Responsabilidade penal dos entes jurídicos

Fernando Brandini Barbagalo

I – Introdução; II – Conceito; III – Noções Históricas; IV – Direito Comparado; V – Responsabilidade e imputabilidade; VI – Responsabilidade penal subjetiva e objetiva; VII – Responsabilidade individual, coletiva e social; VIII – Divergência de ordem constitucional e seus reflexos; IX – A responsabilidade penal dos entes públicos; X – As penas aplicáveis às pessoas jurídicas; XI – Posição dos tribunais superiores sobre o tema; XII – Conclusão; XIII – Interações Bibliográficas.

I – Introdução

Esse breve estudo objeta a análise da responsabilidade penal da pessoa jurídica em todos seus aspectos, enfocando uma aparente incongruência constitucional e sintetizando algumas monografias existentes sobre o tema bem como sua apreciação isolada em algumas doutrinas de Direito Penal, tratando ainda, superficialmente, de alguns pontos da Lei Ambiental (Lei n. 9605/98), principalmente seu regime de penas.

Logicamente, tal trabalho não tem a pretensão de esgotar este amplo assunto, que apenas começa a ser desvendado por grandes e renomados penalistas, busca, apenas, apresentar a dicotomia que se formou sobre o tema, elencando suas variantes e assim, posicionar o leitor em sua significação e conseqüências.

É, ressalte-se, um aparato global e sistematizado de vários estudos sobre o tema, no intuito de melhorar sua compreensão.

II – Conceito

Responsabilidade é a conseqüência jurídica decorrente do descumprimento de uma relação obrigacional. As pessoas são obrigadas a se respeitarem mutuamente e a não ofenderem seus bens e valores, regra básica da convivência social. Ocorrendo uma lesão, há de se analisar se o dano restringiu-se à órbita civil, ou atingiu algum bem protegido por uma norma penal.

A responsabilidade penal, em virtude do princípio da legalidade adotado pela Constituição Federal de 1988, advém somente da ofensa de um bem consolidado numa norma penal (tipo penal).

III – Noções Históricas

No direito penal primitivo, a reação ao cometimento de um delito recaía sobre toda a família ou grupo em que vivesse o autor do delito, admitindo a responsabilização inclusive de animais.

Com a evolução da espécie humana, alcançando a fase do iluminismo, foi adotado o princípio da personalidade da pena como dogma, o apenamento, então, passou a atingir somente a pessoa do ofensor. Revelou-se a responsabilidade penal individual, nessa época, apenas da pessoa física.

Quanto à pessoa jurídica, com o surgimento das grandes corporações e a supremacia do capitalismo, iniciou-se uma discussão sobre a natureza jurídica deste novo ente e sua capacidade penal.

Ao fim do século XVIII, essa idéia era rechaçada porque, apoiada na teoria da ficção legal de Savigny, que apregoava ser uma sociedade um ente fictício, cuja lei emprestava alguns direitos com o fim de produzir alguns efeitos (Traité de Droit Romain, pg. 147 e 428), não poderia, de fato, praticar crime. Obviamente, um ente fictício não poderia delinqüir. Era o surgimento da máxima: Societas delinquere non potest.

Porém, na segunda metade do século XIX, surgiu uma nova concepção da pessoa jurídica que oferecia base teórica para poder firmar sua responsabilidade. Assim, surgia a corrente realista, também chamada de organicista, ou positivista a qual se filiou o alemão Otto Gierke, citado por Puig, afirmando, em síntese, ser a pessoa jurídica um ser real, com vontade própria que não seria a soma das vontades de seus associados. A lei concedia-lhe uma capacidade que ela já tinha quando foi formada e, baseando-se neste conceito, a pessoa jurídica poderia delinqüir.

O fato do direito reconhecer a capacidade de atuar das pessoas jurídicas no direito privado, permitiria fundamentar a construção da responsabilidade penal dos entes coletivos, por que, como sentenciava Von Liszt, citado por Mirabeth: “Quem pode concluir contratos pode concluir também contratos fraudulentos ao usuário”.

