Entraves constitucionais à recuperação econômica

Ives Gandra da Silva Martins

Ernane Galvêas, em lúcida entrevista, para o Jornal do Comércio no Rio, em 17 de setembro, denominou de “ilusionismo” as comemorações do Governo por estar obtendo, graças a uma política tributária confiscatória e irracional, um “superávit” primário de 3%, quando o “déficit” nominal é de 6% e os gastos públicos subirão de 215 bilhões para 252,6 bilhões de dólares (17,3%), apesar da redução das previsões sobre a elevação do PIB (de 4% para 2,2%) e da perspectiva de as despesas subirem para 279,2 bilhões, em 2002 (+10,5%).

Por outro lado, Gilberto Amaral, em estudo recente, mostrou, a partir de dados da Receita Federal, que o Brasil representa a 7ª maior carga tributária do planeta, devendo pular de 33% para 35% no fim do ano, assumindo o 6º lugar, nada obstante o sofrível nível de prestação de serviços públicos, muitas vezes equivalentes àquele dos países africanos ou asiáticos mais pobres.

Galvêas mostra que esta carga subiu de 20% do PIB, na década de 70, para 25% em 1994 e chegou a 33% atualmente, com aumento, neste ano recessivo, de 15,8% (273,8 bilhões) contra uma previsão de 2,2% de aumento do PIB e de 12,6 para 2002 (aumento de 12,6%), quando se prevê recessão mundial acentuada.

Neste quadro, o jogo de “Poliana” que o Governo faz, infelizmente, não convence o mercado e a sociedade, mas justifica a nova investida arrecadatória, de todas as entidades federativas, contra o povo, com motivação adicional, ou seja, de que não conseguem fazer a lição de casa, baixando as despesas públicas!

E, neste ponto, infelizmente os Tribunais têm ofertado argumentos de natureza jurídica, declarando que todos os servidores públicos –cuja remuneração consome 60% dos orçamentos (50%, na União)– têm assegurado direitos contra a sociedade, que deve pagar cada vez mais tributos para sustentá-los, arcando, inclusive, com os privilégios da inatividade.

À evidência, há direitos adquiridos dos servidores públicos, mas não a regime jurídico que prejudique a sociedade que os sustenta.

O entendimento sem mitigações da existência de direitos absolutos e sagrados, mereceria um outro tipo de reflexão, que procedi nos Comentários à Constituição Brasileira, elaborados com Celso Bastos, em 15 volumes, pela Editora Saraiva.

A leitura é a seguinte: é a sociedade que tem direitos adquiridos contra os servidores públicos, que devem serví-la. Estes não têm direitos adquiridos contra a sociedade, sempre que o exercício destes direitos afetem direitos fundamentais do cidadão e do povo em geral, tornando-os meros produtores de tributos, semelhantes aos escravos da gleba, na Idade Média.

Tenho para mim que a única interpretação possível é que quem deve servir à sociedade não tem direito adquirido, se isto implicar prejuízo à sociedade. As pessoas que, por vocação –e não por outros objetivos menos nobres– procuram o serviço público, devem ter consciência de que sua opção de vida não pode representar um “sanguessuguismo” das forças da nação, para benefício próprio.

Por esta leitura –que, aliás, em grande parte dos países civilizados, está no bojo da prestação de serviços públicos–, nos momentos de crise, em que toda a sociedade é abalada, o sacrifício inicial deve ser daqueles que estão para servir e não ser servidos, não se justificando jamais o escandaloso “déficit” anual de 45 bilhões de reais da previdência para fazer face aos proventos de 2.500.000 inativos do Estado, contra os 10 bilhões (4 vezes e meia menor) para suportar um número 9 vezes maior de inativos do segmento privado.

Esta vertente de raciocínio, voltada para a sociedade, é que representa uma interpretação “conforme o espírito da Constituição”, que, por ser uma “Constituição Cidadã”, há de proteger a sociedade contra os absurdos privilégios que se auto-outorgam aqueles que a servem, não se podendo falar em direito adquirido de servidores públicos, sempre que o sacrifício imposto pelo seu exercício atingir as raias do confisco de toda a nação.

SP., 24 de Setembro de 2001.

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS é Professor Emérito das Universidades Mackenzie, Paulista e Escola de Comando e Estado Maior do Exército, Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e do Centro de Extensão Universitária – CEU.

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