por Aline Pinheiro
Ao julgar recurso de uma procuradora aposentada do Ibama, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, reconheceu que, antes do surgimento da Advocacia-Geral da União, a advocacia pública era uma bagunça. Ele atribuiu a essa desorganização a possível falha de que era acusada a procuradora e votou pela sua absolvição.
“Quem tem alguma experiência com a advocacia pública sabe das dificuldades para a organização de um sistema adequado”, relata o ministro, que foi chefe da AGU de 2000 a 2002. Ele admitiu que, antes de a AGU nascer, o setor da advocacia pública era confuso, mal organizado e, por conta disso, o poder público acabou sendo condenado a pagar somas absurdas. “Ausência de controle, ausência de quadros e falta de gerência específica eram a tônica.”
Para o ministro, essa desorganização propiciou o que ele chama de “estelionato pela via judicial”. Gilmar Mendes conta que muitos advogados “envolvidos com crimes sérios, muito semelhantes àqueles noticiados pela chamada operação Anaconda”, aproveitavam dessa falta de estrutura e atuavam contra o poder público.
“É famoso um caso de transferência de crédito do Sindicato dos Servidores da Funasa-RN a um grande escritório de advocacia, com 80% de deságio. São expressivos os casos de decisões contrárias à jurisprudência desta corte, que somente foram revertidas graças à atuação da Advocacia-Geral da União”, conta.
O caso
O reconhecimento da desorganização da advocacia pública foi apresentado no voto-vista do ministro no pedido de Mandado de Segurança da procuradora jurídica do Ibama Alzira de Almeida Pinto da Silva, já aposentada. Ela foi punida com o corte da sua aposentadoria em um processo disciplinar, acusada de não esgotar todos os recursos processuais contra decisão que obrigou o instituto a pagar as correções salariais das perdas dos planos Bresser e Collor.
Na época (1992 a 1996), a servidora era chefe da procuradoria jurídica do instituto em Florianópolis. Cerca de 300 servidores e a própria procuradora foram beneficiados pela sentença, disse o Ibama. Ela teria perdido prazo também para recorrer.
No Supremo, a maioria dos ministros ressaltou que a própria comissão de sindicância do Ibama atribui à perda do prazo para recorrer à desorganização do instituto, que não tinha nem assinatura do Diário de Justiça. Testemunhas também relataram a bagunça que era o órgão na época.
Por isso, os ministros consideraram não haver provas suficientes para punir a procuradora pelo fracasso no processo contra o Ibama. Assim, devolveram a ela o direito à aposentadoria.
Veja o voto do ministro Gilmar Mendes
02/08/2004
TRIBUNAL PLENO
MANDADO DE SEGURANÇA 23.041-5 SANTA CATARINA
VOTO VISTA
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES:
Pedi vista dos autos do Mandado de Segurança em que a impetrante, ex-chefe da Procuradoria Jurídica do IBAMA, impugna conclusão de comissão de inquérito que recomendou a cassação de sua aposentadoria.
A questão vem assim sintetizada no parecer do Ministério Público:
“Trata-se de mandado de segurança (fls. 02/26) impetrado por ALZIRA DE ALMEIDA PINTO DA SILVA contra o PRESIDENTE DA REPÚBLICA, objetivando a anulação de processo administrativo conclusivo pela cassação de sua aposentadoria.
Nos termos da inicial, a impetrante ocupou o cargo de Chefe da Procuradoria Jurídica do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA – em Florianópolis/SC; entre setembro de 1993 e maio de 1996.
Aduz que em ação proposta pelo Sindicato dos Servidores Públicos do IBAMA, houve condenação judicial do órgão à correção dos vencimentos de seus servidores pelo percentual de 84.32%.
Dessa sentença não foi interposto recurso de apelação, o que resultou no seu trânsito em julgado e no cumprimento da decisão judicial pela autarquia.
