Direito da mulher – Autorizar aborto é preservar o princípio da vida

por Antonio de Assis Nogueira Júnior

A interpretação literal do nosso arcaico Código Penal no concernente ao aborto mostra-se insuficiente para compreender a realidade e a violência perpetrada pelo Estado contra a única vítima desta tirania exegética: a mulher pobre. Mãe da Humanidade, a mulher pobre é punida covardemente pela inquisição dogmática dos operadores do Direito, condenando-a abrigar no ventre (a monstruosidade de) um ser anencéfalo. Ela tem de ocupar um lugar ao sol, dispor de peso e voz na sociedade civil. Gerando a morte ao invés da vida, não há consolo porque a História da Humanidade tem sido até o momento a História do Capitalismo.

É sabido que neste sistema os princípios são humanos, porém a realidade é chancelada nas diversas formas de violências e nas diferentes modalidades de fraudes. A ordem capitalista tem mostrado que não é uma fase transitória do processo histórico, mas a forma absoluta e definitiva da produção social. O nosso sistema capitalista é tosco e brutal, pois não oferece à maioria dos cidadãos um padrão de vida decente, um mínimo de segurança e de igualdade perante a lei. O Direito posto e imposto à coletividade tem a sua origem na produção econômica.

A maior vítima é, sem dúvida, a mulher pobre, pois é mantida na ignorância e é dominada pelo poder coercitivo de normas jurídicas caducas e injustas que não buscam a pacificação social, mediante hermenêutica favorável à dor e ao intenso sofrimento dela. Os seus apelos não são ouvidos nem fazem eco na consciência dos privilegiados e dos poderosos.

A escolha, em se tratando de aborto em sentido amplo, será sempre da competência exclusiva da mulher, pois é dona do seu corpo e da inalienável liberdade de agir, não obstante sofrer da interferência abusiva dos dogmas jurídicos e religiosos, os quais constituem em verdadeiro abuso de direito tal invasão em sua intimidade e estrita privacidade quando procurará repelir estas invasões bárbaras. Por outro lado, o sistema jurídico e os seus operadores ainda não conseguiram superar os dogmas e as contradições, cujas decisões judiciais são ainda muito prejudiciais à saúde (e à felicidade) da mulher pobre.

Assim se manifestou, sem rodeios, o articulista da Revista Veja, André Petry: “…. o STF deu guarida ao autoritarismo religioso pelo qual todos têm de viver sob os ditames da fé – queiram ou não, sejam crentes, sejam ateus. Afinal, a liminar não obrigava mulher alguma a interromper a gravidez de um feto sem cérebro. Apenas autorizava o aborto às mulheres que, torturadas pela dor psicológica de gerar um filho que morrerá ao nascer, quisessem fazê-lo. A idéia, generosamente humana, era conceder a elas o direito de fugir do suplício de dar à luz um filho que, já em sua primeira noite, em vez do berço, deita no caixão”1.

Uma das vozes mais poderosas que impera no social é a dos formadores de opiniões, verdadeiros dominadores das mentes e corações do público, em que a mulher pobre aceita passivamente, talvez por estar em avançado estado de alienação, toda uma situação que lhe é tremendamente prejudicial. Na realidade, o Direito é uma superestrutura erigida sobre a base de relações econômicas e de poder que tem o Estado como instrumento de dominação. Inexiste neutralidade do Direito posto e imposto nas leis, pois as relações de produção são regulamentadas sempre no interesse da classe dominante cujos detentores do poder utilizam da ideologia jurídica como instrumento de persuasão. Atualmente, dada às correlações de forças, a mulher pobre continuará sendo ainda a maior perdedora, no sentido de exigir que a ideologia jurídica dominante seja interpretada de maneira favorável à sua situação. É preciso que os operadores do direito comprometidos com a felicidade e a dignidade da mulher pobre encontrem formas de enfrentar a prepotência dos dogmas jurídicos.

Na ideologia do sistema capitalista notamos princípios humanísticos explicitadas na Lei Maior: Constituição Federal. Porém, a realidade brasileira é constituída de mulheres e de crianças pobres, cujo incipiente sistema capitalista é paradoxalmente infame e perverso, tal como se nota na limitada democracia. Até quando o Brasil continuará sendo o mais desigual entre os desiguais? (O mais injusto entre os injustos?).

