O BRASIL DIANTE DO PROCESSO NEGOCIADOR DA ALCA:

I. NOTAS INTRODUTÓRIAS
As constante e recorrentes transformações na dialética local-global mostram que os paradigmas do Estado e do Direito contemporâneos têm sofrido drásticas modificações sistêmicas, que nos sugere uma reavaliação crítica quanto aos processos de formulação e execução da política externa brasileira com relação à Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Antes, no entanto, cumpre salientar algumas caracterísitcas historicistas e seus condicionantes politológicos do atual cenário internacional, notadamente de prepoderância unimultipolar (Huntington) com eixo norteador hegemônico norte-americano, embora alguns teóricos considerem a existência de uma poliarquia no cenário externo hodierno. Consideremos, pois, a unimultipolaridade huntingtoniana como referência.
O cenário internacional do pós-guerra (1945-1989), ou ainda chamado de Sistema de Ialta em alusão à histórica Conferência de Ialta em 1945, fora esterilizado por uma bipolaridade de confronto entre o Leste e o Oeste, cujas matrizes doutrinário-ideológicas se firmaram entre a democracia liberal e o comunismo autárquico, respectivamente. Não somente se encontrava em debate acirrado, sob a constante ameaça nuclear em escala global, tais matrizes, mas também o próprio papel da sociedade na construção do Estado. Concernente ao paradigma econômico, o liberalismo, o capitalismo democrático e sua destruição criadora (Joseph Schumpeter) e a economia de mercado, e, por outro, o planejamento centralizado socialista do Estado Soviético, constituiu foco de tensões durante a Guerra Fria e seus vários desdobramentos ao longo de 45 anos. Era o fim da lógica de soma zero do sistema internacional e seus atrelamentos de divisão mundial.
Com o esfacelamento do Império Soviético em dezembro de 1991, inicia-se, desta feita, o cenário externo de viés entrópico polaridades indefinidas, assim definidas por Celso Lafer ou ainda definido pelo internacionalista Samuel Huntington, como já dissemos, por unimultipolaridade. Outros epicentros de poder, como a Europa pós-Maastricht (1991), e pós-Nice (2001), além da própria República Popular da China e da Índia – maior democracia do mundo – emergiram como atores precípuos deste sistema. O pós-guerra fria, ao mesmo tempo que acelerou o processo de globalização, conseqüenciando a formação do Mercosul, com seus crescentes fluxos de comércio, de informação e de intercâmbio cultural, eclodiu, outrossim, faxinas étnicas e guerras civis.
Este ainda é tempo de perplexidades e antagonismos. Ao passo que Estados se unificam, dando nova roupagem ao conceito de soberania, até pouco tempo um baluarte intocável do Estado desde a Paz de Westfáfia em 1648, outros desaparecem totalmente ou tornam-se independentes, como é o caso do Uzbequistão em 1991. Há, outrossim, uma gritante disparidade sócio-econômica nos três-quartos do planeta que vivenciam as vicissitudes do subdesenvolvimento. A temática de discrepância sócio-econômica e também de assimetria de representatividade política das regiões de industrialização tardia no entorno do Mercosul (diplomacia econômica Brasil com a ALCA) é logo lembrada no que tange a amplitude de “perplexidades e antagonismos”.
II. ACERCA DO PROCESSO GLOBALIZANTE
O entorno político-filosófico acerca dos processos globais e regionais hodiernos, resultantes da intensa interdependência transnacional, ainda busca suas próprias estruturas abalizantes, particularmente no que tange à soberania nacional. O lato debate acerca da modernidade, como síntese histórica primaz das correções das injustiças sociais, remonta-nos ao dizer de Jürgen Habermas quando afirma que a modernidade é um projeto inacabado. De fato, faz-se necessário equacionamento crítico da soberania nacional (summa potestas), diante das vertiginosas mudanças sistêmicas. Marx defina com rigor e propriedade tal processo qualificando-o como alienação ontológica, que ainda repercute, de forma significativa, os âmbitos atuais de indentificação cultural do sujeito cognoscente diante do desterritorializante processo de globalização.
Concepções teóricas acerca do Estado integralizado em âmbito sub-regional dos vários blocos deverão tomar forma na conjuntura mundial atual. A proposta norte-americana a partir de Miami-94 para a ALCA a partir de 2005 é concebida como de primeiro nível integracional (Tipologia de Bela Balassa, de acordo com Mozart Foschette) e, inegavelmente, distorce grande parte dos paradigmas conceituais e definidores do Estado e Direito. Ao que se parece, não tem havido sistemática evolução paradigmática e conceitual do Estado diante do franco processo de globalização que, podemos sinteticamente, definir em quatro grandes matrizes: globalização produtiva, especulativo-financeira, assimétrica e solidária.
Para tanto, elaboramos quadro (Tabela 1) de correlação na próxima página para melhor visualizarmos a problemática de falta de atualização conceitual e paradigmática do Estado nas Relações Internacionais conjunturalmente – que, inegavelmente, constitui óbice em uma mais ampla, significativa e crítica avaliação do Estado e seu papel no cenário externo de hoje. Deve-se, à guisa de explanação da construção desta tabela, ater não ao grau de valoração da globalização (meramente atribuindo o binômio positivo/benéfico – negativo/maléfico), mas sim às suas conseqüências residuais na estabilidade do Estado e de sua política externa. Esse critério elaborado pelas nossas observações traz nova luz à necessidade de atualização da teoria do Estado e de seu poder no presente momento histórico de unimultipolaridade. A tabela foi arquitetada a partir da nossa observação da existência de múltiplos conceitos (muitos dos quais, acríticos e distorcidos) atribuídos ao amplo escopo do processo globalizante em vigor.
Tabela 1
Correlação entre globalização, grau de volatilidade e estabilidade do Estado

III. POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA: EIXOS DIRETIVOS, FORMULAÇÃO E EXECUÇÃO

A leitura do texto constitucional de 5 de outubro em seu Artigo 4 serve como referência dos padrões indentificadores das relações internacionais do Brasil. Prima facie, para se aprofundar no que seriam os pontos principais da política externa brasileir, faz-se necessário adentrar nos focos do interesse nacional. Isto é, a síntese da política externa de qualquer país se dá pelo substrato de de interesses emanados pelas manietações dos variados setores da sociedade civil e do Estado.
Como país de vocação pacífica, o Brasil dá ênfase no multilateralismo, cujo eixo normativo se encontra na Organização das Nações e demais agências especializadas e órgãos reguladores. Em seu texto constitucional de 1988, o Brasil defende a causa da paz e a defesa da integridade territorial e a unidade nacional em prol do progresso de seu povo. O parágrafo único externa o ímpeto de defesa do Brasil do afã de criação de uma comunidade latino-americana de nações. Antes da ALCA, o Brasil já vivenciara positiva experiência integrativa o Cone Sul com a assinatura e posterior ratificação do Tratado de Assunção em 1991, entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. Consolidado ainda mais pelos Protocolos de Brasília, de dezembro de 1991, e de Ouro Preto de dezembro de 1994, o Mercosul tem fornecido as bases para uma integração salutar e em franco processo de crescimento e hoje constitu prioridade na agenda externa nacional. A Declaração de Ushuai, Argentina, em dezembro de 1998, além de corroborar o ímpeto democrático da integração, consolida a necessidade de integração ética – elemento central em qualquer formação de bloco geoeconômico. No cerne dos estudos acerca do processo de formulação e execução de política externa sobre integração geoeconômica, devemos ter em mente o conceito entrópico do poder, em sentido amplo e pluridimensional, como elemento definidor da ordem normatizante e consubstanciadora da diplomacia, como elo os interesses da nação no plano exterior. No caso da ALCA, uma iniciativa norte-americana externada na I Cúpula das Américas em Miami, em dezembro de 1994, a posição político-diplomática brasileira, como asseverada pelo Embaixado Graça Lima, é que:
“Interessa-nos negociar um programa de liberalização comercial em âmbito continental na medida em que sejam contemplados os interesses essenciais dos 34 países do hemisfério, se alcance um equilíbrio de ganhos e concessões e contribua para promover a prosperidade de nossos povos.”
Ademais, é importante salientar que há, notadamente, certo desencaixe entre a práxis diplomática e a voz ecoada dos setores empresariais brasileiros, sobretudo de pequeno e médio portes, com relação à ALCA. Percebe-se que há prática desleal de negociação e de prática comercial entre os Estados Unidos e o restante dos 34 países do hemisfério – excluindo Cuba por questões históricas bilaterais entre os supra-citados países que remonta à crise dos mísseis de Cuba em outubro de 1962.
IV. SÍNTESE CONCLUSIVA
As principais decisões adotadas desde a Cúpula de Miami têm correspondido a aos imperativos defendidos pelo Brasil nas diversas instâncias desde Miami (1994), passando por Denver (1995) e demais reuniões decorrentes, até culminar, mais recentemente, em Québec em abril de 2001. Na Reunião Ministerial de Belo Horizonte (maio de 1997), presidida pelo Brasil, adotou-se um conjunto de princípios para as futuras negociações que são consideradas essenciais para o processo liberalizante hemisférico: processo decisório por consenso; “single undertaking” ou indissolubilidade do pacote negociador; coexistência da ALCA com acordos bilaterais e sub-regionais de integração e de livre comércio mais amplos ou profundos; e compatibilidade da ALCA com os acordos da Organização Mundial de Comércio (OMC). Esses princípios permitem que as futuras negociações sobre uma ALCA se realizem de forma equilibrada, gradual, democrática e congruente com as normativas da OMC, como querem os integrantes do MERCOSUL. A estrutura político-decisória pactuada em São José foi a seguinte, que teve amplo apoio dos países da América Latina:
