Os sofismas que envolvem a Lei de Tortura, os Crimes Militares e Lei n. 10.259/2001

Victor Eduardo Rios Gonçalves

Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, sofisma é a “argumentação que aparenta verossimilhança ou veridicidade, mas que comete involuntariamente incorreções lógicas”.

Pois bem!

A recente Lei n. 10.259/2001, estabelece que, para o âmbito da Justiça Federal, considera-se infração de menor potencial ofensivo os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa, e, com isso, fez surgir forte entendimento no sentido de que o art. 61 da Lei n. 9.099/95 estaria derrogado em relação aos crimes, por afrontar o art. 5º, caput, da Constituição Federal, o qual proclama que todos são iguais perante a lei, não podendo haver distinção de qualquer natureza entre os brasileiros e os estrangeiros residentes no País.

Com efeito, é difícil não vislumbrar a inconstitucionalidade em dispositivo que permite a transação penal para funcionário público federal que cometa prevaricação ou abuso de autoridade, e não a admita para funcionário público estadual que cometa os mesmos delitos (porque possuem rito especial, ou, eventualmente porque a pena é superior a um ano), já que eles infringem mesmo tipo penal. Muito pior seria lembrar que o funcionário público estadual que, sozinho, cometesse abuso de autoridade, não teria direito aos benefícios da Lei n. 9.099/95, enquanto se o fizesse em concurso com um funcionário federal, com eles seria agraciado, porque estaria sendo processado na esfera federal, em razão das regras de prevalência de foro (Súmula n. 122 do STJ).

Há, entretanto, quem sustente não haver violação ao princípio da igualdade, comparando-se tal situação a julgados anteriores do Supremo Tribunal Federal, que declararam a constitucionalidade do art. 90-A, da Lei n. 9.099/95, que veda a aplicação dos dispositivos dessa lei na esfera militar, e do art. 1, § 7º, da Lei n. 9.455/97 (Lei de Tortura), que admite progressão de regime no crime de tortura.

Com relação aos crimes militares deve-se lembrar que a própria Constituição Federal prevê tratamento diferenciado aos crimes dessa natureza, incumbindo o julgamento à Justiça Militar. Além disso, prevê a legislação, por meio do Código Penal Militar, crimes especiais, com penas próprias. Ora, o funcionário público, estadual ou federal, que cometa prevaricação estará incurso, em qualquer hipótese, no art. 319 do CP – já que ambos cometem crimes afetos à Justiça Comum, enquanto o militar que o faça, estará diante de crime especial previsto CPM, que, aliás, possui pena diversa. Não possuem, pois, o mesmo tratamento na Constituição Federal e na legislação ordinária, de forma que a vedação do art. 90-A, da Lei n. 9.099/95, evidentemente não fere o princípio da igualdade, já que crimes diversos podem ter tratamentos distintos. Se a Justiça Militar tivesse de ter institutos semelhantes aos da legislação comum, não se poderia conceber crimes como insubordinação, deserção ou prisão disciplinar, o que não faria sentido nenhum.

Quanto ao fato de o crime de tortura admitir progressão de regime, e o Pretório Excelso não a ter estendido aos crimes hediondos, tráfico ilícito de entorpecentes ou terrorismo, considerando constitucional a distinção, deve-se lembrar que o próprio STF ressalvou que a Lei de Tortura é especial, pois cuida somente desse delito, não havendo razão para estendê-los a crimes diversos. Em suma, sendo delitos distintos, podem ter tratamento diverso. Não existe, assim, qualquer relação com a inconstitucionalidade, facilmente perceptível, na admissão da transação penal aos funcionários públicos federais e de sua vedação aos estaduais, já que, frise-se, cometem o mesmo crime.

Ademais, nunca se alegou, como se quer fazer acreditar, que a Lei de Tortura fere o princípio da igualdade, consagrado art. 5º, caput, da Constituição Federal, e que isso teria sido refutado pelo STF. Alegou-se, em verdade, que o art. 5º, XLIII, e a Lei n. 8.072/90, exigiriam tratamento equiparado aos crimes hediondos, tráfico, terrorismo e tortura, argumento que foi bem refutado pela Suprema Corte, uma vez que são infrações distintas e, assim sendo, podem ter regulamentação diversa. Não se pode, porém, admitir que o mesmo tipo penal tenha tratamento diverso porque cometido por (ou contra) funcionário público federal ou estadual, ou, ainda, porque cometido dentro de embarcação ou aeronave, mesmo porque são crimes julgados pela Justiça Comum.

Por essas razões é que nos parece que tais comparações são meros sofismas, porque utilizam premissas falsas para chegar a conclusões igualmente falsas, uma vez que o STF simplesmente reconheceu cabível o tratamento diverso a crimes distintos, enquanto o que se discute em relação à nova Lei n. 10.259/2001, é exatamente o tratamento diverso dado ao mesmo crime – em razão de ser ele julgado pela Justiça Federal ou Estadual (ambas comuns).

É claro, ainda, que soa injusto admitir a transação penal a crimes como, p. ex., o porte de arma simples, e que, por essa razão, busque-se razões para inviabilizá-la. Os argumentos, contudo, estão na própria Lei n. 9.099/95, que só admite o benefício se as circunstâncias do delito demonstrarem que a medida é suficiente para a sua repressão e prevenção (art. 76, § 2º, III), situação que só ocorre se a arma não tiver a numeração raspada, se não houver indícios de que será utilizada para a prática de outra infração penal, e se o autor da infração for primário.

Victor Eduardo Rios Gonçalves

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