Tal concepção é admitida atualmente por vários países, que recebem críticas severas por adotarem essa posição.

IV – Direito Comparado

No direito comparado atual, Grã Bretanha e E.U.A. assim como outros países de influência cultural anglo saxã aceitam a responsabilidade penal das pessoas jurídicas por razão pragmáticas que vão de encontro aos postulados do direito Romano, corrente que influenciou de forma incisiva nosso direito.

Assevere-se que o Comitê de Ministros do Conselho da Europa aprovou uma resolução, em 1977, recomendando, em síntese: “… pela transcendência dos princípios jurídicos em jogo, em particular, do conceito de responsabilidade penal das pessoas jurídicas e pelas divergências existentes a entre as diversas legislações, recomenda-se que cada Estado–Membro elabore a respeito das pessoas jurídicas um sistema repressivo (em sentido amplo) que compreenda sanções de natureza penal, administrativa ou sui generis”.

E assim estão fazendo quase todos os países europeus sendo que aqueles que não reconhecem a responsabilidade da pessoa jurídica propõem medidas de segurança através de medidas administrativas severas que acabam por se assemelhar às penas dos que a admitem, visando a coibir atitudes nocivas aos diversos bens passíveis de serem afetados pela atuação de uma empresa.

Destarte, apesar da tradição contrária, os países do continente europeu, nos últimos anos, abrem-se à possibilidade de admissão da responsabilidade penal da pessoa jurídica.

Aduza-se que alguns países da comunidade internacional já se anteciparam nesse sentido, sendo a França o exemplo mais contundente destes, pois acolheu por completo através de seu novo Código Penal, de 1994, o princípio da responsabilidade penal das pessoas jurídicas, sem excluir, contudo, as pessoas físicas, autoras ou partícipes do mesmo fato. Entre os delitos que podem ser imputados às pessoas jurídicas francesas estão: atentado ao sistema de tratamento automatizado de dados (Código Penal Francês, artigos 414-7 e artigo 422-5); abandono de lixo e rejeitos (artigo R632-1 e artigo R635-8); infrações em matéria de pesquisa biomédica (artigo L209-19-1, do Código de Saúde Francês).

Com efeito, países como os Estados Unidos da América, Inglaterra, Canadá, Holanda, Austrália, Portugal, Bélgica, Suécia, Irlanda do Norte, além da França têm admitido que pessoas jurídicas podem responder penalmente pelos danos que ocasionam ao meio ambiente.

A Holanda, por exemplo, prevê que “…os processos penais podem ser impetrados contra a empresa responsável, a pessoa que ordenou a ação e a pessoa encarregada de executar o ato delituoso”.

Na Inglaterra, igualmente, admite-se que a pessoa jurídica pode ser responsabilizada por delitos que pela sua natureza lhe permita praticar, principalmente nos crimes econômicos, nos de segurança do trabalho, contaminação atmosférica e proteção do consumidor (Interpretation Act of the 1989).

Também o Código Penal do Estado Americano da Califórnia admite expressamente a responsabilidade criminal da pessoa jurídica.

A responsabilização de entes jurídicos existentes na legislação dos países anglo-saxões e acabam por opor-se ao caráter ortodoxo e conservador dos países seguidores do dogmatismo ditado pelo Direito Romano, que elegeu como dogma absoluto o societas delinquere non potest.

Apesar de vários países adotarem a responsabilidade penal da pessoa jurídica, nenhuma das legislações apontadas enfrentou a contento o problema da culpabilidade e sua verificação naqueles entes. Todas se basearam em motivos de ordem prática, fundados no nexo de causalidade e na responsabilidade objetiva.

A Espanha, por sua vez, conforme ensina PUIG: “… não possui base legal para admissão da responsabilidade penal da pessoa jurídica, igualmente a Alemanha tão pouco possui tal admissão ainda que se admita seja punida por medidas administrativas derivadas da sua periculosidade numa espécie de medida de segurança”.

