Pena de Morte II

Marcelo Lessa Bastos

Sem maiores pretensões, discorro neste modesto ensaio sobre a pena de morte, tema de eterna polêmica e de apaixonantes discussões no mundo acadêmico. É necessário que a abordagem se dê sob dois aspectos – um ideológico e outro jurídico. Em outras palavras, é preciso que se respondam a duas perguntas: primeiro – se somos contra ou a favor da pena de morte?; segundo – se é possível adotar a pena de morte no Brasil?

Comecemos pelo primeiro aspecto da questão: se somos contra ou a favor da pena de morte.
Primeiramente, é bom lembrar que a Igreja a praticou largamente durante o período da “Santa Inquisição”, contra os hereges, aqueles que ousavam questionar os dogmas da fé. Um dos maiores exemplos disto talvez tenha sido Joana D’arc (já condenada à morte, para transformar sua pena em prisão perpétua, assinou uma abjuração em que prometia, entre outras coisas, não mais vestir roupas masculinas, como forma de demonstrar sua subordinação à Igreja. Dias depois, por vontade própria ou por imposição dos carcereiros ingleses, voltou a envergar roupas masculinas. Condenada à fogueira por heresia, foi supliciada publicamente na praça do Mercado Vermelho, em Rouen, em 30 de maio de 1431). A pena de morte chegou, em determinado momento, a ser completamente banalizada. Drácon, legislador grego, promulgou certo Código que estatuiu pena de morte para todos os crimes. Indagada a razão pela qual sempre previa a pena de morte, de um pequeno furto ao mais terrível dos homicídios, respondeu: “creio que um furto mereça a morte e não encontrei nada mais grave do que a pena de morte para o homicídio. Assim, estou satisfeito que se aplique apenas a pena de morte para os homicidas!” Drácon passou para a História e seu nome, até hoje, é sinônimo de rigor inflexível.

Com os movimentos revolucionários da época do Iluminismo, paulatinamente foram-se procurando outros fundamentos para a pena, até se pretender erradicar do mundo moderno todas as penas corporais, inclusive a de morte.

A pena em si, que até então era vista apenas como um castigo, uma retribuição ao criminoso pelo mal que ele fizera, passou a ser vista pelos pensadores inspirados nos ideais revolucionários como de caráter educativo, buscando a reinserção do preso no convívio social. Não apenas mais o castigo pelo castigo; mas o castigo como meio de se recuperar um ser humano que, por uma razão qualquer, se viu em conflito com a Lei. Neste contexto, não haveria espaço mais para a pena de morte.

Que coisa linda! Teoricamente, é maravilhoso! Mas, pergunta-se: o que fazer com os “Fernandinho Beira-Mar” da vida? Dizer que ele é fruto do sistema, vítima da falta de opções do mercado de trabalho, da opressão, da desigualdades sociais, entre outras hipocrisias que se costumam falar, francamente, é um absurdo! Aliás, penso eu, é um desrespeito com a grande maioria das pessoas extremamente pobres que buscam no trabalho honesto a fonte de seu sustento.

Então precisamos encontrar uma solução para ele, que seja menos onerosa para os já sacrificados bolsos dos contribuintes do que permanecer sustentando-o e alimentando-o na prisão, para que, lá de dentro, graças às vicissitudes do sistema, ele continue a comandar seus negócios, e ainda usando o nome de Deus.

Aí talvez entraria a pena de morte como solução, pelo menos econômica, para aqueles em relação aos quais não paire a menor dúvida de que jamais terão recuperação, a não ser para quem acredita em Cegonha e Papai Noel.

Pessoalmente, em princípio, sou contra a pena de morte, mas por uma única razão: o preso que simplesmente é executado não sofre o suficiente que merecia pelo crime praticado. Particularmente, prefiro a prisão perpétua, como forma de proteger a Sociedade contra indivíduos nocivos como este que tomamos de exemplo.

Mas há de se chegar um momento em que manter todos os “Fernandinhos Beira-Mar” em prisão perpétua será economicamente inviável. Aí sim, a pena de morte ter, em meu sentir, espaço.