Posteriormente, instaurou-se sindicância que concluiu pela necessidade de abertura de processo administrativo disciplinar contra a impetrante, àquela altura já inativada. Com o termo de indiciação, aduz a impetrante que ‘foi enquadrada nos incisos IX e XV do art. 117, no inciso IV do art. 132 (Lei n° 8.112/90), este último combinado com os incisos I e II do art. 11 da Lei n° 8.429/92, por não ter apelado da sentença de mérito e não ter ajuizado agravo de instrumento ou mandado de segurança contra o despacho judicial que estendeu o Plano Collor a todos os substituídos da referida ação ordinária ajuizada pelo Sindicato de Classe; por ter omitido em seu parecer de 11/10/94 que a extensão determinada pela juíza substituta era divergente da sentença e por isto manifestamente ilegal; por ter recomendado, aos servidores do IBAMA que não constavam da relação anexada à ação ordinária ajuizada pelo Sindicato, quando lhe foi comunicado a suspensão do pagamento do benefício em favor deles, que procurassem providências da entidade de classe no sentido de reverter a situação e assim obedecer-se a decisão judicial; por não ter, na qualidade de Chefe da Procuradoria, tomado as providências para a assinatura do Diário da Justiça; por não ter ajuizado a ação rescisória nos prazos que lhe foram determinados’ (fl. 05).
Segundo suas alegações, encerrado o processo administrativo disciplinar, o relatório final da comissão processante apontou ‘inocente a acusada-impetrante da acusação de perda do prazo de apelação, atribuindo o evento à desorganização e à falta de Diário de Justiça para o acompanhamento dos processos Judiciais do IBAMA, propondo à autoridade julgadora que a acusada seja julgada por infringência ao inciso I do art. 116 da Lei n° 8.112/90 – por não ter sido leal à instituição; por ofensa ao inciso III do art. 116 da Lei 8.112/90 – inobservância de normas legais e regulamentares; por violação ao inciso IX do art. 117 da Lei n° 8.112/90 – valer-se do cargo para lograr proveito pessoal em detrimento da dignidade da função pública; por infringência ao inciso XV do art. 117 da Lei 8.112/90 – proceder de forma desidiosa; por vulneração ao inciso IV do art. 132, combinado com os incisos I e II do art. 11 da Lei 8.429/90 – improbidade administrativa; por ofensa ao inciso X do art. 132 da Lei 8.112/90 – ter causado lesão aos cofres públicos’ (fl. 05). Em decorrência, propôs a referida comissão a cassação da aposentadoria da impetrante.
Impingindo a nulidade do processo administrativo, alega a impetrante que a indiciação teria ampliado a acusação, vício também estendido ao relatório final, que teria abordado infrações não constantes sequer do termo de indiciação, como a transgressão de não ter sido leal para com a instituição e de não ter observado as normas legais e regulamentares, o que afetaria o princípio da ampla defesa.
Quanto à perda do prazo do recurso de apelação. sustenta que ‘a impetrante nunca funcionara nesse processo como procuradora autárquica, caindo, assim, por terra, a alegada violação ao inciso XV (desídia) do art. 117 da Lei 8.112/90’ (fl. 09).
Relativamente à suposta extensão indevida da correção remuneratória a todos os servidores do IBAMA, quando o conteúdo sentencial seria de menor abrangência, assevera que a interpretação da decisão judicial, ao se referir aos ‘substituídos’ do sindicato, atingiria todos os servidores pertencentes à categoria profissional do sindicato dos servidores do IBAMA no Estado de Santa Catarina.
Aduz a impetrante que ‘de qualquer maneira, considerando que a improbidade do inciso IV do art. 132 da Lei 8.112/90 é dolosa, seria preciso ainda provar que a impetrante, deliberadamente, intencionalmente, praticou algum ato de desonestidade, imoral, para não interpor o agravo, o que não foi feito, por, é claro, não ter existido nenhum ato desonesto (…)’ (fl. 12).