Assim, ainda que não adotem a responsabilização penal dos entes coletivos, Espanha e Alemanha são dotados de dispositivos legais administrativos inibidores de práticas nocivas ao meio ambiente e ao sistema econômico financeiro.

Ao que parece a Espanha seguiu o pensamento aclamado por unanimidade no 13º Congresso de Direito Penal realizado no Egito em 1994, onde se concluiu: somente os representantes devem ser responsabilizados pelas infrações cometidas em nome da pessoa jurídica.

Assevere-se, por oportuno, que alguns países latinos também adotam em sua legislação a responsabilidade penal da pessoa jurídica como o México e a Costa Rica.

Apesar das dificuldades referentes à configuração e apuração da culpabilidade e punibilidade dos entes jurídicos, a Constituição Federal Brasileira de 05 de outubro de 1988 acatou, nos artigos 173, parágrafo 5º e artigo 225, parágrafo 3º, a teoria da realidade, ou pelo menos deu esse entendimento, ao determinar que a legislação ordinária estabelecesse a punição da pessoa jurídica pelos atos cometidos contra a ordem econômica e financeira e contra o meio ambiente. Passados dez anos, surgiu finalmente a lei dos crimes ambientais, Lei 9.605/98, que prevê a responsabilidade dos entes jurídicos nos seus artigos 3º e 21 a 24.

V – Da punibilidade e da imputabilidade

Fundamental apresentar an passant alguns temas correlatos à responsabilidade penal, estabelecendo a diferenciação e possibilitando um melhor entendimento.

A responsabilidade penal não se confunde com a punibilidade. Violada uma norma penal, surge para o Estado o direito de aplicar uma pena ao sujeito infrator, o jus puniendi.

Essa possibilidade jurídica advém da responsabilidade penal, pressuposto necessário da punibilidade, mas, com ela não se confunde. Enquanto a responsabilidade, ou a possibilidade de ser responsável, antecede ou é concomitante ao cometimento do delito, a punibilidade lhe é posterior. Sempre ressaltando que, tratando-se de matéria penal, devem as condições estar vinculadas à lei.

A responsabilidade penal também depende diretamente da imputabilidade do sujeito ativo do delito, o infrator. Somente aquele capaz de entender a ilicitude de uma conduta e de determinar-se em consonância com esse entendimento no momento do fato é que pode por ele ser responsabilizado. Por essa razão não se admite a responsabilidade penal dos doentes mentais, dos animais e seres inanimados.

A imputabilidade, em síntese, é a capacidade de entendimento ético-jurídica da conduta delituosa que foi praticada e a determinação volitiva adequada a esse entendimento. É requisito da culpabilidade que associada à potencial consciência da ilicitude da conduta e à exigibilidade de conduta diversa forma o arcabouço da culpabilidade na teoria finalista.

Na imputabilidade reside um dos problemas para a aceitação da responsabilidade penal da pessoa jurídica, pois em sendo a pessoa jurídica um sujeito aparente, a vontade por ela emanada só poderia partir do homem, que seria então o verdadeiro autor da conduta.

Comungando deste entendimento, René Ariel Dotti afirma: “no sistema jurídico positivo brasileiro, a responsabilidade penal é atribuída, exclusivamente, às pessoas físicas. Os crimes delitos ou contravenções não podem ser praticados pelas pessoas jurídicas, posto que imputabilidade jurídico-penal é uma qualidade inerente aos seres humanos”.

Também para Oswaldo Henrique Duek Marques “a responsabilidade da pessoa jurídica, prevista na Constituição Federal de 88 e na nova legislação do meio ambiente, não pode ter natureza penal, mas somente administrativa ou civil”.

A culpabilidade, como ensina Damásio, liga o agente à punibilidade, funcionando como condição da resposta penal. Para ele: “O crime existe por si mesmo, mas, para que o crime seja ligado ao agente, é necessário a culpabilidade”.