Ponto de partida interessante para começar a vencer barreiras somente ocorrerá quando o poder dos operadores do Direito estiver comprometido na solução jurídica e judicial dos problemas brasileiros e quiser praticar a máxima do progressista jusfilósofo Roberto Lyra Filho: Para um Direito sem Dogmas. E sem esquecer das análises e ensinamentos do nosso maior cientista social do século XX: Florestan Fernandes. Mestre dos mestres, foi considerado pelo historiador Eric J. Hobsbawm um dos cinco maiores cientistas sociais e intérpretes de nossa época2. Em suma, o Direito é então absorvido na própria Lei. Vitória do positivismo jurídico que tem na dogmática a sua razão de ser.

Asseverou Roberto Lyra Filho, com a competência de profundo conhecedor desta realidade, que “o dogma, afinal, atravessa a história das idéias como uma verdade absoluta, que se pretende erguer acima de qualquer debate; e, assim, captar a adesão, a pretexto de que não cabe contestá-lo ou a ele propor qualquer alternativa”3. Por outras palavras, é o dogma a verdade absoluta, aceita às cegas e sem crítica, beneficiando a classe dominante. As normas jurídicas estatais são exemplos acabados do dogmatismo ao defenderem o caduco, pois combatem o novo, o progressista.

Na religião cristã sobressai o catolicismo com os seus dogmas como extensão da palavra de Deus, que é tão-somente uma idéia (adendo: ressaltou Camus que “Se Deus existe, tudo depende dele e nós nada podemos fazer contra a sua vontade. Se não existe, tudo depende de nós. Tanto para Kirilov como para Nietzsche, matarmos Deus (crime metafísico) é tornarmo-nos nós próprios Deus; enfim é tornar-se Deus – ou seja, é realizar nesta Terra a vida eterna de que fala o Evangelho…” … Por outro lado, “O homem não fez mais que inventar Deus para não se matar. Assim se resume a história universal até este momento” – O Mito de Sísifo, p. 122/123). A teologia é feita sistematicamente sempre a partir das massas oprimidas e nunca a partir das elites do poder.

As religiões universais são insidiosas para com as massas; buscam seres obedientes que serão domesticados como fiéis e uma vez acostumados a essa experiência repetida vezes serão incapazes de renunciar a abstração de um Deus todo poderoso. Assim sendo, na certeza de que o feto é anencéfalo, o teólogo e o positivista jurídico, ambos presos na camisa-de-força dos dogmas, procuram as fontes da vida numa autópsia! Todos os anencéfalos, se ainda vegetativamente vivos no ventre materno, morrem logo após o parto.

Não se vislumbra nos dogmas nenhuma perspectiva libertadora nem indícios de transformarem-se pelo menos culturalmente, porque todo o Direito é arbitrariamente reduzido à norma jurídica formalizada e em decisão fossilizada (injusta e retrógrada). Ou seja, para o positivista o Direito é um saber dos dogmas, repetidos à exaustão. A não-autorização judicial da antecipação do parto é porque “alguns juízes são absolutamente incorruptíveis. Ninguém consegue induzi-los a fazer Justiça” (Bertolt Brecht). É em nome da segurança jurídica que se quer que o juiz proceda maquinalmente como juiz obediente à literalidade da lei, alheio aos valores do humanismo e à circunstância da vida e da existência das mulheres pobres.

Todavia, a responsabilidade histórica será a do juiz monocrático que vai obrar a difícil missão de fazer progredir o Direito, adaptando a ordem jurídica posta à evolução das circunstâncias protetoras da indefesa mulher pobre. Se a circunstância é autorizar a interrupção da gravidez em razão da mulher carregar no ventre um natimorto, o magistrado que assim decidir estará não só fazendo a justiça do caso concreto mas projetando na eqüidade a solução de que o juiz deve estar subordinado ao Direito e à realidade da vida social. Em ponderação pertinente, o eminente ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio assim se manifestou sobre o tema: “O Judiciário não pode se fechar em torno de si mesmo, omitindo-se, furtando-se de participar dos destinos da sociedade… A sociedade quer, sim, juízes, e não semideuses encastelados em torres de marfim… O juiz tem de ser um cidadão atento ao cotidiano da comunidade em que vive, em vez de robô repetidor de leis. Só assim será sensível para proferir decisões sábias”4

