Medicamentos – Quem tem obrigação de fornecê-los à população ?

Foi com imensa satisfação que recebi – e prontamente aceitei – o convite do querido amigo Carlos Alberto Carpi, Secretário Municipal de Saúde e presidente do COSEMS, para escrever nesta edição do Manual do Gestor, de modo a sucintamente e da forma mais clara possível expor a visão do Ministério Público com relação à questão da distribuição de medicamentos à população.

Sei que o tema tem figurado na ordem do dia, em vista da reprodução, quase diária, de ações civis visando compelir, principalmente os Municípios, a fornecerem remédios a pessoas carentes, muitas das vezes medicamentos que, segundo a repartição de obrigações, acordada por portaria, entre União, Estado e Município, teoricamente caberia àqueles, não a este.

Em muitas dessas ações, também sei, nem sempre os réus, invariavelmente os Secretários Municipais de Saúde, são tratados com a devida educação, às vezes se criando situações constrangedoras, que geram compreensível descontentamento.

Tento, pois, me desincumbir da missão que me foi confiada, nesta modesta exposição: como explicar o fenômeno que tem sido denominado “municipalização da saúde”?

Em primeiro lugar, temos que recorrer à fonte de todas as Leis, nossa Constituição Federal, que, sem seu art. 196, inserido no capítulo da seguridade social, seção dedicada à saúde, estabelece, genericamente, que:

Art. 196 – a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. [1]

[1] BRASIL, Constituição Federal, art. 196 (grifos nossos).

A saúde, nos termos do art. 6º da mesma Constituição, é um direito social:

Art. 6º – São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.2

Sendo assim, faz parte do rol dos direitos fundamentais, que são aqueles inerentes ao chamado princípio da dignidade da pessoa humana que, trocando em miúdos, é um princípio que tem como objetivo garantir uma gama mínima de direitos sem os quais não se consegue levar uma vida digna, à altura de um ser humano. Sempre bom lembrar que nossa Constituição, promulgada em 1988, rompeu com uma tradição que era mantida nas Constituições anteriores, e cuidou dos direitos fundamentais no seu início, antes mesmo de cuidar da organização do Estado e do Governo, numa clara demonstração de que se tratava de uma Constituição garantista, preocupada antes com o indivíduo do que com o Estado, resgatando, assim, idéias liberais que remontam à Revolução Francesa e que estavam adormecidas durante o nefasto período ditatorial por nós vivido. Por isto é chamada de “Constituição Cidadã”, já que promoveu o resgate da democracia em nosso país[1].

Pois bem. Os dispositivos constitucionais acima citados não especificam e nem dão margem a especificar, nem por lei infraconstitucional, muito menos por portarias ou outros atos normativos de menor hierarquia, que ente federativo – União, Estado ou Município – será obrigado a fornecer este ou aquele remédio. Há, pois, uma responsabilidade solidária entre União, Estados e Municípios no fornecimento de medicamentos à população. Quando muito, as repartições de atribuições – farmácia básica, medicamentos de alto custo, remédios de uso continuado etc (como quiserem chamar) – só surtem efeitos perante os entes federativos, para se ressarcirem mutuamente, quando um for chamado a suprir a omissão do outro.

Perante a população, a responsabilidade é solidária – os três são obrigados a fornecerem todos os tipos de medicamento, como forma de garantirem o “acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção4, proteção e recuperação”5. Este, aliás, o dispositivo que obriga o Estado – genericamente falando – a fornecer medicamentos à população, eis que lhe cabe garantir o acesso universal e igualitário às ações necessárias à promoção, proteção e recuperação da saúde, onde se incluem os remédios e, indo mais longe ainda, exames, próteses, órteses, curativos, intervenções cirúrgicas, inclusive o transporte necessário até se chegar ao atendimento médico.

Como dito, se a obrigação é solidária, qualquer dos três entes federativos podem ser demandados, tanto pelo paciente – numa tutela individual, geralmente patrocinada pela Defensoria Pública – como pelo Ministério Público – através dos órgãos de tutela coletiva.

Primeiro terão que cumprir com a obrigação solidária estabelecida pela Constituição – que está acima de qualquer lei, portaria ou qualquer outro ato normativo – e fornecerem o medicamento. Depois, se for o caso, podem invocar entre si as portarias que repartem suas atribuições, de modo a se indenizarem reciprocamente, caso um seja demandado em virtude da omissão do outro.

[3] E democracia só se constrói com uma população forte e saudável, em todos os sentidos!

[4] Da saúde, naturalmente.

[5] BRASIL, Constituição Federal, art. 196.

O que não pode é o cidadão, que precisa do medicamento ao tempo e à hora necessários, ficar à espera da intrincada burocracia que muitas vezes emperra o funcionamento da máquina estatal. Até porque, se ficar esperando, pode ser tarde demais[6].

