União homossexual – aspectos sociais e jurídicos

Maria Berenice Dias

Face à grande polêmica que envolve o encaminhamento do Projeto que reconhece a chamada parceria civil registrada, mister fazer algumas colocações de caráter histórico e social sobre a homossexualidade, tema encharcado de preconceitos, tabus e mitos, e de como vem sendo tratada no âmbito do Direito.
De primeiro, cabe referir que todo tema que diz com sexualidade é envolto em uma aura de mistério, sempre despertando curiosidade e profunda inquietação. Não só, mas principalmente neste tema, tudo que se situa fora dos estereótipos resta por ser rotulado de “anormal”, ou seja, fora da normalidade, o que não se encaixa nos padrões.
A sociedade tem valores culturais dominantes em cada época e um sistema de exclusões muitas vezes baseado em preconceitos estigmatizantes.
Questões que dizem com relações familiares e comportamentais situam-se mais na esfera privada do que na pública, cabendo à sociedade sua normatização. São, em regra, questões de lenta maturação. O divórcio, por exemplo. Demorou, mas a sociedade brasileira acabou por aceitá-lo. A sociedade, nas últimas décadas, mudou a maneira de encarar o homossexualismo e a virgindade das mulheres. Ficou mais tolerante com o primeiro e revogou a necessidade da segunda.
Com a evolução dos costumes e a mudança dos valores, dos conceitos de moral e de pudor, o tema referente à opção sexual deixou de ser “assunto proibido” e hoje é enfrentado abertamente, sendo retratado no cinema, nas novelas, na mídia como um todo.
Ainda que a sociedade se considere heterossexual, o homossexualismo existe desde que o mundo é mundo. Nas culturas ocidentais contemporâneas, é marcado por um estigma, renegando à marginalidade aqueles que não têm preferências sexuais dentro de determinados padrões de estrita moralidade. A visão polarizada sempre é extremamente limitante, sendo farto o anedotário sobre gays.
O homossexualismo é um fato que se impõe e não pode ser negado, estando a merecer a tutela jurídica, ser enlaçado como entidade familiar, o que não vai transformar a família nem estimular sua prática, pois, conforme diz o Deputado Fernando Gabeira, “ninguém vira homossexual lendo o Diário Oficial”.
Necessário mudar valores, abrir espaços para novas discussões, revolver princípios, dogmas e preconceitos.

Visão histórica

Homossexual – origem etimológica grega, significando homo ou homoe, que exprime a idéia de semelhança, igual, análogo, ou seja, homólogo ou semelhante ao sexo que a pessoa almeja ter.
A prática homossexual acompanha a história da humanidade e sempre foi aceita, havendo somente restrições à sua externalidade, ao comportamento homossexual.
Na Grécia antiga, fazia parte das obrigações do preceptado “servir de mulher” ao seu preceptor, e isso sob a justificativa de treiná-lo para as guerras, onde inexistia a presença de mulheres.
Nas Olimpíadas gregas, os atletas competiam nus, exibindo a beleza física, sendo vedada a presença das mulheres na arena, pois não tinham capacidade para apreciar o belo. Também nas manifestações teatrais os papéis femininos eram desempenhados por homens transvestidos ou com o uso de máscaras. Por evidente que essas eram manifestações homossexuais.
O maior preconceito contra o homossexualismo provém das religiões. A concepção bíblica vem do preceito judaico, na busca de preservação do grupo étnico. Toda relação sexual deveria dirigir-se à procriação. Daí a condenação do homossexualismo masculino por haver perda de sêmen, enquanto que o feminino era considerado mera lascívia.
A Igreja Católica considera uma aberração da natureza, transgressão à ordem natural, uma verdadeira perversão, baseada na filosofia natural de São Tomás de Aquino no sentido de que sexo se destina fundamentalmente à procriação, daí serem anti-naturais a masturbação, a homossexualidade e o sexo sem procriação. Por coerência, deveria vedar o casamento de mulheres na menopausa ou de pessoas que se sabem estéreis. Ao depois, pratica-se mais o sexo recreativo do que o procriativo.
Já o Estado não pode invocar a procriação, até porque refreia a natalidade e cada vez mais o aborto está sendo legalizado. O fundamento para negar juridicidade à relação homoafetiva é que desvalorizaria o sentido social do sexo, a base da vida familiar, sendo o casamento heterossexual é a base central da sociedade moderna. Há, porém, uma certa corrente que considera o casamento, instituição criada pela burguesia após a Revolução Francesa, extremamente liberticida. Seria uma contradição ao liberalismo e uma interferência indevida do Estado. Sullivan, um escritor americano, aponta a conveniência do casamento gay. Os casais se incorporariam aos esforços para restaurar os valores familiares. Os casamentos heterossexuais se fortaleceriam, pois não seriam realizados por mera conveniência. Ao serem absorvidos, seriam tão conservadores como os heterossexuais.