Não basta apenas reconhecer o paradoxo, é preciso superá-lo. A mulher pobre, aprisionada no mundo concentracionário dos homens e excluída do bem-estar social, é submetida a mais esta violência: carregar dentro de si um natimorto por vários meses até o parto. Há magistrados que são déspotas; há magistrados que são indiferentes; há magistrados que são análgicos. Ou seja, desaprenderam a pensar a dor e o sofrimento ínsitos na condição humana.

A mulher é a mãe da humanidade e é por isso que o humanismo reverencia este ser humano, sabendo que há o elo básico de interdependência entre a mulher e o feto. Após o diagnóstico da anencefalia, a mulher tem a certeza de que não está gerando vida mas morte, para não dizer que é durante toda a gestação do anencéfalo um caixão ambulante. Assim, não ocorrerá o bem-estar físico, psicológico e social dela porque o seu sentir e os seus olhos estão voltados para a morte. A vida inviável a deixou mentalmente ferida.

Os operadores do Direito ainda presos aos dogmas religiosos costumam repetir com indisfarçável arrogância que as mulheres estão condicionadas ao sofrimento. Por quê? Nos primórdios da Religião e da Igreja havia o consenso, depois transformado em dogma, que os gritos angustiados das mulheres agradavam a Deus, um prazer que não lhe devia ser tirado. Durante muito tempo a Igreja proibiu remédios que aliviassem as dores do parto justificando que tal conduta contrariava a vontade de Deus. Enfim, o sofrimento das mulheres pobres também hoje não chega a causar compaixão nem aos Senhores da Igreja nem aos Poderosos que detêm do poder de utilizarem concretamente dos dogmas jurídicos em desfavor da saúde da mulher.

É verdade banal que deve ser repetida, pois na área da saúde mental é deveras conhecido que uma gravidez indesejada imposta pode causar sofrimento em todos os níveis: psicológico, social, econômico, intelectual e espiritual. Em resumo, forçar a mulher pobre a levar no ventre um ser sem vida até o final da gravidez é uma das mais profundas feridas que podem ser infligidas à sua mente e ao seu corpo. Não há como mudar o dogma religioso para fazê-lo aceitar a realidade da vida privada e social das mulheres pobres e que são as únicas a sofrerem desnecessariamente. O feto anencéfalo não pode ser mais importante que a mãe! Logo, o reino cristão não é deste mundo!

No entanto, resta o paradoxo: ou não somos livres e Deus todo-poderoso é responsável pelo mal, ou somos livres e responsáveis mas Deus não é todo-poderoso. Logo, a circunstância cruel e desumana de levar adiante uma gravidez indesejada ultrapassa na mulher pobre a sua experiência individual. A quem apelar se se trata de feto portador de doença incurável e fatal? O Código Penal comodamente arrola as causas de excludente da criminalidade (artigo 128 e incisos), não punindo o médico nas hipóteses ali descritas. Médicos e magistrados não podem ficar indiferentes ao destino das mulheres pobres. Médicos sensíveis e humanizados tudo farão para preservar a saúde física e mental da mulher, isto é, o seu bem-estar pessoal, familiar e social.

Magistrados não análgicos nem dogmáticos autorizarão (sem culpa nem remorso) a interrupção da gestação de feto possuidor de malformações congênitas ou com enfermidade incurável. Assim decidindo, não fazem somente a justiça inadiável que o caso concreto pede, mas também homenageiam as suas mães e as mulheres despossuídas, alienadas, exploradas e maltratadas por todos os dogmas. O feto anencéfalo é um ser desconhecido que apenas sobrevive vegetativamente. Não tem consciência nem nunca terá; desconhece o que é dor e sofrimento porque está totalmente amparado no útero, porém o seu destino é a morte, ou dentro do ventre, quando comprometerá a saúde da própria mulher colocando-a em risco de morte, ou logo após o parto. Afinal, os paradoxos continuam vigentes: se Deus não existe, é impossível demonstrá-lo; mas se existe, é um disparate querer demonstrá-lo.