Assim têm reiteradamente decidido nossos Tribunais, à unanimidade. Vejamos alguns arestos, retirados da Internet, nos sites desses Tribunais, em pesquisa que não consumiu mais do que uns poucos minutos:

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. QUARTA CÂMARA CÍVEL. RELATOR: DESEMBARGADOR MÁRIO DOS SANTOS PAULO. AGRAVO DE INSTRUMENTO nº 2003.002.17919, de 28/11/2003: 1. Fornecimento de medicamentos a pessoa carente de recursos; 2. remédios necessários à sobrevivência do necessitado, em razão de transplante renal; 3. Solidariedade entre Estado e Município; 4. Supremacia da vida humana, assegurada pelos artigos 196, 197 e 198 da Constituição Federal; 5. Atenuação do princípio da adstrição, pela regra excepcional do art. 461 do C.P.C.; 6. Recursos improvidos.[1]

Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. SÉTIMA CÂMARA CÍVEL. RELATORA: DESEMBARGADORA

[6] Tenho certeza de que os leitores, em sua maioria profissionais de saúde, sabem muito bem disto, muito melhor, é evidente, do que este humilde articulista, leigo que é no assunto (muito embora me considere um leigo bem – e domesticamente – informado).

[7] Aresto extraído do site www.tj.rj.gov.br, acessado em 10 de fevereiro de 2004, às 23:00h (grifamos).

SUELY LOPES MAGALHÃES. APELAÇÃO CÍVEL nº 2003.001.27939, de 10/12/2003: Mandado de segurança – saúde pública. Fornecimento gratuito de medicamento a portador de insuficiência renal crônica – incidência dos arts. 196 e 198 da CF – segurança concedida. É dever comum das entidades federativas cuidar da saúde e da assistência pública, à luz do disposto nos arts. 196 e 198. Constituição Federal. O Estado desempenha papel relevante nessa tarefa, porquanto a Constituição, em seu artigo 23, II atribuiu-lhe competência comum para, juntamente com a União, o Distrito Federal e os Municípios, cuidar da saúde pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência. Sendo assim, não pode recusar o fornecimento dos remédios necessários à sobrevivência dos portadores de insuficiência renal crônica, economicamente hipossuficientes. Concessão da segurança.[8]

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. OITAVA CÂMARA DE DIREITO PÚBLICO. RELATOR: DESEMBARGADOR FELIPE FERREIRA. AGRAVO DE INSTRUMENTO nº 29.837-5, de 19/03/97: Ação cautelar – liminar contra o Estado – fornecimento de “coquetel” de medicamentos para tratamento da AIDS – admissibilidade – estando presentes as condições especiais do processo cautelar, do fumus boni iuris e do periculum in mora, posto que o direito à vida é o maior deles e que a droga é de comprovada eficácia, porém custosa e foro das possibilidades econômicas dos enfermos, é dever do Estado custeá-la – Inteligência do artigo 196 da Constituição da República – liminar mantida – recurso não provido.[9]

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. PRIMEIRA TURMA. RELATOR: MINISTRO JOSÉ DELGADO.
RECURSO ESPECIAL Nº 2003/0009776-3/PR: 1. Inexiste ofensa ao art. 535, II, do CPC,
quando as questões levadas ao conhecimento do Órgão Julgador foram por ele apreciadas; 2.
Recurso no qual se discute a legitimidade passiva da União para figurar em feito cuja pretensão
é o fornecimento de medicamentos imprescindíveis à manutenção de pessoa carente, portadora de
atrofia cerebral gravíssima (ausência de atividade cerebral, coordenação motora e fala);
3. A Carta Magna de 1988 erige a saúde como um direito de todos e dever do Estado
(art. 196). Daí, a seguinte conclusão: é obrigação do Estado, no sentido genérico (União,
Estados, Distrito Federal e Municípios), assegurar às pessoas desprovidas de recursos financeiros
o acesso à medicação necessária para a cura de suas mazelas, em especial, as mais graves; 4.
Sendo o SUS composto pela União, Estados e Municípios, impõe-se a solidariedade dos três entes
federativos no pólo passivo da demanda; 5. Recurso especial desprovido.[10]

[8] Aresto extraído do site www.stj.rj.gov.br, acessado em 10 de fevereiro de 2004, às 23:20h (grifamos).

[9] Aresto extraído do site www.tj.rj.gov.br, acessado em 10 de fevereiro de 2004, às 23:00h (grifamos).

[2] Aresto extraído do site www.tj.sp.gov.br, acessado em 10 de fevereiro de 2004, às 23:15h (grifamos).

[3] Aresto extraído do site www.stj.rj.gov.br, acessado em 10 de fevereiro de 2004, às 23:20h (grifamos).

Como se pode perceber, quanto mais Entes Federativos – União, Estados e Municípios – recorrem contra as decisões tomadas em 1ª instância, em ações civis públicas

ou individuais, cautelares, ordinárias ou mandados de segurança, mais os Tribunais, inclusive os Superiores, firmam sua Jurisprudência no sentido de declarar a obrigação solidária dos mesmos no que tange ao fornecimento de medicamentos à população que necessita, confirmando os argumentos defendidos neste ensaio.

