EC 45 reconheceu vocação natural da Justiça do Trabalho

por Jorge Luiz Souto Maior

“Que não é o que não pode ser que

Não é o que não pode

Ser que não é

O que não pode ser que não

É o que não

Pode ser

Que não

É”

(O que — Titãs)

A ampliação da competência da Justiça do Trabalho, ditada pela EC 45 de 2004, no que diz respeito à expressão “relação de trabalho”, tem suscitado muitas dúvidas e, por conseqüência, muitos debates. Das manifestações até aqui expostas podem ser divididas as posições adotadas em quatro correntes.

Para a primeira corrente, tudo que envolva trabalho, independe da natureza das pessoas envolvidas (natural ou jurídica) ou da forma da prestação do serviço, está, agora, sob a competência da Justiça do Trabalho.

A segunda corrente vai na mesma linha, apenas excluindo a tutela para os prestadores de serviços pessoas jurídicas. Admite, portanto, o processamento na Justiça de Trabalho de conflitos envolvendo relação de consumo, mesmo sem o critério da hipossuficiência do prestador ou da continuidade na relação.

A terceira, mais restritiva, além de exigir a pessoalidade na prestação de serviço, ainda estabelece como pressuposto da competência da Justiça do Trabalho, que o prestador de serviço esteja sob dependência econômica do tomador dos seus serviços ou que haja, pelo menos, uma continuidade nesta prestação.

A quarta corrente recusa à expressão “relação de trabalho”, trazida no inciso I qualquer caráter inovador com relação ao que já constava do mesmo artigo 114 antes da edição da EC 45, ou seja, que continuariam na competência da Justiça do Trabalho apenas os conflitos decorrentes da relação de emprego.

Posicionei-me, inicialmente, nos moldes da terceira corrente, também chamada de restritiva, mas queria neste texto, publicamente, rever minha posição. Considerava que a melhor interpretação que se poderia dar à expressão “relação de trabalho”, para fins de determinar a competência da Justiça do Trabalho, seria uma interpretação restritiva, para atender a sua característica de ser uma justiça especializada, voltada a um conflito com peculiaridades próprias.

Entretanto, lendo ou ouvindo as manifestações da primeira e da segunda correntes pude perceber que aqueles que, como eu, se recusavam a dar um sentido amplo à expressão passaram a ser considerados conservadores ou “reacionários”(1) e que estariam negando o princípio da dignidade humana aos profissionais liberais(2); estariam deixando sem proteção jurídica e sem acesso à justiça várias pessoas que estão alijadas do mercado formal de trabalho(3); e, por conseqüência, estariam impedindo que a Justiça do Trabalho, diante dos “novos paradigmas” da produção moderna, pudesse cumprir seu papel de dar plena efetividade ao princípio do valor social do trabalho, distribuindo a verdadeira justiça social(4).

Por considerar que não devemos transformar esse debate em questão pessoal, como se buscássemos o mérito de estar com a razão, fechando-se para outros argumentos, à semelhança de um embate fundamentalista, que recusa avanços na perspectiva dialética, e, sobretudo, porque não quero, de maneira nenhuma, passar para a história como alguém que, de alguma forma, posicionou-se contra a efetivação do princípio da dignidade humana, não tenho nenhum tipo de constrangimento em dizer que os argumentos da corrente ampliativa convenceram-me. Revejo, assim, minha manifestação inicial.

Aliás, faço esta reconsideração com imensa alegria primeiro, porque a partir de agora não serei mais retrógrado, conservador ou reacionário e sim moderno e avançado, e, segundo, porque deixarei de encabeçar uma corrente, para ser um seguidor, engrossando a enorme fileira de doutrinadores e juízes do trabalho, que, com suas manifestações, deixaram clara a noção de que a Justiça do Trabalho possui uma vocação natural, que se reverte em autêntica missão, qual seja: a proteção do valor social do trabalho e da dignidade humana.

É claro que eu não poderia ficar de fora dessa, pois a partir de agora passa a ser justo antever um grande e motivador movimento de redenção da Justiça do Trabalho, com a difusão do compromisso que se está assumindo com a cumprimento da missão mencionada.