É isso que penso, ideologicamente, sobre o tema. Abordo-o sem hipocrisia, de coração aberto, sujeito a toda e qualquer crítica.

Passemos, doravante, às questões jurídicas em torno do assunto.

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer, sem alarde, que a Constituição Brasileira permite a adoção da pena de morte, em caso de guerra declarada (vide art. 5º, XLVII, que estabelece: “não haverá penas: de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX”…).

Logo, em caso de guerra declarada, é possível a pena de morte no Direito Brasileiro. E o Código Penal Militar, para os crimes militares em tempos de guerra, em plena sintonia com a Constituição, prevê a pena de morte em vários de seus artigos (por exemplo, arts. 356, 357, 358, 359 etc).

Uma curiosidade: a forma de execução da pena de morte prevista no Código Penal Militar, é por fuzilamento (Código Penal Militar, art. 56 – “A pena de morte é executada por fuzilamento”), o que, se fosse levado a efeito no Brasil, pela experiência que temos, num dia haveria a arma mas faltaria munição, no outro, que teria munição, a arma não funcionaria, e no terceiro, estando arma e munição em ordem, o atirador teria faltado ao serviço…

Ao permitir a pena de morte somente “em casos de guerra declarada”, a contrario sensu, nossa Constituição não permite a adoção deste tipo de pena em nenhuma outra situação que não aquela acima explicitada (caso de guerra declarada).

Por isto, qualquer Lei que, em tempos de paz, cominasse a um crime comum a pena de morte padeceria pelo vício de ser flagrantemente inconstitucional, não podendo surtir nenhum efeito.

Aprofundemos mais um pouquinho, para finalizar. O art. 5º de nossa Constituição, onde está a garantia de que a pena de morte só possível em caso de guerra declarada, pertence ao rol dos chamados Direitos Fundamentais, expressão maior dos Direitos Humanos. E é claro que o direito à vida é o maior deles.

Nossa Constituição, que permite ser emendada, coloca alguns obstáculos para ser alterada, os quais se encontram em seu art. 60. Interessa-nos aqueles consagrados no § 4º, em especial no inciso IV, deste citado art. 60. Ali estão as chamadas “cláusulas pétreas”, ou seja, pontos da Constituição que não podem ser objeto de emenda tendente a aboli-los. Dentre esses pontos, encontram-se os Direitos e Garantias Individuais, no bojo dos quais está o de que não haverá pena de morte, exceto em caso de guerra declarada.

Logo, uma conclusão há de se impor: a de que não é possível, nem mesmo por emenda à Constituição, adotar-se a pena de morte no Brasil, para os crimes comuns, em tempos de paz.

Nenhuma proposta de emenda à Constituição que pretendesse dispor de modo diverso seria admissível. Não deveria passar nem mesmo pela Comissão de Constituição de Justiça do Congresso Nacional. Mas, se porventura passasse, qualquer ação direta de inconstitucionalidade (que pode ser proposta, dentre outros legitimados, pela OAB, Partido Político etc – vide art. 103 da Constituição Federal), conseguiria junto ao Supremo Tribunal Federal a extirpação de teratológica emenda de nosso mundo jurídico.

Em resumo, na vigência da atual Constituição, é impossível adotar-se a pena de morte tal como se tem querido e discutido. Só uma nova Constituição (uma nova manifestação do chamado Poder Constituinte Originário), fruto do trabalho de uma nova Assembléia Nacional Constituinte para este desiderato convocada, é que poderia permitir a adoção da pena de morte indiscriminadamente, e aí o problema a ser enfrentado seria com o Direito Internacional e os Tratados e Convenções que o Brasil ratificou.

Mas, por derradeiro, podemos afirmar que não há possibilidade jurídica, na vigência desta Constituição, de ser adotada a pena de morte com se quer. A discussão em torno dela só vai ficar mesmo no plano ideológico, nas linhas que procurei traçar e expor minhas idéias no artigo anterior.

Marcelo Lessa Bastos
Professor de Direito Penal
e Processual Penal

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