O novo Código Civil e as relações jurídicas virtuais

I – Introdução

Como é notório, a cada dia a Internet está mais presente na vida de todos os cidadãos brasileiros, e hoje já pode ser considerada uma importante ferramenta não só de comunicação, mas também de negócios.

Esse positivo crescimento mobiliza novos mercados, gera novos empregos, e fomenta a circulação financeira, além de outros reflexos positivos, mas, ao mesmo tempo, gera cada vez mais discussões, dúvidas, incertezas, e diversos outros questionamentos jurídicos que envolvem as relações virtuais.

A grande maioria desses conflitos, alguns que já estão até sendo submetidos à apreciação do Poder Judiciário, são decorrentes de relações civis e comerciais realizadas através da grande rede de computadores.

Assim, com o advento do novo Código Civil, amplamente divulgado pela imprensa, e que vigora desde o dia 11 de janeiro de 2003, é importante ao operador do direito, e ao leigo em geral, verificar no que a nova lei implica às relações eletrônicas.

Criticado por muitos como sendo um código obsoleto e já ultrapassado, pelo fato de somente em 2002 ter sido aprovado o texto do projeto que datava de 1972, cabe salientar que, realmente, em muitos pontos pecou legislador, com disposições que preferimos denominar confusas e contraditórias, ao revés de ultrapassadas. No entanto, em muitos pontos é digno de aplausos o novo sistema legislativo civil.

No tocante à regulação das relações jurídicas via Internet, não trouxe a jovem lei dispositivos específicos. Porém, com uma minuciosa análise do texto do novo Código Civil, é possível identificar uma série de comandos legais que têm reflexo direto na resolução das lides mais freqüentes que hoje se encontram nos negócios eletrônicos.

Dentre essas questões corriqueiras, destacamos a responsabilidade dos administradores das empresas, a forma de interpretação da manifestação da vontade ao contratar via Internet, a polêmica prova eletrônica, a responsabilidade civil dos sujeitos que figuram nas relações virtuais (consumidor, fornecedor, hospedeiro de sites, spammers etc.), e a privacidade do usuário da grande rede, que serão analisadas no presente trabalho.

II – A responsabilidade dos administradores

Já prevista pela antiga Lei das Sociedades Anônimas, a responsabilidade dos administradores sofreu um reforço legal no texto do novo Código Civil.

No livro do Direito de Empresa, inexistente no revogado Código Civil, e introduzido pela nova lei civil, o legislador incluiu importante disposição, pela qual se exige, por força de lei, que o administrador da sociedade deverá ter, na administração de seus negócios, todo o zelo e diligência necessários, respondendo, inclusive, solidariamente à sociedade perante terceiros prejudicados por sua culpa no desempenho das funções de administrador.

Em uma análise superficial pode parecer que tal disposição não traz implicações à Internet. Porém, não é verdade. Uma análise profunda do comando legal acima comentado revela que, a partir de agora, os sócios das empresas, para se prevenirem de responsabilidades e reparações que podem atingir até mesmo seu patrimônio pessoal, têm o dever legal de exigir de diretores, gerentes ou CSOs (Chief of Security Officers – Chefes de Segurança) que “fechem” as vulnerabilidades nos sistemas eletrônicos, evitando, assim, repercutir qualquer tipo de dano a terceiros.

Da mesma forma, deverão os sócios ter o total empenho e diligência em identificar e processar os responsáveis por invasões, fraudes, e outros ilícitos digitais, sob pena de incorrerem em má gestão, e responderem com seu patrimônio pessoal perante aqueles terceiros lesados com tais eventos, que não foram devidamente apurados pela empresa, e que não tiveram seus responsáveis sujeitos ao devido processo judicial.

III – A manifestação da vontade

Questão bastante polêmica desde o advento da Internet, a manifestação da vontade dos contratantes eletrônicos sempre gerou dúvidas e discussões, que talvez não terminarão com o advento do novo Código, mas, com certeza, poderão ser reduzidas.

É certo que o revogado Código Civil já trazia a previsão de manifestação tácita da vontade para o aperfeiçoamento do contrato, que podia ser celebrado entre presentes ou ausentes, ocasião em que era perfeitamente válido.

No entanto, o novo Código Civil trouxe pequenas inovações que em muito contribuem para a validade da manifestação eletrônica da vontade.

Deflui da nova legislação que esta, ao dispor sobre os Fatos Jurídicos, exaltou os princípios da boa-fé, da finalidade social, e dos usos e costumes.

Essa inovação, por menor que possa parecer, é bastante aplicável à questão da manifestação da vontade, já que a utilização dos usos e costumes possibilita uma consistente demonstração de que o contrato eletrônico foi aceito pelas partes, que manifestaram sua vontade livre e consciente, ainda que por um simples “clicar” do mouse, eivado de boa-fé e para os fins determinados no contrato.

IV – A prova eletrônica

Embora ao longo do tempo a jurisprudência esteja cada vez mais se pacificando pela validade do documento eletrônico como prova judicial, tal questão ainda gera grandes discussões na doutrina.