Este autêntico espírito altruísta, voltado à proteção do ser humano e do valor social do trabalho, certamente, fará com que a Justiça do Trabalho doravante:

a) proteja a dignidade humana dos profissionais liberais, conferindo-lhes acesso à célere prestação jurisdicional trabalhista, para cobrar seus honorários de empresas, clientes ou pacientes (mesmo em relações de consumo);

b) preserve, igualmente, a dignidade humana de empresas, clientes ou pacientes frente aos atos “repressores” dos profissionais liberais;

c) confira direitos trabalhistas (embora não todos, como se diz) a trabalhadores parassubordinados ou independentes, que se encontram no mercado informal.

Mas, pessoalmente, confesso, minha alegria de participar desse movimento é maior pela convicção de que esta vocação protecionista do valor social do trabalho e da dignidade humana, com realce ao princípio de que o homem não é mercadoria de comércio, certamente não se restringirá às novas relações de trabalho que agora vêm para a competência da Justiça do Trabalho, repercutindo, igualmente, pelas mesmíssimas razões, na nossa velha conhecida: a relação de emprego.

Prenuncia-se, assim, um futuro bastante auspicioso da Justiça do Trabalho, também no que tange às relações de emprego, que terá como efeito:

a) a preservação do interesse público no reconhecimento da relação de emprego em relações de trabalho em que apenas se busca mascarar a exploração do capital sobre o trabalho. Esta nova Justiça, certamente, não se deixará impressionar pelas aparências enganosas dos ditos “novos paradigmas” do processo produtivo, pois sua vocação protecionista verá antes de tudo a necessidade da proteção do ser humano e não as “exigências do mercado”. Ao cabo, declarará fraudulentas, reconhecendo a existência da relação de emprego (para a aplicação do modelo jurídico protetivo do trabalho na sua potencialidade máxima e não parcialmente como se anuncia no que tange às relações parassubordinadas) nas hipóteses de mascaramento da exploração, tais como: cooperativas de trabalho; trabalhadores travestidos de pessoas jurídicas…

b) a necessária identificação da responsabilidade entre empresas nas produções realizadas com “cooperação” empresarial de forma horizontal, pois estas fórmulas muitas vezes se institucionalizam apenas para deixar o capital longe do trabalho, com o fim de dificultar a identificação da exploração. O capital se vale do trabalho, mas sem se mostrar às claras e, assim, acaba não tendo qualquer responsabilidade social. Mas, a Justiça do Trabalho, vocacionada, não se restringirá, por exemplo, a dizer que a pessoa que costura meias ou calçados em sua casa para uma outra pessoa, igualmente, miserável, tem direitos. Perseguirá a responsabilização da empresa que ostenta o capital e para quem, efetivamente, essas meias ou calçados são costurados. Aliás, conferirá proteção social, frente à grande empresa que está por detrás daquela atividade econômica, igualmente, àquele que apenas aparentemente detém a condição de “empresário”…

c) a revisão de vários de seus posicionamentos referentes a situações comuns nas relações de emprego, até porque se não se conseguisse efetivar a proteção do ser humano nas relações de emprego não seria possível supor que se o conseguiria realizar em outros tipos de relações de trabalho. Mas, como a ampliação da competência se baseia na adoção de uma nova postura protetiva, isto implicará mudanças na jurisprudência, especialmente, quanto a alguns aspectos, como os abaixo enumerados, de forma exemplificativa:

1. Terceirização: claro esta nova Justiça vocacionada para a proteção do ser humano, saberá reconhecer o equívoco do enunciado 331, do TST, que transforma o empregado em coisa (“coisificação” do ser humano). Declarará nula qualquer tipo de intermediação de mão-de-obra, afirmando o vínculo de emprego diretamente com o tomador dos serviços seja em atividade-fim, seja em atividade-meio, pois o ser humano não pode ser mercantilizado. A terceirização, assim, será restrita a prestações de serviços especializados, de caráter transitório, desvinculados das necessidades permanentes da empresa, mantendo-se, de todo modo, a responsabilidade solidária entre as duas empresas;