· Reunião de Ministros, responsável pela supervisão e direção superiores das negociações, a convocar-se pelo menos a cada 18 meses;
· Comitê de Negociações Comerciais, integrado pelos Vice-Ministros Responsáveis por Comércio, encarregado da orientação permanente das negociações, a reunir-se pelo menos semestralmente;
· Nove Grupos de Negociação, sobre os seguintes temas: acesso a mercados; investimentos; serviços; compras governamentais; solução de controvérsias; agricultura; direitos de propriedade intelectual; subsídios, anti-dumping e direitos compensatórios; e políticas de concorrência. Cada grupo terá um presidente e um vice-presidente para o primeiro período de funcionamento, de 18 meses, conforme o quadro seguinte:
Grupo de Negociação Presidência Vice-Presidência
Acesso a Mercados Colômbia Bolívia
Investimentos Costa Rica República Dominicana
Serviços Nicarágua Barbados
Compras Governamentais Estados Unidos Honduras
Solução de Controvérsias Chile Uruguai/Paraguai
Agricultura Argentina El Salvador
Direitos de Propriedade Intelectual Venezuela Equador
Subsídios, Anti-Dumping e Medidas Compensatórias Brasil Chile
Políticas de Concorrência Peru Trinidad e Tobago
A presidência do processo da ALCA será rotativa, cabendo ao mesmo país sediar a próxima reunião ministerial e presidir o Comitê de Negociações Comerciais, como segue: Canadá (maio de 1998 a outubro de 1999); Argentina (novembro de 1999 a abril de 2001); Equador (maio de 2001 a outubro de 2002); e co-presidência entre Brasil e Estados Unidos (de novembro de 2002 a dezembro de 2004, ou até a conclusão das negociações).
A deslegitimação dos paradigmas conceituais do Estado, como centro da dinâmica internacional, e particularmente como elemento inerente ao processo integrativo da ALCA, causa muitos uma série de problemáticas estruturais nos vários da sociedade civil organizada sobre a própria vitalidade e padrão triunfalista do Capitalismo neoliberal pós-bipolaridade – haja vista a relativamente frustrada tese de Fukuyama de “fim da história”. Assim, podemos vislumbrar os fatores causais para a crise sistêmica da economia global ou da “nova economia”, tornando-a parte integrante da corrosão deslegitimante do Estado e do “Capitalismo senil” (Jorge Beinstein) – o que vem a reforçar nossa tese central de maiores e mais aprofundados estudos sobre a temática em apreço. Não se pode conceber que uma obra tão grande engenharia econômico-diplomática possa ser alvo de apenas reducionismos ou de conceitos parcializados baseados meramente em ideologismos. A ALCA para de facto trazer ganhos sociais e econômicas para significativa parcela da população nacional precisa ser investigada sob o ponto de vista do humanismo inclusivo. Para tanto, faz-se necessário relembrar as palavras do poeta e diplomata pernambucano João Cabral de Melo Neto em seu poema Morte e Vida Severina: “Podeis aprender que a vida é sempre a melhor medida; mais que a medida do homem não é a morte, mas a vida”. A ALCA é um desses complexos entornos que demandam significativa cooperação e convergência de diálogo entre a sociedade civil, a academia, o empresariado e, sem dúvida, o Estado – negociado primaz dos destinos brasileiros na ALCA, e portanto, imprescindível é o amplo debato que nos propomos a iniciar por meio do presente artigo.

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Autor: Thales Castro Fonte: Infojus

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