Causas possíveis

Na área da Psicologia, a homossexualidade é encarada como um distúrbio de identidade, e não como uma doença. Também não é hereditária nem é uma opção consciente ou deliberada. Para o psicólogo Roberto Graña, é fruto de um determinismo psíquico primitivo, que tem origem nas relações parentais desde a concepção até os 3 ou 4 anos de idade, quando se constitui o núcleo da identidade sexual na personalidade do indivíduo, que irá determinar sua orientação sexual.
Assim, trata-se de um fato que não poderia ensejar qualquer reprovabilidade social ou jurídica, pois é algo involuntário.
A discriminação contra a homossexualidade leva à busca de ocultação da identidade sexual – homossexuais virilóides ou enrustidos -, levando a assumir uma dupla personalidade, o que vem muitas vezes a acarretar sérios problemas psíquicos. Embora incorporando uma natureza homossexual, adotam uma postura e se comportam como heterossexuais, o que leva, muitas vezes, à bissexualidade. Se acabam casando e tendo filhos, a tendência é o fracasso da união, e, tentando manter na clandestinidade a tendência homossexual, acabam levando vidas promíscuas e em muitos casos transmitem AIDS às esposas.
Já os homossexuais feminóides ou assumidos (forma e aparência femininas) revelam suas tendências femininas desde a infância e acabam se impondo no meio social. Não precisam fingir que são homens e muitas vezes se esmeram e exageram em parecer com o sexo oposto. São esses que se unem a outro parceiro, em uma união livre, passando a viver como se casados fossem à semelhança de uma relação concubinária entre um homem e uma mulher.
Essa vida pode ser duradoura, contínua e estável, formando um núcleo familiar em que só não existe o objetivo de gerar filhos.
No campo científico, também mudou o conceito. No ano de 1985, deixou de constar do art. 302 do Código Internacional das Doenças – CID – como uma doença mental, passando ao capítulo Dos Sintomas Decorrentes de Circunstâncias Psicossociais. Na última revisão, de 1995, o sufixo “ismo”, que significa doença, foi substituído pelo sufixo “dade”, que significa modo de ser.
Recente pesquisa realizada nos EUA mostra a existência de causas genéticas no desenvolvimento do homossexualismo. Pesquisando gêmeos univitelinos, bivitelinos e adotados, mostra que 30 a 70% dos casos decorrem de fatores genéticos, e não somente do ambiente social e afetivo em que são criados. Buscam agora identificar o gem que age no desenvolvimento do homossexualismo. Também restou identificado que o tamanho do hipotálamo, região do cérebro que parece controlar certos impulsos sexuais, dos homossexuais é metade do dos heterossexuais, sendo do mesmo tamanho do das mulheres. Assim, não se pode taxar o homossexualismo como um desvio de conduta ou uma escolha pessoal.
Não sendo uma opção livre, mas fruto de um determinismo psicológico, não pode ser objeto de reprovação ou marginalização social. O legislador não pode ficar insensível à necessidade de regulamentação dessas relações.
Mas já vai longe o tempo em que as pessoas eram condenadas por pederastia, como aconteceu com o escritor Oscar Wilde.
Também os chamados movimentos gays têm-se proliferado, procurando dar transparência ao fenômeno, bastando lembrar a Olimpíada de New York, com a participação de 11.000 atletas de 44 países.
Os países mais evoluídos da Europa já admitem as uniões homossexuais, e intenso é o empenho do Parlamento Europeu para a criação de uma lei possibilitando o casamento homossexual na União Européia.
No Havaí, uma ação promovida por 3 casais homossexuais contra o Estado por ter-lhes sido negada licença para o casamento acaba de ser acolhida pela Suprema Corte, sob o fundamento de que a negativa viola a emenda da Constituição americana de isonomia, que garante direitos iguais a todos. Como os casamentos legalmente têm que ser aceitos em todos os Estados americanos, urge uma posição dos Estados que têm autonomia legiferante.