2. Acumulação de adicionais: como o princípio é o da proteção do ser humano, consubstanciado, por exemplo, na diminuição dos riscos inerentes ao trabalho, não há o menor sentido continuar-se dizendo que o pagamento de um adicional “quita” a obrigação quanto ao pagamento de outro adicional. Se um trabalhador trabalha em condição insalubre, por exemplo, ruído, a obrigação do empregador de pagar o respectivo adicional de insalubridade não se elimina pelo fato de já ter este mesmo empregador pago ao empregado adicional de periculosidade pelo risco de vida que o impôs. Da mesma forma, o pagamento pelo dano à saúde, por exemplo, perda auditiva, nada tem a ver com o dano provocado, por exemplo, pela radiação. Em suma, para cada elemento insalubre é devido um adicional, que, por óbvio, acumula-se com o adicional de periculosidade, eventualmente devido. Assim, dispõe, aliás, a Convenção 155, da OIT, ratificada pelo Brasil;

3. Adicional de insalubridade sobre a remuneração: a eliminação dos riscos à saúde é um bem jurídico protegido constitucionalmente. O ideal é que por ações inibitórias se eliminem os riscos, mas não tendo ocorrido, a repercussão econômica deve ser a mais ampla possível, para justificar os investimentos que uma empresa teria que fazer para eliminar os riscos e não uma paga simbólica ao trabalhador pelo risco a que foi exposto. A Constituição, ademais, é clara neste sentido, fixando o direito ao adicional de remuneração pela insalubridade;

4. Adicional de penosidade: até hoje doutrina e jurisprudência consideram o direito em questão como de norma constitucional de eficácia limitada. Na nova postura adotada pela doutrina e jurisprudência, de proteção da dignidade humana, tal entendimento não mais se justifica, pois se pode a jurisprudência conferir direitos trabalhistas a quem não é empregado, com muito mais razão poderá ela conferir eficácia plena aos direitos já consagrados aos empregados, até porque não é difícil definir o que seja um trabalho penoso. Penoso é um trabalho que não apresenta riscos à saúde física, mas que, pelas suas condições adversas ao psíquico, acaba minando as forças e a alta estima do trabalhador, mais ou menos na linha do assédio moral. Aliás, o próprio assédio moral não é definido em lei e ninguém hoje dirá que não cabe ao trabalhador uma indenização por assédio moral.

O trabalho penoso é uma espécie de assédio moral determinado pela própria estrutura empresarial e não por ato pessoal de um superior hierárquico. Um exemplo, talvez, permita melhor a compreensão da idéia: outro dia fui a uma fábrica. As trabalhadoras faziam um serviço repetitivo durante oito horas por dia, sem previsão de rotatividade de tarefas, sem possibilidade de descanso e sem que tivessem sequer a visão da trabalhadora ao lado, porque envolvidas por um biombo trilateral. Se avaliada a situação sob a ótica da insalubridade e da periculosidade nada estava, pelo menos aparentemente, errado, mas o trabalho exercido daquela forma minava a trabalhadora por dentro, tanto que na própria avaliação do gerente de recursos humanos, só pessoas com baixíssima formação cultural se submetiam ao exercício daquele serviço…

5. Horas extras ordinárias: As horas extraordinárias, prestadas de forma ordinária, trata-se de uma esdrúxula prática que interfere, obviamente, na saúde dos trabalhadores(5) e mesmo na ampliação do mercado de trabalho. Aliás, trata-se de uma grande contradição: no país do desemprego as empresas utilizarem-se, de forma habitual, da prática do trabalho em horas extras e pior, na maioria das vezes, sem o pagamento do adicional respectivo(6).

O ato de uma empresa que exige horas extras, sem o respectivo pagamento, aos seus empregados, em princípio é apenas uma agressão aos direitos individuais desses empregados, cuja satisfação, portanto, deve ser buscada pelas vias normais da ação individual, ainda que em litisconsórcio ativo (dissídio plúrimo). Mas, se vista por outro lado, considerando a repercussão do custo da produção e a concorrência desleal que essa atitude provoca com relação a outras empresas do mesmo setor, que não se utilizam de tal prática, a prática em questão revela-se uma autêntica agressão consciente da ordem jurídica, surgindo o interesse social em inibi-la.