Para Cezar Roberto Bitencourt: “O Direito Penal fundamenta-se na culpabilidade, cuja conduta, somente é atribuível ao homem, pedra angular da Teoria Geral do Crime”.

Apesar de aceitar a doutrina tradicional, Luiz Vicente Cernichiaro, rumando em direção oposta, ensina:

“A sociedade não pode ficar de braços cruzados diante de ilícitos praticados pelas pessoas jurídicas. É hora, sem dúvida, de vigorosa tomada de posição… A Escola Positiva, opondo-se aos postulados anteriores, com ironia dos reformadores, denominados clássicos, propuseram a substituição da responsabilidade pessoal pela responsabilidade social. A responsabilidade social acarreta a responsabilidade penal porque a pessoa vive em sociedade e, só por isso, tem a obrigação de comportar-se segundo os padrões juridicamente impostos. A responsabilidade social, evidente, sem os ditames ortodoxos da Escola Positiva, justifica responsabilizar a pessoa jurídica, se o rigor maior da sanção penal fosse conveniente para policiar sua atuação”.

VI – Responsabilidade penal subjetiva e objetiva.

Havendo violação de um preceito de lei penal, analisa-se a conduta do agente violador, verificando-se se agiu com dolo ou culpa (sentido lato), identificadores da culpabilidade e fatores de sujeição à atuação estatal.

No direito pátrio, a perquirição da culpa do sujeito é a regra, sendo a responsabilidade objetiva a exceção. Destarte, a responsabilidade penal objetiva é a que impõe alguém a sujeição de uma pena sem que tenha atuado, ou ficado demonstrado a sua culpa. Fundamenta-se no simples nexo de causalidade material. Finca bases na idéia causa-efeito, sem perquirir o ânimo, ou a intenção do agente. Por ser retrógrada e muitas vezes injusta essa concepção vem desaparecendo, embora o Código Penal Pátrio ainda guarde alguns resquícios (artigo 137, parágrafo único do Código Penal).

A responsabilidade penal subjetiva orienta-se pelo estado anímico do agente. O agente atua ou se omite querendo um resultado, ou quebrando um dever de cuidado (Doutrina Finalista).

VII – Responsabilidade penal individual, coletiva e social

A responsabilidade penal até então adotada de forma unânime no Brasil era a individual. Ainda nos crimes plurissubjetivos ou coletivos, analisava-se a responsabilidade individual de cada participante (artigo 29, parágrafo 1º, Código Penal).

Entre nós foi adotado o princípio da personalidade e da individualização da pena, onde esta deve ser aplicada, dentro do parâmetro estipulado no tipo sancionador, proporcionalmente a culpabilidade do infrator. Trata-se de uma das exigências de um Estado Democrático de Direito. Um crime cometido deve ser devidamente investigado para punir apenas aquele que lhe deu causa, observando sempre as condutas periféricas que contribuíram na eclosão do resultado.

O Brasil, como já colocado, passou a admitir a possibilidade de um ente coletivo praticar delitos contra a ordem jurídica e contra o meio ambiente na Constituição Federal nos artigos 173, parágrafo 5º e 225, parágrafo 3º.

Tal possibilidade é o ponto de discórdia dos doutrinadores de vários países, pois, se, por um lado, o Código Penal e a própria Constituição Federal parecem refutar a aplicação da responsabilidade objetiva, uma lei ordinária, autorizada pela CF/88, acabou por permitir esse apenamento.

Puig coloca com pertinência: “El fundamento de la extensión de la responsabilidad penal a personas distintas al autor del delito, que ya se ha dicho que descansa en la prevención general, no es suficiente para justificar este tipo de responsabilidad, pues la prevención general ha de limitarse por el princípio de personalidad de la pena, exigencia de un Estado democrático que respete le dignidad humana”.

A Escola Positiva propôs a substituição da responsabilidade pessoal pela social, pois vivemos em sociedade e temos a obrigação de nos comportar segundo os padrões impostos por essa sociedade.