Aspectos constitucionais

Firmando a Constituição a existência de um estado democrático de direito, tendente à realização dos direitos e liberdades fundamentais, vem cada vez mais se desdobrando, pois, dos chamados direitos de primeira geração, em que pontifica o direito à liberdade e à igualdade. Não se pode deixar de situar as questões suscitadas pela sexualidade nos direitos de primeira geração, por dizer precipuamente com o princípio fundamental da isonomia e com a proibição de discriminações injustas. Ante a ampliativa visão dos direitos humanos, chega-se aos de terceira geração, que reconhece os direitos e solidariedade alcançando os direitos coletivos e difusos.
O Direito de Família recebe o influxo do Direito Constitucional, sendo que o princípio da igualdade restou por fazer verdadeira faxina nas discriminações que existiam no campo das relações familiares. O núcleo do atual sistema jurídico que sustenta o fundamento do Estado está posto de forma saliente no inc. III do art. 1º, que é o respeito à dignidade humana, ocupando uma posição privilegiada no texto constitucional.
O grande pilar que serve de base à Constituição é a consagração dos princípios da liberdade e da igualdade.
Tais enunciados não podem-se projetar no vazio, pois não se pode conceber que a Constituição tenha normas programáticas, sendo necessário reconhecer sua eficácia jurídica, acabando por aportar no Direito de Família.
A Constituição estabelece já no inc. I do artigo 5º – artigo que enfeixa a maioria dos direitos assegurados pela Carta Magna – o princípio da igualdade: homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, sendo que o inc. IV do art. 2º estabelece como objetivo fundamental do Estado a promoção do bem de todos sem preconceitos de sexo, ou seja, veda qualquer discriminação sexual.
A proibição da discriminação sexual, eleita como cânone fundamental de um estado democrático de direito, alcança a vedação à discriminação à homossexualidade, pois diz com a conduta afetiva da pessoa, o direito à orientação sexual.
Orientação sexual é a identidade pessoal com alguém do mesmo sexo, do oposto, de ambos ou de nenhum sexo. A identificação da orientação sexual está condicionada à identificação do sexo da pessoa escolhida, em relação à pessoa que escolhe, e tal escolha não pode ser alvo de tratamento diferenciado.
Se alguém dirige seu interesse sexual a outra pessoa, ou seja, opta por outrem para manter um vínculo afetivo, está exercendo sua liberdade. O fato de direcionar sua atenção a uma pessoa do mesmo ou de distinto sexo que o seu não pode ser alvo de tratamento discriminatório, pois tal decorreria exclusivamente do sexo da pessoa que faz a escolha e que dispõe da liberdade de optar. O tratamento diferenciado por alguém orientar-se em direção a um ou outro sexo – nada sofrendo se tender a vincular-se a pessoa do sexo oposto ao seu ou recebendo o repúdio social por dirigir seu desejo a pessoa do mesmo sexo – evidencia uma clara discriminação à própria pessoa em função de sua identidade sexual.
Se todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, aí está incluída, por óbvio, a opção sexual que se tenha.
Assim, a proteção contra a discriminação sexual envolve o direito à orientação sexual, uma vez que o sexo da pessoa eleita (se homem ou mulher) não pode gerar tratamento desigualitário com relação a quem escolhe, sob pena de estar-se discriminando alguém pelo sexo que possui: se igual ou diferente do da pessoa escolhida.
Nesse sentido já se posicionaram as Cortes Supremas do Canadá, Estados Unidos e Havaí: de que a discriminação por orientação sexual configura discriminação sexual.
Qualquer discriminação baseada na orientação sexual do indivíduo configura claro desrespeito à dignidade humana, a infringir o princípio maior imposto pela Constituição Federal, não se podendo sub-dimensionar a eficácia jurídica da eleição da dignidade humana como um dos fundamentos do estado democrático de direito. Infundados preconceitos não podem legitimar restrições de direitos servindo de fortalecimento a estigmas sociais e causando sofrimento a muitos seres humanos.
Também é de lembrar-se a eficácia das normas internacionais recepcionadas por nosso ordenamento jurídico, como preceitua o § 2º do art. 5º da CF de que os direitos e garantias decorrentes dos princípios por ela adotados, ou nos tratados internacionais de que o Brasil seja parte. É de lembrar-se que a Convenção Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto de San Jose, dos quais o Brasil é signatário, servem de fundamento para a ONU, que tem entendido como ilegítima qualquer interferência na vida privada de homossexuais adultos, seja com base no princípio do respeito à dignidade humana, seja pelo princípio da igualdade.
Assim, desarrazoada a eleição de fator discriminante para desequiparação aos direitos deferidos a heterossexuais, o que decorre de discriminação sexual, desrespeito ao princípio da isonomia e inaplicabilidade da cláusula constitucional da dignidade humana, bem como de forma reflexa à liberdade pessoal e sexual.

