PASSAPORTE FALSO – DEPORTAÇÃO

Luiz Vicente Cernicchiaro

O Título X — Dos Crimes Contra a Fé Pública — reúne várias modalidades de falso, dentre as quais a Falsidade Documental, englobando, outrossim, a Falsidade Material e a Falsidade Ideológica. O interesse do Estado sobressai imediatamente. Cumpre conferir credibilidade aos símbolos e papéis públicos e particulares. Nele, tantas vezes, apóiam-se relações jurídicas de inestimável valor. Em se tratando de documentos públicos, a própria credibilidade do Estado se faz presente.

Em havendo falsificação de passaporte, emitido pelo Estado, a simples criação do documento, no sentido de emissão, é bastante para fazer-se presente o interesse oficial.

A definição dos tipos penais, dentre outros, obedece ao princípio da proporcionalidade. Com efeito, o contexto axiológico reclama distinções a fim de a resposta jurídica ajustar-se a cada hipótese normativa. Não faz sentido a lesão corporal ser punida com a mesma pena cominada ao homicídio. O impacto que tais infrações provocam no respectivo bem jurídico é diferente. A igualdade, materialmente, só se configura tratando distintamente situações diferentes. Diga-se o mesmo, comparando a consumação e a tentativa. No particular, sem dúvida, ganha significativo realce a culpabilidade, entendida no sentido moderno, ou seja, reprovabilidade ao agente por haver decidido e executado o delito, em circunstâncias censuráveis.

Há distinção entre criar e utilizar o falso, não obstante a identidade das sanções cominadas.

No tocante ao passaporte, o uso se faz no momento da saída do país (exigência da Polícia Federal) e quando o passageiro chega ao país de destino, devendo exibi-lo às autoridades locais.

Há, na espécie, em havendo burla, dois momentos da mesma ilicitude. O crime, entretanto, é um só. O mesmo resultado normativo com pluralidade de conseqüências materiais. Assim, na hipótese pensada, o delito se consuma no Brasil, eventual êxito, no exterior, será exaurimento (tem, como pressuposto, a consumação e configura a vantagem obtida pelo agente do crime.)

A competência da Justiça brasileira resta configurada; além do engodo ocorrer no território nacional, a aplicação da lei penal no espaço é disciplinada no art. 7º, I, b, e art. 7º, II, b, c/c § 2ºdo Código Penal.

Em chegando ao país estrangeiro, se o agente não for ali admitido, ao fundamento de tentativa de entrada irregular, será, incontinenti, devolvido ao Brasil. É o que, em Direito Internacional, se denomina deportação. Coloca-se, aqui, esta pergunta: a deportação inibirá o Brasil de aplicar sanção penal? Caso o faça, ocorrerá o odioso bis in eadem?

As sanções jurídicas atendem a particularidades de cada setor dogmático. Não é a quantidade que conta. Importante é a espécie. Há fatos de que decorrem várias sanções: o motorista de carro oficial que, culposamente, atropelar e matar o pedestre, causando danos materiais a vítima, cujo direito é transmitido aos sucessores, ao mesmo tempo infringe norma administrativa que o obriga a estar atento às regras do Código Nacional de Trânsito. Decorrem, pois, do mesmo acontecimento, sanções penal, civil e administrativa. Uma não exclui a outra.

A deportação, no magistério de Francisco Rezek e Jacob Dolinger, ‘‘é o processo de devolução de estrangeiro que aqui chega ou permanece irregularmente, para o país de sua nacionalidade ou de sua procedência. Enquanto que na expulsão a remoção se dá por prática ocorrida após a chegada e a fixação do estrangeiro no território do país, a deportação se origina exclusivamente de sua entrada ou estada irregular no país.

O deportado poderá retornar ao Brasil desde que atenda às exigências da lei.’’

O falso se manifesta através de várias ações. Interessam, aqui, duas espécies, atraindo cada qual o respectivo crime. Se o agente confeccionar o falso, ou de qualquer modo concorrer para a feitura, fornecendo, por exemplo, a sua fotografia, o fato se ajusta ao disposto no art. 297, verbis: ‘‘Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro’’. Em sendo assim, o uso será apenas o referido exaurimento. O art. 304 pressupõe utilização de falso gerado por outrem, quando, então, não haverá incidência do comando do art. 29 do Código Penal — quem de qualquer modo concorrer para o crime incide nas penas a ele cominadas, na medida de sua culpabilidade.

O trabalho do penalista, fundamentalmente, é classificar a conduta. Trabalho aparentemente simples. Não conduzirá, entretanto, ao resultado certo apenas com interpretação gramatical. Reclama também investigação lógica sistemática.

Luiz Vicente Cernicchiaro
Ministro do Superior Tribunal de Justiça,
Professor titular da Universidade de Brasília e
Autor do livro ‘‘Questões Penais’’

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