População foi colocada contra o Judiciário, afirma juiz

Por Paulo Sérgio Domingues
Desde seu primeiro dia, 2003 foi um ano diferente. A posse de um novo governo, um governo com marca, origem e estilo inéditos, gerou expectativas variadas em todos os setores da sociedade. Um novo Congresso Nacional, renovado, também representou possibilidades diversificadas na condução dos interesses do País. O Judiciário, que também vem apresentando acelerado processo de mudanças na sua organização e forma de atuação — tanto no aspecto institucional como associativo — acompanhou e participou desse processo político.

Sem sombra de dúvida, o governo que assumiu, com o respaldo concedido pelos milhões de votos recebidos, e a sinalização de um grande desejo de mudanças por parte dos eleitores, manifestou desde o início o desejo da implementação de políticas diversificadas. Como sempre ocorre, é natural que isso leve ao surgimento de conflitos entre setores e grupos sociais; e — outro fenômeno habitual quando há mudanças de governo — o desejo da tomada de medidas drásticas para a execução de programas de governo, mas que poderiam ultrapassar os limites da Constituição Federal.

Nessa última hipótese, há no mínimo duas conseqüências usuais: uma, a imediata apresentação de propostas de mudanças constitucionais: as “reformas de que o país necessita”, a fim de adequar as regras do jogo ao jogo que se quer jogar, ou, em outras palavras, amoldar a Carta Constitucional às novas políticas que se pretende implementar. Para isso, envolve-se o Congresso Nacional e a sociedade no processo de convencimento sobre a necessidade e a pertinência de se modificar a lei fundamental do País, e, mais ainda, na necessidade de que as mudanças sejam exatamente aquelas que o governo propõe, o que nem sempre é possível tendo em vista o fato de que o jogo político tem regras diferentes, podendo chegar a um resultado bem diverso da proposta inicial.

A outra conseqüência que desejo abordar é mais sutil em sua compreensão, mas de repercussões também importantes. Fundamenta-se no fato de que nenhum poder gosta de limitações. Ninguém que exerça poder político, entendendo-se legitimado por milhões e milhões de votos, aceita com prazer o fato de que sua enorme vontade de realizar o bem encontrará limites; pior, que estes limites poderão ser apontados por alguém que não foi eleito, que já estava lá antes, e que tem o poder de dizer se determinado ato governamental ultrapassa ou não a linha delimitada pela Constituição e pela Lei: o Judiciário.

Ora, não é tão simples ao Executivo — a qualquer novo Executivo — admitir que, se alguém ingressa com uma ação judicial, um juiz poderá suspender os efeitos de um ato governamental, ou de uma lei, sob o fundamento da inconstitucionalidade. Quando isso acontece, qual a primeira reação? Simples: esse juiz, desembargador, ministro, está fazendo perseguição política, é da oposição, ou quer aparecer, ou atenta contra a governabilidade, dentre outras várias possibilidades.

Uma ou várias destas respostas costumam surgir imediatamente, como um reflexo condicionado, permeando as críticas subseqüentes ao Judiciário, esse Poder petulante, que ousa tomar decisões na defesa de direitos dos cidadãos sob a alegação de que o Estado estaria violando a Lei ou a Constituição….

E nesse momento, cabe a seguinte indagação: ora, mas não é mesmo para ser assim? Não é para isso que o Judiciário serve? Para assegurar a aplicação da Constituição e da Lei?

Bom, isso é claro. E, como escrevi acima, essa reação indignada e raivosa — decorrente, como faço questão de ressaltar, do desejo de inovar e realizar — acaba aos poucos por arrefecer. Logo ressurge a noção de que realmente o Judiciário existe é para isso mesmo, que isso faz parte do sistema Republicano, do Estado Democrático de Direito, e que não há nenhum plano obscuro de sabotagem por parte dos Magistrados em relação aos planos de governo.

Chego quase a crer que já não se vê os juízes como seres maquiavélicos e privilegiados, que pouco trabalham em troca de muitas benesses, e que agora se têm uma visão mais real, do Judiciário como um corpo formado por seres humanos, de perfis diferentes, mas em sua esmagadora maioria pessoas dedicadas à prestação de um serviço de qualidade à população, mas que enfrentam as mesmas dificuldades que todo serviço público possui, de excesso de trabalho, de falta de meios, de incompreensão, tudo isso agravado pela complexidade da tarefa de dizer o direito e de exercer um dos poderes políticos do Estado.

Mas o Judiciário foi simples vítima de uma injustiça, deliberada ou não? A resposta deve ser negativa. É que, diferentemente do que costumava ocorrer, o Judiciário hoje responde. A Justiça é morosa, complicada, burocrática, mas hoje reage, fala e mostra à sociedade as razões dos problemas que enfrenta, e mesmo qual a responsabilidade dos outros Poderes na triste situação de congestionamento do Judiciário.

Com esse cenário, fez-se o conflito. O Judiciário foi acuado, acusado e atacado, no início deste ano. A população foi colocada contra o Judiciário que existe para defendê-la, e reagiu com firmeza. A situação beirou a crise institucional entre o Executivo e o Judiciário, com ataques e contra-ataques de todos os lados, com uma boa exploração do tema por setores da mídia. Toda e qualquer deficiência na prestação jurisdicional foi apontada como motivo para “reformar o Judiciário”, expressão que tomou ares cabalísticos como se se tratasse de necessária punição para “colocar o Judiciário na linha”.