A inibição de tal prática tanto pode se dar por intervenção do Ministério Público do Trabalho, que pleitearia a sua paralisação por meio de ação civil pública, quanto pode ser imaginada pela interposição de ações com caráter indenizatório, movidas pelos empregados, para fins de desestimulá-la.

Importante explicar que a limitação ao adicional de 50%, para o pagamento das horas extras, somente tem sentido quando as horas extras são, efetivamente, horas extras, isto é, horas além da jornada normal, prestadas de forma extraordinária. Quando as horas extras se tornam ordinárias, deixa-se o campo da normalidade normativa para se adentrar o campo da ilegalidade e, neste sentido, apenas o pagamento do adicional não é suficiente para corrigir o desrespeito à ordem jurídica.

6. Gerentes e altos empregados (direito a horas extras): Não se justifica a exclusão dos altos empregados dos direitos ao limite da jornada de trabalho, aos períodos de descanso (inter e entrejornadas), ao descanso semanal remunerado e ao adicional noturno, por previsão do artigo 62, II, da CLT. O problema é que este tipo de empregado (pressupondo, então, para fins de nossa investigação as situações fáticas e jurídicas em que o alto empregado se apresente como um autêntico empregado, isto é, um trabalhador subordinado) tem sido vítima, pelo mundo afora, de jornadas de trabalho excessivas. Eles estão, freqüentemente, conectados ao trabalho 24 horas por dia, 07 dias na semana, mediante a utilização dos meios modernos de comunicação: celular; pager; notebook; fax etc…

Os altos empregados estão sujeitos a jornadas de trabalho extremamente elevadas, interferindo, negativamente em sua vida privada. Além disso, em função da constante ameaça do desemprego, são forçados a lutar contra a “desprofissionalização”, o que lhes exige constante preparação e qualificação, pois que o desemprego desses trabalhadores representa muito mais que uma desocupação temporária, representa interrupção de uma trajetória de carreira, vista como um plano de vida, implicando crise de identidade, humilhação, sentimento de culpa e deslocamento social.

Em suma, a sua subordinação ao processo produtivo é intensa, corroendo sua saúde e desagregando sua família. Veja-se, por exemplo, que muitos sequer têm tido tempo para tirar férias, pois que, diante do quase inesgotável acesso a fontes de informações e por conta das constantes mutações das complexidades empresariais, ficar muitos dias desligado do trabalho representa, até mesmo, um risco para a manutenção do próprio emprego. Um primeiro e importante passo a ser dado na direção da humanização das relações de trabalho dos altos empregados é reconhecer que, mesmo tendo alto padrão de conhecimento técnico e sendo portadores de uma cultura mais elevada que o padrão médio dos demais empregados, não deixam de depender economicamente do emprego (aliás, há uma dependência até moral ao emprego, dada a necessidade natural de manutenção do seu status social) e que, por conta disso, submetem-se às regras do jogo capitalista para não perderem sua inserção no mercado. Sua sujeição às condições de trabalho que lhe são impostas pela lógica da produção é inevitável.

O direito do trabalho, sendo um centro de positivação da garantia dos direitos humanos, evidentemente, não deve encarar este fato como normal e estar alheio a ele, ou, pior, fixar normas que o legitime, pois o resultado é que uma geração inteira de pessoas qualificadas e que muito bem poderiam servir à sociedade de outro modo está sendo consumida no incessante ritmo alucinado do trabalho direcionado pelos comandos da produção moderna.

Juridicamente falando, a forma essencial de se reverter este quadro é integrar estes trabalhadores à proteção do limite da jornada de trabalho, consagrada, vale lembrar, desde o Tratado de Versalhes, 1919, com reforço que lhe fora dado pela Declaração dos Direitos do Homem, em 1948. Além disso, os incisos XIII e XV do artigo 7º, da CF/88, conferiram, respectivamente, a todos os trabalhadores, indistintamente, os direitos ao repouso semanal remunerado e à limitação da jornada de trabalho.