No tocante à inexistência de assinatura do Diário da Justiça de Santa Catarina para acompanhamento dos feitos, menciona a impetrante que ‘conforme comprova do depoimento de GABRIEL ELKOURA, transcrito no próprio Relatório de fl. 22, a impetrante já havia solicitado a regularização da assinatura deste Jornal. A mesma versão é confirmada pelo depoimento de MARIA DAS GRAÇAS ADRIANO (fl. 337 do processo administrativo), não transcrito no Relatório, segundo a qual ‘após assumir a chefia da Procuradoria da SUPES/IBAMA/SC., a Dra. Alzira solicitou a renovação da assinatura do Diário da Justiça do Estado. Que não houve tal renovação em razão da falta de recursos orçamentários na SUPES/SC. Que, a primeira solicitação formulada pela Dra. Alzira, pedia a renovação da assinatura do Diário da Justiça por 1 ano’ (fls. 17/18).
A ausência de propositura de ação rescisória é justificada pela impetrante da seguinte forma:
‘49. Outra acusação completamente infundada. A impetrante, em razão do despacho judicial da juíza substituta, que mandou pagar a todos os servidores do IBAMA os já referidos planos, era beneficiária. Em conseqüência, não podia ajuizar ação rescisória contra a sentença que a beneficiava, em razão de, na técnica processual, ser parte interessada. Essa situação basta para afastar qualquer ilicitude no fato de a impetrante não ter ajuizado a rescisória. Registre-se, a propósito, que o Procurador-Geral do IBAMA, ao contrário do afirmado no Relatório de fl. 25, reconheceu o impedimento da impetrante para o ajuizamento da rescisória, quando em seu depoimento (fl. 353 do Processo Administrativo) considerou que ‘entretanto, até por questões de ética profissional, se o procurador passou a ser beneficíário, obviamente não poderia paralelamente a tal situação, proceder a defesa do órgão, o que nos levou a preparar a Ação Rescisória e a Cautelar Inominada Incidental em Brasília-DF, e remeter à SUPES/RS, para ingresso, no TRF da 4ª Região.’ (fl. 19)
Rebatendo a acusação de aproveitamento do cargo para lograr proveito pessoal em detrimento da dignidade da função pública, tipificada no inciso IX do art. 117 da Lei n° 8.112/90, argumenta que ‘o fato, em suma, de ter sido beneficiária de uma decisão judicial não a torna aproveitadora do cargo para lograr proveito pessoal, eis que o ato não é seu, mas sim do Poder Judiciário’ (fl. 22).
Ao final, alega que ‘deve ser ponderado que a cassação de aposentadoria que se pretende infligir à impetrante, como sanção disciplinar, é inteiramente desproporcional ao passado de uma servidora pública que dedicou com zelo, dedicação, e competência a maior parte de sua vida ao serviço público, quer como funcionária de apoio, quer como procuradora autárquica, sem que tenha cometido qualquer deslize funcional, até a sua aposentadoria aos 60 anos de idade.’ (fl. 26).
Concedeu-se a medida liminar (fls. 573/574).
Informações da autoridade coatora às fls. 580/590, em que se impugna a alegação de ofensa á ampla defesa, expondo-se ainda que ‘no despacho de instrução e indiciação de fls. 296 e 297, são evidenciados os fatos e indicadas as respectivas provas, proporcionando fácil verificação das imputações e a elaboração da defesa’ (fl. 586).
Em relação às infrações, sustenta-se que ‘uma vez apuradas a falta e a autoria, a inflição de penalidade passa a constituir dever indeclinável, em decorrência do caráter de norma imperativa de que se revestem os arts. 129, 130, 132, 134 e 135, da Lei nº 8.112, de 1990’ (fl. 587).
Encerra-se a peça informativa com o entendimento de que ‘a justeza da punição que venha a ser aplicada somente será avaliável mediante exame de provas, o que torna o mandado de segurança inadequado para oferecer a prestação jurisdicional pretendida (fl. 589).”