A diferença entre Deus e o homem reside no pecado. Infelizmente, é a fé religiosa que também costuma guiar a maioria dos magistrados no mundo do Direito, misturando os dogmas religiosos com o Direito feito de dogmas. Neste mundo insensato de absurdos e de dogmas, cabe ao magistrado superar estes estados de coisas mediante tomada de consciência para que transforme todo dogma em problema. No fundo de toda problemática jurídica está a terrível força histórica do capitalismo, indissoluvelmente unido aos dogmas, quando proclama o Deus-Dogma de sua sobrevivência: o dogma do lucro, com o poder real e efetivo de derrogar toda e qualquer lei conforme a sua necessidade.

É imperativo moral, ainda não amparado no sistema jurídico, da autonomia da mulher decidir se quer prosseguir, ou não, na gestação até ao final, em se tratando de fetos incuráveis e fatalmente doentes. Esta decisão está fundamentada no livre arbítrio de querer ou não de cessar gravidez indesejada e de alto risco à sua saúde. É, antes de tudo, decisão íntima dela pela antecipação do parto. Extrair um ser inviável para a vida do seu ventre não pode constituir crime, pois tal crime é impossível, por tratar-se justamente não de aborto strictu sensu, mas de antecipação do parto; por isso o médico não pode ser criminalizado.

Todos têm a capacidade de evoluir, inclusive os operadores do Direito, pautados nos avanços tecnológicos da medicina e nos conceitos científicos. Como a mulher pobre poderá vencer a tragédia proporcionada “inocentemente” pelos dogmas jurídicos e religiosos que se mostram como realidades imutáveis? Mutatis Mutandis encontramos a explicação na psicoterapia ao asseverar que é difícil mudar qualquer realidade psicológica enquanto ela permanecer inconsciente. O inconsciente tem a força de controlar os atos da pessoa (mulheres pobres, magistrados e outros operadores do direito) e será somente na tomada de consciência que poderá haver luz para a libertação. Por exemplo, o círculo vicioso da pobreza só será rompido quando os pobres chegarem à conclusão de que só sairão da situação de penúria e de miséria em que se encontram ao planejarem o tamanho de suas famílias.

A mensagem dita humanitária dos religiosos é a de proibir o aborto, recusando-se dar às mulheres – mulheres pobres – o que precisam para alimentar os filhos. É constatação universal que as mulheres e as crianças são as primeiras a sofrer quando os recursos se tornam escassos. Não há nada mais cruel do que o sofrimento de uma criança! Por vivência e até intuitivamente todas as mulheres esclarecidas e responsáveis sabem da inviabilidade de ter um filho que jamais será auto-suficiente. É uma escolha íntima e privada.

As mulheres sempre exigiram o direito de praticar a anticoncepção e o aborto. Por todo o mundo, a pobreza é uma realidade para as mulheres, especialmente para as mães. Se a mulher decidir interromper a gravidez e fomos buscar as suas mais íntimas razões, estas estarão assentadas na premissa de que é vergonhoso ter um filho que não poderá ser cuidado adequadamente. Por conseguinte, o aborto propriamente dito é “essencialmente uma questão de saúde pública. O aborto malfeito está entre as principais causas de morte de mulheres no Brasil (mulheres pobres, é claro, que não tem dinheiro para recorrer às boas casas do ramo)… O aborto não é um direito desejável, é um direito necessário”5

É preciso reconhecer que a mulher pobre está cansada – lassidão física, mental e espiritual – das vicissitudes do cotidiano, dos dogmas legais que não compreende e do absurdo de ter de carregar no ventre um natimorto. Tudo, enfim, conspirando para agravar a sua dor moral e o sofrimento físico e mental. Sem entusiasmo nem esperança, resta-lhe combater o desespero que lhe toma o ser na força da solidariedade emprestada de seres humanos generosos, a fim de superar o impasse criado pelos poderosos (insensíveis e até inumanos) que a mantém nesta situação de extrema injustiça. Martinho Lutero com palavras terríveis assim se manifestou: “Se as mulheres ficam exaustas e morrem no parto, nada há de errado nisso; deixem-nas morrer na hora de dar à luz, elas foram criadas para isso”. O aborto é pecado, mas a morte de milhões de mulheres por aborto clandestino não é.