Posturas legislativas

Nos ordenamentos jurídicos, há quatro modelos, em se tratando do reconhecimento da homossexualidade:
1) O chamado modelo expandido, que adota políticas de não-discriminação, descriminaliza condutas, institui ações afirmativas e apóia organizações de homossexuais. A Holanda, que já admitia o registro da união homossexual, foi o primeiro país do mundo a autorizar, no ano de 1998, o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e inclusive transformar as uniões existentes em casamento, só não admitindo a adoção nem que as lésbicas sejam artificialmente inseminadas.
A Dinamarca, Suécia e Noruega, Groenlândia e Islândia possuem leis que concedem à parceria os mesmos direitos das pessoas casadas, só havendo impedimento de adoção.
A Constituição da África do Sul, de 1996, foi a primeira que expressamente proibiu a discriminação em razão da opção sexual.
2) O modelo intermediário abrange a descriminalização e proíbe medidas discriminatórias, sem apontar iniciativas positivas – França, Austrália e alguns Estados americanos, New York e New Jersey.
Nenhum dos 50 Estados americanos reconhece união matrimonial homossexual, sendo que em 10/9/96 foi aprovada lei em defesa do casamento, em que nega o reconhecimento federal a casamento de pessoas do mesmo sexo e permite que os Estados não aceitem esse tipo de união legalizada em outros lugares.
3) Num grau inferior estão os ordenamentos que simplesmente impedem a criminalização, não articulando, no entanto, qualquer medida protetiva eficaz de proteção aos direitos fundamentais.
4) Já nos países islâmicos, o homossexualismo é reconhecido como crime, podendo ser punido com a pena de morte.