O eminente Relator indeferiu a pretensão com base nos seguintes fundamentos:
“O termo que se vê, por cópia, às fls. 423/424, indicia a impetrante ‘pelo cometimento de transgressões previstas nos incisos IX e XV do art. 117; inc. IV do art. 132, combinado com os incisos I e II do art. 11 da Lei 8.429/92; incisos X e XIII, também do art. 132, todos da Lei 8.112/90’, seguindo-se a indicação dos fatos ensejadores da indiciação. (Proc. Admin., fls. 296/297; nestes autos, fls. 423/424).
Não há falar, portanto, no caso, em cerceamento de defesa que implicaria nulidade do procedimento administrativo.
Inocorrente, então, nulidade do procedimento administrativo, lamento divergir do eminente Subprocurador-Geral, Dr. João Batista de Almeida, que opina pela concessão do writ. É que, somente com o exame das provas existentes no procedimento administrativo, vale dizer, com o exame do mérito deste, é que poderíamos concluir pela concessão da segurança. E esse exame não pode ser feito no processo do mandado de segurança, que pressupõe fatos incontroversos.
Com efeito.
A Comissão de Inquérito, é certo, desqualificou a acusação feita à impetrante, de ‘não ter apelado da sentença na ação ordinária nº 92.11634-5, conforme lhe cabia’. Todavia, com base nas provas colhidas, entendeu que a impetrante teria cometido outras faltas, constantes do termo de indiciação, que justificariam a pena imposta.
Leio a conclusão do relatório:
‘(…)
Honrados com a designação e certos de termos realizado este apuratório embuídos do espírito de honestidade, imparcialidade e justiça, que devem ser norteadores desses trabalhos, conclui este Colegiado, por tudo que foi exposto, que a acusada deve ser julgada pelas infringências:
1 – inciso I do art. 116 da Lei 8.112/90 – por não ter sido leal à Instituição;
2 – inciso III do art. 116 da Lei 8.112/90 – por inobservar as normas legais e regulamentares;
3 – inciso IX do art. 117 da Lei 8.112/90 – por valer-se do cargo para lograr proveito pessoal e de outrem, em detrimento da dignidade da função pública;
4 – inciso XV do art. 117 da Lei 8.112/90 – proceder de forma desidiosa;
5 – inciso IV do art. 132 da Lei 8.112/90 combinado com os incisos I e II do art. 11 da Lei 8.429/92 – improbidade administrativa.
6 – inciso X do art. 132 da Lei 8.112/90 – por ter causado lesão aos cofres públicos;
Obs.: O item 6 terá, do membro ANA EMÍLIA GAZEL JORGE, voto apartado em razão de discordância quanto à responsabilidade da acusada, pelo prejuízo ao erário público.
7 – inciso XIII do art. 132 da Lei 8.112/90 – pelas transgressões dos incisos IX e XV do art. 117 da Lei 8.112/90.
Propõe, assim, caso acatado no julgamento as tipificações apresentadas, com base no art. 134 da Lei 8.112/90, seja cassada a aposentadoria de ALZIRA DE ALMEIDA PINTO DA SILVA, qualificada na Portaria Inaugural nº 1.439/97-P de 03 de outubro de 1997, publicada no Boletim de Serviço nº 010 de 06 de outubro de 1997.
(…)’
Também é verdade que houve voto divergente, relativamente à falta do inc. X do art. 132 da Lei 8.112/90 – ‘prejuízos advindos da extensão dos efeitos da sentença a aproximadamente 300 servidores do IBAMA-SC’ (fls. 560/561). Ao que parece, a divergência não foi integral, porque não se refere, o voto vencido, às demais faltas relacionadas na conclusão do relatório. A apreciação dessa divergência não prescindiria, evidentemente, do exame das provas colhidas no procedimento administrativo. É dizer, os fatos não são incontroversos.
Ora, o requisito fundamental, básico, do mandado de segurança é a ocorrência de direito líquido e certo. E direito líquido e certo pressupõe fatos incontroversos, não se admitindo, no processo do mandado de segurança, dilação probatória.” (Voto Min. Carlos Velloso, fls. 2/5).