É imperioso deixar registrado as relevantes reflexões pertinentes de Ginette Paris: “Para ter permissão para matar homens, mulheres e crianças, cheios de vida e plenamente cônscios do sofrimento, é necessário uma fórmula simples – uma declaração de guerra… Quando as mulheres resolvem abortar, é em nome dos mesmos princípios invocados pelos fabricantes de guerras: liberdade e autodeterminação – questões de dignidade tão importantes quanto a própria sobrevivência. Os seres sacrificados em abortos não sofrem como as vítimas de guerras e desastres ecológicos. A diferença de pensamento entre aquele que faz a guerra e o que é contra o aborto pode ser explicada pela divisão de poder sobre a vida e a morte entre homens e mulheres. Os homens têm o direito de matar e destruir, e quando o massacre é chamado de guerra, eles são pagos para fazê-lo e homenageados por suas ações. A guerra é santificada, e até abençoada por nossos líderes religiosos. Mas se a mulher decide abortar um feto, que nem tem aparelho neurológico para registrar o sofrimento, as pessoas ficam chocadas. O realmente chocante é que a mulher tem o poder de fazer um julgamento moral que envolve uma opção de vida ou de morte. Esse poder é reservado aos homens… As mulheres dão a vida, e os homens, como heróis de guerra, são provedores de morte… A necessidade de controlar o corpo e a alma das mulheres está na raiz das religiões patriarcais… Ao longo dos séculos, os milhões de mulheres que morreram de aborto em condições horrorosas foram na realidade sacrificadas, vítimas do dogma religioso”6.

Por outro lado, a mulher movida por conduta humana altamente altruísta, de exemplar abnegação e generosidade, apesar de saber, com a mais absoluta certeza, que está gerando no útero feto anencefálico, poderá levar a gravidez até o final para que os órgãos sejam doados. Repita-se que o feto anencéfalo somente sobreviveu porque o corpo da mulher é dotado de todos os meios naturais para a mantença da vida intra-uterina.

A vida inviável extra-uterina do anencefálico irá proporcionar vida à criança que receber o órgão dela cuja doação de órgãos possa dar um sentido humanitário e este triste acontecimento, aliviando o sofrimento de outros doentes acometidos de doenças graves mas recuperáveis. O recém-nascido anencefálico não apresenta possibilidade alguma de recuperação, inclusive por motivos anatômicos, por não possuir o córtex cerebral nem de ser dotado de estruturas anatômicas próprias que presidem as funções superiores. Na realidade constata-se a ausência completa ou parcial da calota craniana e dos tecidos que a ela sobrepõem deixando parte do cérebro exposto.

Em conseqüência, o feto anencefálico é gravemente deficiente no plano neurológico. Falta-lhe as funções que dependem do córtex e, portanto, não somente os fenômenos da vida psíquica mas também a sensibilidade, a mobilidade e a integração de quase todas as funções corpóreas. Em suma, a anencefalia é uma condição letal e normalmente nenhum neonato sobrevive além dos três dias.

É imperioso acentuar que o feto anencefálico possui irreparável falência cerebral. Ele só se mantém vivo, biologicamente falando, porque está ligado ao corpo da mulher e é o seu aparelho biológico que mantém a “sobrevida” precária deste feto anômalo, condenado à morte. Assim, a morte encefálica do feto é certa e que a biológica ocorre durante o parto ou logo após “nascer”, isto é, a expulsão de um ser para o mundo. O feto anencefálico não é pessoa e também não pode ser comparado a situação em que se encontra o ser nascido que teve posteriormente morte encefálica não originária de qualquer deformação intra-uterina, pois neste caso é pessoa.

Em face do exposto, para adquirir o status de pessoa precisa nascer com vida viável e com saúde, quando inicia a personalidade civil (sujeito de direitos, deveres e obrigações). Qualquer discussão doutrinária fora deste fato é inócua e estéril. É falta de honestidade intelectual dos operadores do direito negarem os avanços da medicina tecnológica, assim como não é possível negar a Ciência e a Razão, cuja interrupção da gestação somente deverá ocorrer se a mulher assim decidir, sobretudo se o feto possuir malformações congênitas ou enfermidade incurável.