Naturalmente o intuito destes comentários não é o de ressuscitar antigas polêmicas; antes, objetivo analisar um cenário que se desenrolou durante muitos meses do ano, e que merece atenção pelo prejuízo causado: os três Poderes perderam tempo demais com isso, e temas da maior relevância como o combate à impunidade, a morosidade dos processos e as reformas na legislação processual, a segurança pública, a reforma estrutural do Judiciário e outras foram tratadas de maneira superficial, com palavras de ordem e slogans fáceis.

Felizmente, o cenário que se apresenta neste final de ano parece distinto: parece agora existir um consenso no sentido de que todos os Poderes Políticos e as instituições sociais possuem deficiências e ao mesmo tempo responsabilidades no intuito de melhorar as condições de vida da população, incluindo-se aí todos os aspectos do que chamamos de exercício da cidadania — dentre os quais o direito a uma prestação jurisdicional mais célere e eficaz. Hoje se caminha para se assumir publicamente que os três Poderes procuram agir na garantia do interesse público, cada um com suas próprias visões, limitações e esferas de atuação, mas somente agindo juntos poderão se aproximar dos objetivos que buscam: quem sabe, caminhamos no sentido do exercício verdadeiro e real da previsão constitucional de independência com harmonia entre os Poderes da República.

A própria mídia parece ter acompanhado esse processo de amadurecimento. Em vez de uma exploração generalizada e sensacionalista de fatos esporádicos — como os casos de investigações contra juízes, que são necessárias sempre que houver suspeita de má conduta — nota-se uma postura de encarar esses fatos como o que são: exceções.

Essas reflexões não significam uma visão pessimista do ano que se encerra. Mesmo esses conflitos tiveram aspectos positivos, como o de inserir o Judiciário no debate político e institucional do País; e, afinal, o conflito é uma possibilidade de compreensão do outro. Além disso, de resto, houve diversos eventos positivos no cenário político e jurídico do país.

Ajufe em cena

A Associação dos Juízes Federais do Brasil conseguiu manter-se como partícipe desse processo complexo ao longo de 2003. Desde janeiro houve aproximação e o diálogo com o novo Executivo e o novo Legislativo, apresentando os anseios e reivindicações da Magistratura Federal. O início, naturalmente e como decorrência do processo que narrei acima, foi difícil, porém promissor.

Infelizmente, o processo de verdadeira fritura a que foi submetida a Magistratura durante o início do trâmite da reforma da previdência na Câmara dos Deputados minou e tensionou esse relacionamento; a apresentação de dados distorcidos por parte do governo, comparações incorretas feitas publicamente pelo presidente da República, tudo isso exigiu reações firmes e naturalmente fortes.

Aos poucos, porém, também isso foi se reduzindo, e foi se restabelecendo o sentimento de que, cada uma a seu modo, as instituições atuam todas visando a prevalência do interesse público.

A Ajufe participou com oficinas no III Fórum social mundial, realizou muitos eventos e seminários sobre temas como combate à lavagem de dinheiro, as agências reguladoras e o controle de seus atos pelo Judiciário, a proteção ao meio ambiente e ao patrimônio histórico, juizados especiais federais, sistema financeiro da habitação e outros.

Como a voz dos Juízes Federais, a Ajufe procura continuar a dar sua contribuição para tornar nosso país um lugar melhor e mais justo. Atuamos em cooperação com os órgãos do Judiciário e dos outros Poderes; mas, sem jamais deixar de criticar, exigir e reivindicar, sempre que necessário.

Atuamos fortemente nas discussões sobre a reforma da previdência, na Comissão de Altos Estudos do Conselho da Justiça Federal, na Reforma do Judiciário e no acompanhamento de projetos de lei de interesse do Judiciário e da Sociedade no Congresso, como o da criação de 183 novas Varas da Justiça Federal.

No Congresso Nacional, estivemos participando de diversas audiências públicas: na Câmara dos Deputados, sobre Reforma do Judiciário, combate à violência, e mesmo na CPI dos combustíveis e em seminário sobre o exercício da cidadania política junto ao Legislativo; no Senado Federal, também sobre Reforma do Judiciário, sobre projetos de lei sobre segurança pública, sobre o anteprojeto de lei da Ajufe sobre cooperação judiciária internacional,

Fizemos cinqüenta programas de televisão, o “Justiça para todos”, veiculado semanalmente no canal TV Justiça; a TV consolida-se como veículo importante de divulgação da atuação do Judiciário à sociedade, de discussões e de transparência. Debatemos, o ano todo, temas como reforma agrária, combate à impunidade, meio ambiente, direito tributário, relacionamento com a imprensa, formação jurídica, e tantos outros.

Participamos, ainda, de diversos conselhos e comissões, como o Comitê Gestor da ICP-Brasil, o Conselho Deliberativo do Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, a Comissão de Erradicação do Trabalho Escravo.

Haveria muito mais a dizer; foi um ano complexo e rico em acontecimentos e em avanços institucionais. Tudo, nesse breve resumo, é relevante e poderia ser acrescido de muitos outros temas. Numa análise política, porém, 2003, ficará com a marca de um ano em que o papel dos Poderes e o relacionamento entre eles foi colocado em discussão, à vista da Sociedade. Espero que essa característica do ano que se encerra seja bem observada e sirva como aprendizado para todos nós.

Paulo Sérgio Domingues é presidente da Ajufe

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