No Brasil

Tramita no país a proposta de Emenda à Constituição – PEC nº 139/95 – da Deputada Marta Suplicy, que altera os arts. 3º e 7º da CF, para proibir a discriminação por motivo de orientação sexual.
Além das garantias constitucionais, nas ordens jurídicas estaduais e municipais estão surgindo regulamentações com referências mais específicas, assim as Constituições dos Estados do Mato Grosso e Sergipe, bem como a Lei Orgânica do Município de Porto Alegre e de 74 outros municípios, que já expressam explícita proteção à discriminação por “orientação sexual”.

Parceria civil

O Projeto de Lei nº 1.151/95, de autoria da Deputada Marta Suplicy, teve trocado o nome de união civil para parceria civil registrada, segundo o substitutivo adotado, para não ser confundida com casamento. Busca tão-só autorizar a elaboração de um contrato escrito, com a possibilidade de ser registrado em livro próprio no Cartório do Registro Civil das Pessoas Naturais.
Conforme diz a própria justificativa do Projeto, ele não se propõe dar às parcerias homossexuais um status igual ao do casamento. Busca conceder amparo às pessoas que o firmam, priorizando a garantia dos direitos de cidadania.
Podem ser pactuados deveres, impedimentos e obrigações, contendo disposições de caráter patrimonial. Protege o direito de propriedade e garante o direito de sucessão, de usufruto (da metade ou quarta parte dos bens enquanto não registrar outro contrato), benefícios previdenciários, direitos de curatela, impenhorabilidade da residência, direito de nacionalidade em caso de estrangeiros, possibilidade de declaração no imposto de renda e composição da renda para compra ou aluguel de imóvel.
Também não pressupõe a existência de uma relação afetiva ou homossexual entre os parceiros; no entanto, autoriza que somente podem contratar pessoas solteiras, viúvas ou divorciadas (inc. I do § 1º do art. 1º) e impede a alteração do estado civil durante sua vigência, impede que elas se casem, ao gerar novo impedimento não elencado no art. 183 do CC. Nitidamente está protegendo as relações homossexuais e criando um vínculo jurídico entre ambos gerador de efeitos pessoais além dos patrimoniais, não podendo enquadrá-lo exclusivamente no campo obrigacional.
O direito ao usufruto, criado pelo Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4212/62), tem nítido caráter protetivo da família, com finalidade alimentar. Ao depois, o direito do parceiro prevalece ao dos descendentes e ascendentes, pois subtrai destes o direito ao uso dos bens. Também tem o parceiro preferência aos familiares para o exercício da curatela, o que mostra o caráter familiar do instituto. Assim, não se justifica a falta de previsão de alimentos, pois prevê o amparo por morte, mas não para o caso do fim do relacionamento. Mas não está vedada a possibilidade de se preverem alimentos entre as cláusulas do pacto.
Ainda que o contrato tenha semelhança com o pacto antenupcial, é mais vantajoso, pois os nubentes podem deliberar somente quanto ao regime de bens, sendo ampla a liberdade dos parceiros para estabelecer deveres e impedimentos de caráter pessoal. Também a infração dos deveres contratados dá ensejo ao rompimento do contrato (inc. I do art. 5º), o que inexiste com o casamento.
No substitutivo, foi vedada a adoção e estabelecido o prazo mínimo de 2 anos para sua extinção, por desinteresse de um dos contratantes. Não autoriza a adoção de sobrenome, a mudança do estado civil, a constituição de família.
Independente de suas imperfeições e imprecisões técnicas, marca o início da saída da marginalidade, deixando de ser excluídos para serem incluídos no laço social e assim ao conhecimento pelo Estado.
O Projeto, por 6 vezes, entrou em pauta, mas ainda não foi à plenária, como ocorreria dia 19/1.

