Isso, por se encontrar submetido às regras constitucionais do controle judicial, na forma da Lei processual, sob pena de restar ferido o inciso LIII do artigo 5º:
‘‘Ninguém será processado (ab initio, de regra, investigado) nem sentenciado senão pela autoridade competente’’, além da inevitável afronta aos textos já citados do artigo 144, I e IV, e dos artigos 102, I, letras a e b; 105, I, letra a; 108, I, letra a, todos da Constituição Federal de 1988. Do alinhavado, extrai-se que a investigação criminal iniciada pelo membro do Ministério Público, com a realização de diligências, inclusive, de inquirição do investigado, em procedimento administrativo criminal desenvolvido no âmbito do parquet, se constitui em prática írrita, procedimento alheio ao ordenamento jurídico vigente, desvio administrativo eivado de inconstitucionalidade, visto ser atribuição exclusiva da Polícia o exercício das funções de polícia judiciária” (artigo publicado no sítio eletrônico da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol), intitulado Investigação Criminal em Procedimento Administrativo).
Sendo assim, a ausência de legitimidade do Ministério Público para presidir investigações criminais, em substituição a um inquérito policial, não decorre apenas da falta de previsão legal, mas da própria atribuição constitucional desta competência a outro órgão administrativo.
Sob esse enfoque, ao comentar o artigo 4º do Código de Processo Penal, o ilustre professor Guilherme de Souza Nucci ensina que “ao Ministério Público cabe, tomando ciência da prática de um delito, requisitar a instauração de investigação pela polícia judiciária […]. O que não lhe é constitucionalmente assegurado é produzir, sozinho, a investigação […] o sistema processual penal foi elaborado para apresentar-se equilibrado e harmônico, não devendo existir qualquer instituição superpoderosa” (in “Código de Processo Penal Comentado”; página 68; 6ª edição; 2007).
Nesse sentido manifestou-se o STF ao proferir o seguinte acórdão nos autos do recurso ordinário 81.326/DF:
“A Constituição Federal dotou o Ministério Público do poder de requisitar diligências investigativas e a instauração de inquérito policial (CF, artigo 129, III). A norma constitucional não contemplou a possibilidade do parquet realizar e presidir inquérito policial. Não cabe, portanto, aos membros do parquet inquirir diretamente pessoas suspeitas de autoria de crime”.
Logo, ante todo o exposto, está evidente o campo de autuação de cada instituição dentro do ordenamento jurídico processual penal. Assim, suas diferenças, longe de desmerecê-los, os tornam melhores e mais capazes de se especializarem nas suas funções, sendo que a interferência indevida de um na atribuição do outro, além de caracterizar uma grave ofensa institucional, compromete, de maneira irreparável, a imparcialidade em que se fundamenta o sistema processual penal pátrio.
Ademais, se falta legitimidade constitucional e infraconstitucional ao Ministério Público para instaurar procedimento de cunho investigativo-criminal, disso decorre, como conclusão lógica, que todos os atos praticados pelo promotor-investigador, dentre estes oitivas de testemunhas, são, no mínimo, absolutamente nulos, ou, até mesmo, inexistentes, pois violam normas de natureza constitucional e, por conseguinte, juridicamente ineficazes para gerar os efeitos jurídicos almejados.
Não se trata de discutir se a Polícia Judiciária detém o monopólio da investigação, mas sim de que o poder-dever investigatório criminal não foi legalmente atribuído ao Ministério Público. Quem sabe, futuramente, o Supremo Tribunal Federal reconheça essa atribuição aos combativos promotores e o Poder Legislativo seja provocado a inseri-lo no ordenamento jurídico.
Todavia, o que não se pode aceitar em um Estado de Direito é que instituições públicas desprovidas do poder legiferante inovem o sistema processual com a expedição de atos normativos, com caracteres próprios de Lei, para impor obrigações aos membros da sociedade.
O “procedimento de apuração criminal” criado pelo Ministério Público é um instrumento que atenta contra o Estado de Direito e contra os Direitos e Garantias Fundamentais haja vista que foi criado por um ato normativo interna corporis, ao arrepio da Lei, e cuja tramitação segue em absoluto sigilo, até mesmo à revelia do Poder Judiciário, sem nenhum tipo de fiscalização externa. O “PAC” é como um corpo sem alma!
Além do mais, toda prova produzida pelo Ministério Público em procedimento de investigação criminal, análogo ao inquérito policial, deve ser considerada ilícita, pois, ao investigar crimes, o promotor de justiça exorbita as suas atribuições constitucionais, viola Direitos Fundamentais Constitucionais pertinentes e usurpa a competência constitucional de outra instituição, a Polícia Judiciária, que, ressalvadas as exceções constitucionais, detém o poder-dever de apurar as infrações penais comuns.
Sendo assim, diante dos argumentos aduzidos e dos entendimentos doutrinários e judiciais transcritos, concluo que uma testemunha, mesmo que venha a mentir no bojo de um procedimento de investigação criminal instaurado pelo Ministério Público, jamais cometerá o crime de falso testemunho haja vista que o procedimento é juridicamente inválido, pois legalmente inexistente, e o ato de inquirir é realizado por inquisitor desprovido de competência legal para praticá-lo.
Revista Consultor Jurídico