Através da responsabilidade social poder-se-ia responsabilizar a pessoa jurídica, caso fosse conveniente (e necessário) à sociedade.

VIII – A divergência de ordem constitucional e seus reflexos

A Constituição Federal de 1988, involuntariamente, incentivou a discussão sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica quando permitiu essa possibilidade.

Em nosso modesto entendimento, há um paradoxo entre os artigos constitucionais. Logo, os artigos 5º, inciso XLV, e XLVI dispõem, respectivamente, que a pena não deve passar da pessoa do infrator e que a pena deve se ajustar à situação de cada imputado, porém, o artigo 225, parágrafo 3º autoriza que lei ordinária discipline uma conduta onde aparentemente isto não ocorrerá.

Conclui-se que neste ponto específico ocorre um conflito de normas na Constituição Federal, que estava latente até a promulgação da Lei 9.605/98 e conseqüentes discussões doutrinárias.

Foram inseridas matérias na Constituição que parecem inconciliáveis. Tal fato passou despercebido até a regulamentação do artigo 225, parágrafo 3º.

Indicar que a Lei dos Crimes Ambientais seria inconstitucional, como já pregaram alguns, é um equívoco, porquanto a responsabilidade penal deriva de um dispositivo constitucional, que apesar de não catalogado entre os direitos e garantias fundamentais do artigo 5º, integra o texto constitucional e dele retira sua validade. Como bem colocado por Alexandre de Moraes: “deve ser fixada a premissa de que todas as normas constitucionais desempenham uma função útil no ordenamento, sendo vedada à interpretação que lhe suprima ou diminua a finalidade”.

Raul Machado Horta, citado por Alexandre de Moraes complementa, apontando que “é evidente que essa colocação não envolve o estabelecimento de hierarquia entre as normas constitucionais de modo a classificá-las em normas superiores e normas secundárias. Todas são normas fundamentais. A precedência serve à interpretação da Constituição, para extrair dessa nova disposição formal a impregnação valorativa dos Princípios Fundamentais, sempre que eles forem confrontados com atos do legislador, do administrador e do julgador”.

Com efeito, o fato de não haver um estudo doutrinário sistematizado e conclusivo sobre a matéria da capacidade penal da pessoa jurídica, não seria o suficiente para inquinar de inconstitucionais os artigos 3º e 21 da Lei 9.605/98 que cuidam da responsabilidade penal dos entes coletivos. O Brasil, como outros países, convencionou entendimento prático sobre o assunto, pois lhe parecia necessário.

Então, ainda que haja um conflito entre a responsabilidade da pessoa jurídica e os princípios da personalidade e da individualização da pena, a lei que a disciplinou não pode ser maculada de inconstitucional.

No entanto, a referida lei provoca perplexidade geral quando se divorcia dos princípios norteadores do direito penal pátrio.

E tal sentimento tem razão de ser. É certo que numa empresa as decisões são tomadas por ínfima parcela de dirigentes, ou, com freqüência, por um só deles.

Ao se punir toda uma firma, estar-se-ia punindo, eventualmente, aquele que nenhuma relação teve com o cometimento do delito ambiental e quiçá reprova-o. Indubitável que tal atitude agride o princípio da personalidade da pena.

Ainda que se aceite uma empresa como ser real dotado de capacidade própria, a pena infligida atingiria terceiros, pessoas físicas, que não concorreram para o resultado do delito.

Por outro lado, somente as sanções administrativas muitas vezes mostram-se ineficazes na repressão a condutas irregulares e até estimulam novos ilícitos.

A perplexidade aventada aumenta quando se cogita de inculpar um ente público pelo cometimento de um delito ambiental, pois, em sendo a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios pessoas jurídicas (artigo 14, Código Civil), poderiam, em tese, praticar crimes.

Assim, ainda que se possa dar respaldo legal para a aplicação de pena ao ente jurídico esta possibilidade acaba se deparando com um obstáculo que dificulta e causa resistência à sua aplicação.