Adoção

A mais tormentosa questão que se coloca, e que mais divide as opiniões, é quando se questiona a possibilidade de ditos parceiros virem a adotar.
O Projeto de Lei da união civil nada previa, sendo que a vedação da adoção, tutela ou guarda foi introduzida pelo relator.
Não há qualquer impedimento no ECA, pois a capacidade para a adoção nada tem a ver com a sexualidade do adotante, bastando preencher os requisitos legais (art. 39 e ss.), sendo expressa o art. 42, ao dizer: “Podem adotar os maiores de 21 anos, independentemente do estado civil”.
Também a adoção por ambos os parceiros não está proibida. O art. 28, ao permitir a colocação em família substituta, não a define, como faz com a família natural no art. 25: “Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais, qualquer deles, e seus descendentes”.
O § 2º do art. 42 autoriza a adoção por ambos os cônjuges ou concubinos, e inclusive pelo casal que esteja separado ou divorciado (§ 4º).
A única objeção que poderia ser suscitada seria face aos termos do art. 29: “Não se dará a colocação em família substituta a pessoa que revele, por qualquer modo, incompatibilidade com a natureza da medida ou não ofereça ambiente familiar adequado”.
O princípio que deve prevalecer, no entanto, é o do art. 43: “a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivo legítimo”.
Em março deste ano, a 17ª Câmara Cível do Rio de Jaaneiro habilitou um homossexual a adotar uma criança, reconhecendo ter atendido a todos os requisitos legais e recebido parecer psicológico favorável da equipe técnica.
Assim, a relação, ainda que homossexual, que possua as características de uma união estável, em que exista um lar respeitável e duradouro, cumprindo os parceiros os deveres assemelhados aos dos conviventes, como a lealdade, a fidelidade, a assistência recíproca, numa verdadeira comunhão de vida e interesses, não há de ser tida por incompatível com a natureza da medida.
Como não se pode excluir o direito individual de guarda, tutela e adoção garantido a todo cidadão, independentemente de sua orientação sexual, tal restrição pode gerar situações injustas, assim sendo consideradas todas as que se afastam da realidade. Em havendo a possibilidade de a adoção ser feita por um só dos parceiros, eventual direito do adotado, quer de alimentos, quer sucessório, só poderá ser buscado com relação ao adotante, fato que, com certeza, acarreta injustificável prejuízo ao adotado por não gerar direitos com relação àquele que também tem como verdadeiramente seu pai ou sua mãe.
A par dessas vedações, nada impede que prossigam as lésbicas a se submeterem à inseminação artificial; uma concede o óvulo, que é fecundado in vitro por sêmen de um doador, e o embrião é implantado no útero da outra. Os casais masculinos socorrem-se das chamadas barrigas de aluguel.
Ao depois, é de atentar-se na nossa realidade social, com um enorme contingente de menores abandonados em situação irregular, que poderiam vir a ter uma vida com dignidade.
Na Califórnia, há pesquisadores que desde meados de 1970 vêm estudando famílias não-convencionais, entre elas famílias hippies que vivem em comunidade, como casamentos abertos e crianças criadas por mães lésbicas e pais gays. Concluíram que crianças com os dois pais do mesmo sexo são tão ajustadas quanto as crianças com os pais dos dois sexos. Nada há de incomum quanto ao desenvolvimento do papel sexual dessas crianças. As meninas são tão femininas quanto as outras e os meninos, tão masculinos quanto os demais. Os pesquisadores não encontraram até o momento nenhuma tendência importante no sentido de que filhos de pais homossexuais venham a tornar-se homossexuais. (Filhos de lésbicas e gays: Flaks, Ficher, Masterpasqua & Joseph, 1995; Gottman, 1990; Patterson, 1992,1994, in Harris, Judith Rioch, Diga-me com quem anda… .Ewd. Objetiva, 1999, p. 80).
A heterossexualidade dos pais não é garantia de quase nada.