O primeiro passo para a plena validade do documento eletrônico foi o advento da Medida Provisória . 2.200/01, que conferiu segurança à assinatura digital devidamente reconhecida pela ICP-Brasil (Infra-estrutura de Chaves Públicas – Brasil).

O segundo passo ocorreu com o novo Código Civil, que, ao dispor sobre a Prova, estabelece a validade de qualquer reprodução eletrônica de fatos como prova, colocando fim a qualquer discussão de validade ou não de tal conteúdo probatório.

V – Responsabilidade civil

A responsabilidade civil sofreu inúmeras alterações com o novo Diploma, mudando bastante a sistemática antiga, baseada na culpa extracontratual, ou aquiliana, gerando reflexos diretos naqueles que desenvolvem negócios virtuais, em todos os níveis (fornecedor, consumidor, hospedeiro, spammer etc.).

O novo Código Civil introduziu a responsabilidade objetiva, decorrente do risco do negócio, o que significa dizer que, para determinadas atividades nas quais se deve assumir os riscos implícitos a ela, o que pode aplicar-se a quase-totalidade das relações jurídicas que envolvem o meio virtual, haverá a responsabilidade independente de culpa, bastando o efeito dano à vítima para que lhe seja devida a indenização.

Assim, fornecedores de serviços e produtos através da Internet deverão ter especial atenção na elaboração de seus contratos, ainda que padrões e de adesão, visando elidir tal responsabilidade.

Da mesma forma, hospedeiros de conteúdo deverão, em caráter de urgência, adequar todos os contratos com seus usuários, visando à inserção de inúmeras cláusulas de reserva que se tornarão vitais à atividade, uma vez que, pela introdução da responsabilidade objetiva, qualquer lesado poderá pleitear a indenização diretamente ao provedor de hospedagem, sem se preocupar sequer em identificar o verdadeiro culpado pelo ato ilícito.

Quanto ao spammer, aquele que envia mensagens não solicitadas de conteúdo publicitário, às vezes até ofensivas à moral e aos bons costumes do destinatário, mais difícil se tornará sua atividade, pois a nova lei conceitua como ato ilícito o abuso de direito, ainda que para um fim econômico ou social determinado.

Assim, poderá o spammer ser não só responsabilizado pelos danos materiais e morais que vier a causar, mas também ser impedido de exercer aquela conduta, que excede os limites que a lei lhe confere, o que é uma grande inovação do Código de 2002, já que anteriormente pouco se podia fazer após o recebimento da mensagem não solicitada, quando o direito do destinatário ficava restrito à indenização. Inclusive, tais modificações deverão intensificar a atuação do Ministério Público no combate aos spammers.

Também é importante ressaltar que o novo Código Civil introduziu o instituto do enriquecimento sem causa, que recebe um capítulo específico na nova lei, e é uma válida inovação, principalmente para tutelar direitos relacionados à proteção de idéias, sistemas, métodos, projetos, planos, esquemas etc. que beiram o campo do direito autoral e da propriedade industrial, mas, em certos casos, fogem a tal proteção, e, a partir de agora, tornaram-se condutas ilícitas e repudiadas pela nova lei civil.

Por fim, cabe salientar as implicações do novo Código ao consumidor. A princípio, como se pode auferir dos parágrafos acima, o consumidor passa a ter, a partir de agora, argumentos e direitos ainda mais eficazes contra aqueles que os lesem através de qualquer conduta ilícita, sendo certo que o novo Código Civil e o também recente Código de Defesa do Consumidor, tornam-se ferramentas bastante eficazes a tutelar os direitos e deveres dos consumidores virtuais.

VI – Privacidade

O novo Código Civil também trata da privacidade, ainda que de forma genérica.

Ao dispor sobre os Direitos da Personalidade, a legislação ampliou o poder do magistrado, que poderá, de acordo com sua convicção, adotar providências necessárias para a proteção da intimidade e privacidade das pessoas, o que inclui a imposição de multas e outras restrições adequadas ao ambiente eletrônico.

VII – Conclusão

Concluindo o presente trabalho, podemos afirmar que, embora o legislador não se tenha preocupado em tratar especificamente das implicações jurídicas dos negócios virtuais, é nítido que pequenas regras introduzidas pelo novo Código Civil já poderão surtir efeitos no mundo virtual, sendo positiva a entrada em vigor da nova legislação civil brasileira, embora fosse preferencial que a nova legislação já apresentasse disposições específicas e adequadas ao ambiente digital, reduzindo a discussão dos mais de cento e cinqüenta projetos de lei sobre o tema que atualmente se encontram em tramitação no Congresso Nacional, sendo salutar, talvez, incentivar a discussão para incorporar ao Código Civil vigente alguns pontos de tais proposições legislativas.

* Marcos Gomes da Silva Bruno
Especialista em Direito Eletrônico e Professor convidado da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado e da PUCSP. Advogado.

* Renato M. S. Opice Blum
Advogado e economista. Professor coordenador de pós-graduação em Direito Eletrônico; Professor da Flórida Christian University, Fundação Getúlio Vargas, PUC e Centro Técnico Aeroespacial. Pós-graduado pela PUC/SP. Presidente do Conselho de Comércio Eletrônico da Federação do Comércio do Estado de São Paulo.

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