Peço vênia para divergir.
Embora afaste a procedência dos argumentos da impetrante quanto à configuração de vícios formais, o Parecer da Procuradoria-Geral da República, da lavra do Subprocurador-Geral da República, Sr. Dr. João Batista de Almeida, não vislumbra, a existência de falta apta a justificar a pena máxima na espécie.
Diz a Procuradoria-Geral da República:
“Explicitou-se na petição inicial do mandamus – e as informações da autoridade coatora não refutam esses dados – que a atuação da impetrante não revelou comportamento erigível a quebra de dever funcional ou prática de ato proibido pela lei.
Com efeito, a não interposição de recurso de apelação da sentença concessiva de reajuste remuneratório aos servidores do IBAMA foi justificado pela própria comissão processante, que em seu relatório final assentou que ‘entendeu este Colegiado, numa última análise, por desqualificar esta acusação por ter reconhecido as dificuldades e circunstâncias que encontrou a acusada ao assumir a Chefia da DIAJUR/SC’ (fl. 540), pois ‘quase que à unanimidade, todas as testemunhas afirmam que havia uma enorme desorganização, não só naquela divisão como também, de modo geral em toda a Superintendência. Não havia nítidos controles nem do número de ações, como também para quais Procuradores estavam distribuídas’ (fl. 541).
Entendeu-se, portanto, que a impetrante não tinha responsabilidade pelo controle do específico processo que resultou na sentença favorável aos servidores do IBAMA.” (fl. 665)
Da mesma forma, observa a Procuradoria-Geral da República, em relação à não realização de assinatura do Diário de Justiça do Estado:
“A acusação de ausência de renovação de assinatura do Diário de Justiça do Estado, por sua vez, liga-se com a reconhecida desorganização do órgão admitida pela comissão processante, em trecho acima transcrito. Segundo o relatório final, à fl. 548, houve depoimentos que asseguraram a existência de requerimento, pela impetrante, de providências para a regularização da assinatura, desconsiderados pela comissão.” (fl. 667)
Quem tem alguma experiência com a advocacia pública sabe das dificuldades para a organização de um sistema adequado, especialmente nos casos que se seguiram à promulgação da Constituição de 1988.
Não foi por acaso que, neste campo, sucederam-se escândalos com a condenação do Poder Público a somas absurdas. Esta foi seara de atuação grandemente extensa daquilo que eu tenho chamado de “estelionato pela via judicial”. Propunham-se ações contra entes indefesos. Impunham-se cálculos que jamais seriam conferidos. É por isso que alguns segmentos da advocacia envolvidos com crimes sérios, muito semelhantes àqueles noticiados nessa chamada operação Anaconda, passaram a atuar na advocacia contra o Poder Público, especialmente contra as autarquias e fundações. Especialmente em Brasília, esses casos parecem ter produzido sócios ocultos. É que o advogado do interior apostava na capacidade que algum colega mais conhecido pudesse exercer no âmbito dos Tribunais Superiores. É famoso um caso de transferência de crédito do Sindicato dos Servidores da FUNASA-RN a um grande escritório de advocacia, com 80% de deságio. São expressivos os casos de decisões contrárias à jurisprudência desta Corte, que somente foram revertidas graças à atuação da Advocacia-Geral da União.
Não foi por outra razão que as medidas processuais, legais e administrativas, tomadas no sentido de coarctar todo esse quadro de abusos, sofreram críticas, especialmente por parte de pessoas que se beneficiavam da situação de desordem, partícipes diretos do estelionato, às vezes na condição de “sócios ocultos”.
De qualquer sorte, muitas medidas estruturais foram implantadas pela Advocacia-Geral da União, como a assunção direta da representação judicial de mais de 100 autarquias e fundações, criação da carreira de Policial Federal e de Procurador-Geral Federal – e, com isto, desestruturou-se, em parte, a organização que se dedicava à pilhagem dos cofres públicos.