Conclusão

Se a orientação sexual é baseada em fatores biológicos ou fisiológicos, inquestionavelmente é uma característica pessoal e se insere em uma aura de privacidade cercada de muitas garantias constitucionais.
A valorização da dignidade da pessoa humana como elemento fundamental do estado democrático de direito não pode chancelar qualquer discriminação baseada em características pessoais individuais, repelindo-se qualquer restrição à liberdade sexual do indivíduo, não se podendo admitir desrespeito ou prejuízo em função de sua orientação sexual.
Sendo o homossexualismo uma característica inata, integrando a própria estrutura biológica da pessoa, o não-reconhecimento de sua condição e a falta de atribuição de direitos constituem certamente cerceamento da liberdade, verdadeira forma de opressão.
Se duas pessoas passam a ter vida em comum, cumprindo os deveres de assistência mútua, em um verdadeiro convívio estável, caracterizado pelo amor e respeito mútuo, com o objetivo de construir um lar, inquestionavelmente que tal vínculo, independentemente do sexo de seus participantes, gera direitos e obrigações que não podem ficar à margem da lei.
Descabe ser alegada a falta de previsão legislativa, pois, muito antes de serem reguladas as relações concubinárias, já eram concedidos direitos às companheiras nas relações heterossexuais. Trata-se de evolução do Direito, que passou a valorizar a afetividade humana, abrandando os preconceitos e as formalidades sociais e legais. As relações familiares impregnam-se de autenticidade, sinceridade, amor, compreensão, diálogo, paridade, deixando de lado a hipocrisia, o fingimento e a falsidade institucionalizada, a legalidade estrita.
O estigma do preconceito não pode permitir que tal fato social não se sujeite a efeitos jurídicos. Por enquanto, está-se a reconhecer simplesmente uma sociedade de fato, estribando-se no art. 1.363 do CC (que refere as pessoas que mutuamente se obrigam a combinar seus esforços ou recursos para lograr fins comuns) e com isso deferindo a comunicação dos bens adquiridos.
A essas relações se está impondo a mesma trilha percorrida pela doutrina e pela jurisprudência nas relações entre um homem e uma mulher fora do casamento. Inquestionável que foi essa a causa que levou ao alargamento do conceito de família, por meio da constitucionalização da união estável.
Ainda que tenha vindo a Constituição com ares de modernidade, ao outorgar a proteção do Estado à família, independentemente da celebração do casamento, continuou a ignorar a existência de entidades familiares formadas por pessoas do mesmo sexo.
Ao buscar-se identificar o conceito de família, a primeira visão é da família patriarcal, nitidamente hierarquizada, com papéis bem definidos, formada por meio do casamento, com uma formação extensiva. Hoje a família é nuclear, horizontalizada, apresentando formas intercambiáveis de papéis e sem o selo do casamento.
Assim, não se diferencia mais a família pela ocorrência do casamento. Também a existência de prole não é essencial para que a convivência mereça reconhecimento e proteção constitucional, pois sua falta não enseja sua desconstituição, e isso nem em face do Direito Canônico.
Portanto, se a prole ou capacidade procriativa não é essencial para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção legal, não se justifica ter deixado de abrigar sob o conceito de família a convivência entre pessoas do mesmo sexo, uma vez que a própria lei não faz qualquer distinção entre essas em razão do sexo.
O próprio CC não fala que o casamento é entre pessoas de sexos diversos, nem nos impedimentos há tal referência. Com esse fundamento, inclusive, um casal de lésbicas em Belo Horizonte ingressou com pedido de habilitação para o casamento em dezembro de 1998.
Nem a Declaração Universal dos Direitos do Homem faz qualquer restrição, sendo que o art. XVI. 1 – Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio.
A questão das uniões estáveis homossexuais é um fato social que nenhum estado contemporâneo pode ignorar, pois não se trata de um fato isolado, ou a frouxidão dos costumes como querem os moralistas, mas a expressão de uma opção pessoal que o Estado deve respeitar.