IX – A responsabilidade penal dos entes públicos

A legislação de proteção ambiental brasileira, ao contrário da francesa, não excluiu expressamente os entes públicos de sua órbita de aplicação.

Dessa omissão surgiu a polêmica sobre a possibilidade das pessoas jurídicas de direito público interno (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) serem atingidas pelo artigo 3º da Lei 9605/98.

Sobre o assunto, logo surgiram duas posições, como sempre antagônicas, as que permitem e as que negam tal possibilidade.

As que permitem sustentam sua posição no fato das pessoas jurídicas serem iguais sempre, independentemente de sua natureza jurídica pública ou privada, ocorrendo uma violação do princípio da isonomia caso se admitisse a punição da pessoa jurídica privada e não da pública.

As que negam, por sua vez, sustentam que as pessoas jurídicas públicas e privadas são completamente diferentes e que a posição do ente público justificaria uma quebra do princípio da isonomia, por que se até em demandas patrimoniais ocorre tal transgressão, o que dizer para fins penais. A esse argumento somam-se outros como o de que o Estado como titular do jus puniendi não poderia punir a si próprio.

Outro aspecto a ser analisado é de que o Estado é sempre atingido quando da prática de um crime, sendo sempre sujeito passivo indireto ou formal do delito o que o impossibilitaria de ser também o sujeito ativo desse mesmo delito.

Sob outro enfoque, a se admitir que o Estado possa delinqüir, quem seria competente para processar e julgar os delitos praticados pela pessoa jurídica de direito público interno?

Suponha que o Estado de São Paulo estivesse sendo processado por crime ambiental, qual seria o juízo competente? Uma das Varas da Fazenda Pública? Não, pois estas julgam somente questões de ordem patrimonial. O Pleno do Tribunal de Justiça seria o órgão competente? Entendemos que não, pois estaria julgando a si próprio (Poder Judiciário também é Estado). A Constituição Federal e as leis vigentes igualmente não resolvem o problema, pelo que ainda que se admita a hipótese da responsabilização da pessoa jurídica de direito público interno, não existiria órgão judicial apto a julgá-lo.

Pelo que foi aduzido, concluí-se, data venia, pela impossibilidade de se processar os entes públicos, devendo eventual demanda ser dirigida contra a pessoa física do agente público apenas, garantindo verdadeira imunidade à ação penal por delitos ambientais às pessoas jurídicas de direito público.

X – As penas aplicáveis à pessoa jurídica

A lei de proteção ambiental trouxe, como não poderia deixar de ser, decorrência de seu pioneirismo, as penas aplicáveis à pessoa jurídica infratora. A Lei arrola as seguintes penas: multa, restritiva de direitos, prestação de serviços à comunidade.

A multa será aplicada com o mesmo critério utilizado para a pessoa física previstos no Código Penal (artigo 49). Parte da doutrina cogitou substituir a unidade padrão (dia-multa) para outra mais consentânea com a finalidade repressora, insinuando a possibilidade de se estabelecer uma pena de multa com unidade dia-faturamento, que, como se sabe, não foi adotada.

As penas restritivas de direitos consistem na suspensão parcial ou total das atividades (artigo 22 e parágrafo 2º) e proibição de contratar com o poder público, bem como deixar de receber subvenções ou doações por até dez anos (artigo 22, III e parágrafo 3º).

A prestação de serviço à comunidade consiste em custear programas de projetos ambientais (artigo 23, I), executar obras de recuperação de áreas degradadas (artigo 23, III) e contribuir para entidades ambientais ou culturais públicas (artigo 23, IV).

A pena mais grave é a decretação da liquidação forçada da pessoa jurídica que permitir, facilitar, ou ocultar a prática de crime definido na Lei de Proteção Ambiental, que alguns consideraram inconstitucional porque acarretaria, mal comparando, uma utópica pena de morte da pessoa jurídica e tal pena no Brasil só é admitida por exceção em casos de guerra.