Se comprovada, portanto, a inviabilidade da vida extra-uterina do feto tornar-se-á necessário o aborto terapêutico. Por outro lado, os defensores do direito dogma recusam a acompanhar a evolução tecnológica e da precisão dos diagnósticos médicos, esquecendo-se da mulher pobre — é a que realmente sofre da indiferença e da insensibilidade dos poderosos. O dogma jurídico recusa aceitar a verdade contida nos fatos da vida; despreza o fato social e a razão nele encerrado; nega os avanços tecnológicos dos aparelhos de diagnósticos médicos; enfim, a própria prova científica irrefutável que autoriza a antecipação do parto ao afirmar que o feto não possui qualquer condição de sobrevida por ser portador de malformações graves e totalmente incompatíveis com a vida. O dogma religioso também não respeita a existência e a dignidade da mulher… da mulher pobre!

Finalmente, é preciso repetir à exaustão que a anencefalia é para a medicina uma anomalia fatal porque a vida está condicionada a atividade cerebral. É, contudo, de uma perversidade ímpar obrigar a mulher pobre, pois é a única a levar à exaustão este sofrimento de quem está condenada a viver e a sobreviver na pobreza, a carregar no ventre um natimorto. É a manifestação suprema do poder dos dogmas jurídicos e religiosos ao ignorar o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Porém, há magistrados comprometidos com a saúde da mulher pobre e que são guiados no dia-a-dia para atender aos fins sociais e às exigências do bem comum na aplicação do Direito têm autorizados a cirurgia para a retirada de fetos anencefálicos ou possuidores de outras anomalias incompatíveis com a vida extra-uterina.

Para que prevaleça a concretude dos fatos da vida é preciso humanizar o operador do direito dogmático. O fato concreto não pode diluir na abstração, pois o conteúdo é mais importante que a forma. A vida (da mulher pobre) é mais importante que a expectativa de vida (Feto com vida extra-uterina inviável). Portanto, a saúde da mulher é mais importante que a do feto, mormente se é portador de deformidade irreparável ou está acometido de doença incurável. Por outro lado, é direito da mulher decidir se deseja prosseguir na gestação, ou não.

Deveria ser legalmente permitido o aborto em sentido amplo. Não pedimos para nascer! E se estamos no mundo é porque somos amados. Concluo estes breves apontamentos sobre tema que diz respeito a todas as mulheres cônscias de suas responsabilidades de mães, nas acertadas e iluminadas ponderações de Ginette Paris: “Até hoje o aborto tem sido julgado de acordo com o dogma cristão; é pecado porque é proibido pela Igreja, e a Igreja não pode mudar de posição, pois está escrito na Bíblia, e se começarmos a mudar o dogma escrito a realidade toda ruirá. As religiões monoteístas baseadas num livro (cristão, judeu, muçulmano) funcionam de acordo com códigos escritos (dogma), que divide o comportamento em pecado e virtude, de uma vez por todas. Mas, tão logo adotemos uma perspectiva mais global e menos dogmática, podemos ver a loucura que é sacrificar a mãe pelo beb, a estupidez dos procedimentos obstétricos que só consideram o conforto e a segurança do feto (como se a mãe e filho não fossem interdependentes), e a loucura de uma posição moral que força as mulheres a ter filhos quando a primeira necessidade de uma criança é ser querida”7

Notas de rodapé:

1. Revista VEJA de 27/10/2004

2. Florestan ou Sentido das Coisas – Boitempo Editorial, 1998, p. 11

3. Para um Direito Sem Dogmas – Sergio Antonio Fabris, 1980, p. 12

4. Artigo publicado na “Folha de S. Paulo” de 30/12/2001, sob o título:”Dias Melhores se Avizinham”

5. Revista VEJA de 17/08/2005 – Articulista André Petry

6. O Sacramento do Aborto – Editora Rosa dos Tempos, Rio de Janeiro, 1992, p. 36/37

7. op. cit., Ginette Paris

Revista Consultor Jurídico

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