Um adendo merece ser considerado, em segundo lugar, e diz respeito às pessoas maiores de 60 anos.

É que o Estatuto do Idoso, aprovado recentemente – Lei nº 10.741/03 – dedicou alguns dispositivos a garantir, expressamente, o direito dos idosos[1] ao fornecimento de medicamentos por parte do Estado. Mais uma vez a expressão foi usada genericamente, de modo a confirmar a obrigação solidária já estabelecida pela Constituição Federal, por parte de União, Estado e Municípios:

[11] Todos os que alcançarem o privilégio de chegar aos 60 (sessenta) anos de idade, consoante estabelece o art. 1º do referido Estatuto.

Art. 9º – É obrigação do Estado, garantir à pessoa idosa a proteção à vida e à saúde, mediante efetivação de políticas sociais públicas que permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade.

Art. 15 – É assegurada a atenção integral à saúde do idoso, por intermédio do Sistema Único de Saúde – SUS, garantindo-lhe o acesso universal e igualitário, em conjunto articulado e contínuo das ações e serviços, para a prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde, incluindo a atenção especial às doenças que afetam preferencialmente os idosos.

§ 2o Incumbe ao Poder Público fornecer aos idosos, gratuitamente, medicamentos, especialmente os de uso continuado, assim como próteses, órteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação.[12]

Para a defesa dos direitos dos idosos estabelecidos no Estatuto, foi legitimado, dentre outros órgãos, o Ministério Público, inclusive para a tutela dos direitos individuais desses idosos, tema que, decerto, causará polêmica no meio jurídico[13]:

Art. 74. Compete ao Ministério Público:

I – instaurar o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos direitos e interesses difusos ou coletivos, individuais indisponíveis e individuais homogêneos do idoso;

VII – zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados ao idoso, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis;[14]

[1] BRASIL, Lei nº 10.741/03 (Estatuto do Idoso). Os grifos são nossos..

[1] Não nos cabe fazer aqui o aprofundamento de tal polêmica, o que fugiria ao propósito do presente ensaio.

[1] BRASIL, Lei nº 10.741/03 (Estatuto do Idoso).

Assim, cada vez mais se consagra o direito à saúde e, em conseqüência disto, o correlato direito de acesso aos medicamentos indispensáveis à proteção e manutenção da saúde, por parte de todos, em especial das pessoas necessitadas e dos idosos.

E fica cada vez mais consolidado, tanto na doutrina, como na jurisprudência, que União, Estados e Municípios são devedores solidários deste direito, podendo ser demandados juntos ou isoladamente, a critério do autor da ação, de nada valendo, para a Justiça frente ao cidadão que dela se socorre, os atos normativos, tais como portarias e resoluções, que pretendem repartir entre esses Entes Federativos as atribuições por tipos de medicamentos. Quando muito, como já dito, servirão tais atos para, em posterior ação regressiva, garantir o ressarcimento do Ente que foi chamado a suprir a omissão do outro.

Aliás, muito fácil seria se criar, administrativamente, um banco de compensação e ressarcimento mútuo entre os Entes Federativos toda a vez que um fosse condenado a fornecer medicamento que, em princípio, pela divisão acordada entre eles, seja atribuição de outro. O Ente entregaria imediatamente o medicamento ao paciente necessitado e, depois, administrativamente, com pouquíssima burocracia, seria ressarcido pelo pactuado devedor.

Não quero, com isto, justificar alguns excessos que porventura ocorram no dia-a-dia forense, capazes de gerar algumas situações constrangedoras. Como já tive a oportunidade de me expressar em palestra proferida por ocasião de uma reunião do COSEMS, o nível de educação e a polidez da linguagem variam de acordo com cada operador do Direito, sendo certo que todos deveriam, ao mesmo tempo em que cumprem intransigentemente suas obrigações frente a Constituição e as Leis, guardar o devido respeito que os representantes do Entes Federativos merecem.

Todavia, por outro lado, não se consegue entender como, depois de tantos anos de vigência da atual Constituição, ainda não se tenham conseguido praticar políticas públicas capazes de proporcionar ao cidadão uma saúde digna, à altura do que todo o brasileiro merece.

Recursos para isto, perdoem-me os Gestores, não faltam. À cada novo escândalo que surge se tem a oportunidade de contar o quanto este país é rico. Até imposto se criou no Brasil, provisório que virou permanente, com a desculpa de melhorar a saúde da população.

Como se vê, tudo é uma questão de prioridade e de vontade política.

Outra vez mais agradeço a atenção que me foi dispensada, cumprimentando cordialmente o presidente do COSEMS e colocando-me à disposição de todos para qualquer outro esclarecimento e eventual ajuda, se necessário.

MARCELO LESSA BASTOS
Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro
Titular da 2a Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva
do Núcleo Campos
mlbastos@fdc.br

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