Além dessas penas e cumulativo a elas, a pessoa jurídica poderá ser desconsiderada quando sua personalidade se torne um entrave ao ressarcimento dos prejuízos causados ao meio ambiente (artigo 4º) hipótese semelhante a que ocorre na Lei 8.078/90, Código de Defesa do Consumidor (artigo 28).

Tais penas estão inseridas na parte geral da Lei Ambiental como norma de extensão à parte especial sendo necessária uma integração para a aplicação da pena, o que proporcionou, logicamente, uma chuva de críticas por parte dos doutrinadores, pois nunca antes se teria legislado dessa maneira em matéria penal. Não foram poucos os que pugnaram pela inconstitucionalidade da medida pela falta de lógica em sua aplicação e pela quebra da legalidade.

Observe-se que a punição das pessoas jurídicas não impede a da pessoa física que concorrer para o delito (artigo 2º e artigo 3º caput, parte final). Nem poderia ser diferente, sob pena daquele que gerencia, ou detém poderes de decisão sobre determinada empresa poluidora, logo após a decretação da liquidação forçada da empresa, poder com facilidade abrir outra que pudesse mascarar seu intento.

Destarte, embora não plenamente lúcida no texto legal, a responsabilidade da pessoa jurídica não afasta a da pessoa física que concorreu diretamente para que o delito ocorresse da forma como ocorreu. A responsabilidade penal da pessoa física concorre com a da pessoa jurídica.

Deve-se admitir toda modalidade de concurso de pessoas: co-autoria, participação moral (instigar e induzir), material (instrumental). O legislador pune as formas comissivas e também as omissivas dos fiscais, sócios etc (deixar de atuar, quando deveria impedir).

Saliente-se que, em relação às penas impostas às pessoas jurídicas, deve-se visar à extensão dos danos ocorridos.

Para suplantar a dificuldade da subsunção da conduta ao tipo, visando a um correto enquadramento legal, insinua-se a utilização da chamada responsabilidade emprestada, o que Puig denomina “atuar pelo outro”.

Um embuste trazido pela Lei Ambiental, talvez seja a ineficácia de tais penas em sua ação inibitória, pois, em não se comprovando concretamente de quem partiu a ordem que culminou o cometimento de um delito e punindo apenas a pessoa jurídica ou funcionários subalternos cumpridores de ordem superior e, que tragados pelo desespero do desemprego, cumprem cegamente a determinação de devastar uma floresta, por exemplo. Esse apenamento não impediria o verdadeiro mentor do delito, sempre pessoa física, de reiniciar sua empreitada criminosa, utilizando outra empresa de fachada. A prevenção geral e especial fenece nos artigos da Lei 9.605/98.

Há lacunas no esclarecimento sobre se a suspensão do processo e da sentença é aplicável às pessoas jurídicas, se há limites para suspensão e interdição das atividades, além de um melhor detalhamento processual.

Ressalte-se, por fim, o inegável cunho civil ou administrativa das reprimendas adotadas pela Lei 9605/98, que se absteve de qualquer tentativa de inovação nessa matéria.

XI – Posição dos Tribunais Superiores sobre o tema

Por enquanto não houve manifestação dos tribunais superiores sobre o assunto. Aguarda-se, portanto, ansiosamente uma decisão a balizar as demais instâncias.

A falta de manifestação sobre o tema decorre seguramente, não da carência de acontecimentos que possam ser enquadrados na Lei de Proteção Ambiental, mas da resistência na aplicação dessa lei em decorrência, como já dito, de sua ambigüidade.

A dúvida de como se manifestarão os tribunais superiores sobre a questão logo deverá se dissipar, pois o Ministério Público do Estado de São Paulo vem seguidamente apresentando denúncias contra pessoas jurídicas, que têm sido recebidas pelos magistrados paulistas, de modo que dentro em breve algum tribunal se posicionará sobre o tema.

XII – Conclusão

Em razão de todo exposto, ainda com a elaboração e vigência da Lei 9.605/98, ressente nosso direito de uma legislação melhor posicionada, menos lacunosa e de técnica mais apurada a possibilitar um entendimento sereno e uma aplicação sem assombro.