Desde o final dos anos 60, tem aumentado a visibilidade das opções sexuais dos indivíduos. Como está diminuindo o sentimento de culpa que pesa sobre esses indivíduos. Com o declínio da influência da Igreja, há uma tendência em deixar de ver o prazer sexual como criminoso.
Assim, não se pode deixar de ter por discriminatória a distinção que o art. 226, § 3º, da CF faz ao outorgar proteção a pessoas de sexos diferentes, contrariando princípio constitucional constante de regra pétrea.
Como a Constituição não é um conjunto de regras, mas um conjunto de princípios, aos quais devem-se afeiçoar as próprias normas constitucionais, por uma questão de coerência, mostrando-se uma norma constitucional contrária a um princípio constitucional, tal fato configura o conflito e assim a norma deve ser considerada inconstitucional, como já sustentava Otto Bachof, já em 1951.
Flagrando-se esse confronto, possível é concluir ser inconstitucional a restrição do art. 1º da Lei nº 9.278/96, que regulamenta a união estável, podendo e devendo ser aplicada às relações homossexuais.
Mister lembrar o conceito dos especialistas da ONU: casamento é qualquer grupo de pessoas que convivam sob o mesmo teto, sejam ou não do mesmo sexo, não se usando o matrimônio como origem do casamento.
É de lembrar que o Direito de Família tenta regulamentar e organizar as relações que são da ordem da sexualidade. A primeira lei foi a proibição do incesto. A Constituição integra no laço social todos os cidadãos, vedando discriminação de qualquer ordem.
Não se pode afrontar a liberdade fundamental a que faz jus todo ser humano e que diz com a condição de sua vida sexual. A orientação sexual que alguém adota em sua vida privada não admite restrições a direitos. Presentes os requisitos legais, vida em comum, coabitação, laços afetivos, divisão de despesas, não se pode deixar de conceder-lhe os mesmos direitos deferidos às relações heterossexuais que tenham as mesmas características.
Tendo o Judiciário como inconcebível a analogia com o casamento ou a união estável, a convivência de pessoas do mesmo sexo tem encontrado resistência para o reconhecimento de direitos, praticamente fechando as portas para essa realidade, quem sabe com o propósito de não vê-la e assim fazê-la desaparecer.
Mais do que uma sociedade de fato, trata-se de uma sociedade de afeto, o mesmo liame que enlaça os parceiros heterossexuais. Na lacuna da lei, ou seja, na falta de normatização, há que se subsidiar do art. 4º da Lei de Introdução ao CC, que determina a aplicação da analogia, costumes e princípios gerais de direito. Não se pode fugir de estabelecer analogia com as demais relações que têm o afeto por causa, ou seja, o casamento e as uniões estáveis.
Não se pode confundir as questões jurídicas com as questões morais e religiosas.
Como bem referiu a Deputada Marta Suplicy na justificativa do seu Projeto: “Se todos têm direito à felicidade, não há por que negar ou desconhecer que muitas pessoas só serão felizes relacionando-se afetiva e sexualmente com pessoas do mesmo sexo. Valores e norma sociais são modificados, reconstruídos e alterados de acordo com as transformações da própria sociedade”.
Enquanto a lei não acompanha a evolução dos usos e costumes, as mudanças de mentalidade, a evolução do conceito de moralidade, ninguém, muito menos os aplicadores do Direito, podem em nome de uma postura preconceituosa ou discriminatória, fechar os olhos a essa nova realidade e sermos fontes de grandes injustiças.
O que não se pode é ceder no conflito entre a vontade de ser justo e o medo de sê-lo.
E uma sociedade que se quer aberta, justa, livre, pluralista, solidária, fraterna e democrática, às portas do novo milênio, não pode conviver com tão cruel discriminação.

(CD-ROM Coletânea Doutrinária, da Editora Plenum).

Maria Berenice Dias é Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Vice-Presidente do IBDFam, autora do livro União Homossexual – O Preconceito & a Justiça, Livraria do Advogado Editora, ano 2000

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