O desaparelhamento da advocacia pública coincide com a explosão das demandas em decorrência de planos econômicos mal sucedidos. No plano federal, a Advocacia-Geral da União somente seria instituída em 1994.
Se a advocacia pública da administração direta, com suas dificuldades materiais, encontrou alguma solução plausível, é certo que as autarquias e fundações enfrentavam uma situação ainda mais crítica. Ausência de controle, ausência de quadros e falta de gerência específica eram a tônica.
Na mesma linha, a Procuradoria-Geral da República desqualificou a relevância de outras faltas atribuídas à impetrante:
“A questão da ausência de interposição de recurso da decisão judicial que determinou a extensão do reajuste a todos os servidores do IBAMA — aí incluída a impetrante —, e não apenas a certo grupo, como vislumbrado pela comissão processante, foi justificado pela impetrante como resultante de determinada linha de interpretação que imprimiu ao termo “substituídos”, constante da sentença, a abrangência a todos os servidores do IBAMA no Estado de Santa Catarina, por entendê-los componentes da mesma categoria profissional, aplicando em suporte a esse entendimento o que disposto no art. 8º, III, da CF/88. Esse entendimento, segundo os autos, foi externado pela impetrante em um parecer, submetido ao Procurador Geral da autarquia, o qual acabou por reformá-lo.
Tal interpretação não pode ser taxada como resultante de má-fé da impetrante, considerando-se que o próprio magistrado prolator da sentença foi quem determinou essa extensão, ao acolher provocação do sindicato dos servidores. Não se cuida, portanto, de uma alteração de posicionamento promovida pela impetrante.
Desta forma, não se pode concluir, com a segurança exigível para uma responsabilização funcional, que a impetrante tenha agido diretamente em proveito pessoal e de outrem, ou mesmo com desídia ou improbidade.
Estas mesmas razões se aplicam ao despacho transcrito pela comissão processante à fl. 547, que dá conta do encaminhamento, ao sindicato dos servidores, de decisão administrativa de exclusão do reajuste dos servidores não relacionados na ação judicial proposta pelo sindicato, “no sentido de dar conhecimento aos servidores listados e providências junto ao Sindicato e seus Advogados, no sentido de reverter a situação, obedecendo-se a decisão judicial”.
Desse trecho acima reprisado, entendeu a comissão processante que o mesmo serviu de “instrução e alerta aos Advogados do SINDICATO” (fl. 547), no que a impetrante novamente incidiria nas transgressões de se valer do cargo em benefício próprio e de outrem, desídia e improbidade.
Ocorre que, mais uma vez, não se pode extrair tal ilação desse documento. Nota-se, efetivamente, um aviso inconveniente de sua prolatora, considerando-se a função desempenhada de Chefe da Procuradoria Jurídica da autarquia. Não há, contudo, qualquer efeito vinculativo ou decisivo em relação ao reajuste perseguido pelos servidores, para que se conclua por uma infração punível com a cassação de aposentadoria.” (fls. 666/667)
Também aqui resta evidente que, se existiram irregularidades, elas não são adequadas para produzir a decretação da perda do cargo. Tudo situa-se muito mais no contexto da desorganização administrativa que parecia envolver o órgão jurídico da autarquia.
Por último, a falta de legitimidade da impetrante no que concerne à propositura de eventual ação rescisória mereceu a seguinte consideração da Procuradoria-Geral da República, verbis:
“Finalmente, a falta de ajuizamento de ação rescisória, que a comissão processante entendeu como de competência da impetrante, fica superada pelo reconhecimento de impossibilidade de atuação externado pelo Procurador Geral da autarquia em seu depoimento, onde se expôs que “por questões de ética profissional, se o procurador passou a ser beneficiário, obviamente não poderia paralelamente a tal situação, proceder a defesa do órgão, o que nos levou a preparar a Ação Rescisória e a Cautelar Inominada Incidental em Brasília-DF, e remeter à SUPES/RS, para ingresso, no TRF da 4ª Região” (fl. 479).” (fl. 667)
Vê-se, pois, que também aqui não subsiste qualquer fundamento para a conclusão do inquérito administrativo em apreço. Se a própria impetrante era beneficiária de decisão judicial, não lhe cabia fazer a defesa do órgão nessa condição.