Com efeito, todos comungam da necessidade de sanções vigorosas para coibir e prevenir que as pessoas jurídicas (ou através delas) mantenham-se confortavelmente na ilegalidade.

Há dificuldades em investigar e individualizar as condutas nos crimes de autoria coletiva, na violação do princípio da isonomia, da humanização das penas e outras tantas decorrente da legislação que sempre vislumbrou uma ação humana como base de toda a Teoria Geral do Crime.

A clássica incompatibilidade de adequação dos princípios tradicionais de responsabilidade pessoal, culpabilidade, individualização da pena dificulta, mas não impossibilita a adoção da responsabilização penal da pessoa jurídica.

Com efeito, a larga atuação das empresas tem exigido em todo o mundo uma efetiva tomada de posição contra a impunidade das pessoas jurídicas que, por vezes, são causadores de verdadeiras catástrofes ambientais.

Louvável nesse sentido o esforço do constituinte e posteriormente do legislador pátrio em nos dotar com uma legislação específica para o melhor zelo do meio ambiente.

A degradação ecológica está atingindo patamares alarmantes, o que talvez justifique um singular empenho do intérprete para coibir os abusos de algumas empresas. Contudo, fundamental estudar outras alternativas legais adequadas (civis, administrativas, ou penais), municiando a sociedade e propiciando uma efetiva preservação ambiental.

XII – Interações bibliográficas

Doutrinas

– Cernichiaro, Luiz Vicente e Costa Junior, Paulo José da. Direito Penal na Constituição, editora RT, 1990.

– Horta, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional, editora Del Rey, 1995.

– Jesus, Damásio Evangelista. Direito Penal, Parte Geral, editora Saraiva, 2000.

– Marques, José Frederico. Tratado de Direito Penal, Volume II, editora Saraiva.

– Mirabete, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal, Volume I, Editora Atlas, 1997.

– Moraes, Alexandre. Direito Constitucional, editora Atlas, 1997.

– Puig, Santiago Mir. Derecho Penal, Parte General, PPU, 5ª edición, Barcelona, 1998.

– Silva, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, editora Malheiros, 9ª edição, 1992.

– Sirvinskas, Luiz Paulo. Tutela Penal do Meio Ambiente, Editora Saraiva, 1998.

– Smanio, Gianpaolo Pogio. Fundamentos Jurídicos: Interesses Difusos e Coletivos, Editora Atlas, 2000.

Artigos

– Bittencourt, Cezar Roberto. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica, Boletim do IBCCrim, São Paulo, abril/98, n. 65, pág. 7.

– Dotti, René Ariel, A responsabilidade Penal das Pessoas Jurídicas, Revista de Ciências Criminais n. 11, São Paulo, pág. 201.

– Fonseca, Cibele Benevides Guedes. Meio Ambiente: Responsabilidade das Pessoas Jurídicas, Revista Jurídica Consulex, ano II, 1998, n. 20 pg. 36.

– Krebs, Pedro. A (ir)responsabilidade penal dos entes públicos, Revista dos Tribunais, ano 89, fevereiro de 2000, vol. 772, pág. 485.

– Marques, Oswaldo Henrique Duek. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica, Boletim do IBCCrim, São Paulo, abril/98, n. 65, pág. 6.

– Ribeiro, Lúcio Ronaldo. Da responsabilidade penal da pessoa jurídica, Revista dos Tribunais, ano 87, dezembro/98, vol. 758, pág. 409.

– Santana, Selma Pereira. Responsabilidade Penal das Pessoas Jurídicas, Revista Jurídica Consulex, ano II, 1998, n. 16, pg. 44.

– Shecaira, Sergio Salomão. Responsabilidade Penal das Pessoas Jurídicas, Boletim do IBCCrim, São Paulo, abril/98, n. 65, pág. 03.

FERNANDO BRANDINI BARBAGALO é advogado em Santa Cruz do Rio Pardo – SP.

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