De resto, a instituição não restou indefesa, porque a própria Procuradora Geral da autarquia incumbiu-se da propositura da referida ação.
É muito expressiva do quadro de desmando na instituição o que resulta do voto divergente proferido pela Sra. Ana Emília Gazel Jorge, membro da Comissão de Inquérito.
Registre-se a íntegra desse manifestação, verbis:
“Tendo em vista entendimento divergente quanto a esta acusação, tipificada no item 2 do Despacho de Instrução e Indiciação como incursa nas penalidades do inciso X, do artigo 132 da Lei 8.112/90, apresento em apartado o meu voto no que se refere aos prejuízos advindos da extensão dos efeitos da sentença a aproximadamente 300 servidores do IBAMA-SC.
Entendo como os demais integrantes da Comissão, que os pagamentos realizados aos servidores contemplados com a extensão dos efeitos da sentença trouxeram prejuízos aos cofres do IBAMA. Aqui não há o que se discutir.
Entretanto, em que pese o reconhecimento de tais prejuízos, estes não podem ser atribuídos à acusada, mas sim a quem, em velada desobediência à orientação da Procuradoria Geral, devidamente ratificado pelo então Presidente do IBAMA, às fls. 194 do Processo Administrativo nº 02026.003056/94-71, assumiu fazer tais pagamentos.
Os erros e omissões verificados no Parecer da acusada (fls. 266/268 do PAD), já estavam sanados pelo despacho do Procurador Geral. Contudo, há que se ressaltar que a maior gravidade se observa quando se vê, naquele despacho do Sr. Procurador Geral, que alertava para que o pagamento se fizesse a apenas e tão-somente aos servidores listados na relação de substituídos, ser ignorado e descumprido sem o menor constrangimento.
É, no mínimo, inusitado que a decisão proferida pela autoridade máxima da área jurídica do IBAMA, a quem cabe a última palavra nas questões judiciais, mesmo ratificado pelo Presidente da Instituição tenha sido descumprida, sem que para tanto, houvesse algum questionamento.
Tivesse aquele despacho sido cumprido em seus precisos termos, a indevida incorporação não se teria efetivado e, conseqüentemente não se haveria de questionar tais prejuízos.” (fls. 560/561)
O exame dos documentos constantes dos autos demonstra, à saciedade, que as faltas atribuídas à impetrante não se configuraram. Ou ainda, conforme opina o Ministério Público Federal, se infrações houve, estas não seriam adequadas a justificar uma cassação de aposentadoria.
Por outro lado, não parece restar dúvida, tal como se deduz também da manifestação da Procuradoria-Geral da República e do próprio voto divergente de membro da Comissão de Inquérito, que as falhas são de natureza fundamentalmente estrutural.
Não vislumbro, portanto, controvérsia quanto aos fatos a demandar dilação probatória, o que realmente não seria admissível em sede de mandado de segurança.
De fato, o processo administrativo em que se concluiu pela cassação de aposentadoria da impetrante envolvia a apuração de uma série de condutas que, vistas em seu conjunto, podem aparentar alguma complexidade. Mas daí não se pode dizer que há controvérsia quanto às questões de fato que, penso, estão todas postas nos autos, dispensando qualquer dilação probatória.
Não vejo, assim, qualquer razão para remeter a impetrante para as vias ordinárias.
Nesses termos, o meu voto é pela concessão da ordem, com a desconstituição do processo administrativo disciplinar, tendo em vista a não comprovação da prática, pela impetrante, de infrações funcionais que justifiquem a cassação de sua aposentadoria.
Revista Consultor Jurídico