7. Horas extras (trabalho externo): Diz-se, comumente, que os empregados que exercem trabalho externo não estão sujeitos ao limite de jornada de trabalho. No entanto, sobressai o direito da sociedade de que esses trabalhadores tenham sua jornada de trabalho limitada, sendo esta uma obrigação primária que se impõe ao empregador, por ser ele quem exige ou permite a execução de serviços por parte de seu empregado. Independente do que dispõe o inciso I, do art. 62, é importante atribuir ao empregador a obrigação de limitar a jornada de seus empregados, mesmo que trabalhem fora de seu estabelecimento.

Recentemente, em uma reclamação trabalhista(7), um trabalhador, motorista de ônibus intermunicipal, pleiteou o recebimento de horas extras, declinando uma jornada de trabalho de cerca de 12 horas. A reclamada, em defesa, simplesmente disse que o reclamante exercia trabalho externo e que, portanto, sequer sabia apontar a quantidade de horas que o reclamante trabalhava, diariamente.

Pense-se a questão, no entanto, sob o prisma da responsabilidade social: aquele trabalhador transportava vidas humanas a mando do empregador e segundo a versão do trabalhador seu trabalho era exercido além do limite que razoavelmente se poderia entender como necessário para a segurança de todos e o empregador sequer tinha o cuidado de se dar conta da quantidade de horas trabalhadas, apenas para demonstrar a inexistência de controle e, portanto, valer-se da previsão do inciso I, do artigo 62, da CLT, com o fito de evitar o pagamento de horas extras. No entanto, o fato concreto é que aquele empregador não só poderia controlar a jornada trabalhada por seu motorista como tinha o dever social de fazê-lo. Este controle, aliás, é sempre possível (basta lembrar dos caminhões que trazem a inscrição, “veículo rastreado por radar”) e sendo esta sua obrigação, recai sobre si o encargo da prova das horas de trabalho, em eventual discussão em juízo a seu respeito.

8. Banco de horas: O banco de horas, em absoluto, pode ser considerado constitucional, na medida em que permite que uma dívida trabalhista (o pagamento da hora extra) se pague com prazo de um ano e sem o respectivo adicional, quando se compensa uma hora extra com uma hora normal, sem falar nos efeitos perversos que esta incerteza de horários provoca no cotidiano dos trabalhadores. É evidente que o propósito da lei, de preservar os empregos em épocas sazonais, só poderia se concretizar com a fixação da regra de que primeiro se concedessem as folgas, para que depois estas se compensassem com horas extras, preservando-se sempre a diferença quantitativa entre a hora normal e a hora extra(8).

9. Revezamento 12×36: o revezamento 12×36 fere, frontalmente, a Constituição e a lei. A lei não permite trabalho em horas extras de forma ordinária, como dito acima. E, se houver trabalho em hora extra, a jornada não pode ultrapassar a 10 horas. No regime de 12×36 há trabalho freqüente além de oito horas diárias, portanto, horas extras (o fato de ser remunerado como tal, ou não, não afeta a realidade, pois hora extra é a hora que ultrapassa o limite máximo da jornada normal) e há trabalho com jornada superior a 10 horas. O descanso a mais que se dá, com a folga no dia seguinte, primeiro não retira a ilegalidade e segundo, sob o aspecto fisiológico, não repõem a perda sofrida pelo organismo, ainda mais sabendo-se, como se sabe, que no dia seguinte o trabalhador não descansa, ocupando-se de outras atividades e mesmo vinculando-se a outro emprego. Uma jornada de 12 horas vai contra a todos os preceitos internacionais de direitos humanos.

10. Agressões reincidentes do direito do trabalho: várias empresas são reincidentes na prática de agressões aos direitos dos trabalhadores, agindo assim de forma deliberada e equacionando os lucros que obtêm com tal atitude. A Justiça do Trabalho, ao contrário do que deveria, acaba adotando com relação a estas empresas uma postura complacente e às vezes, diante do fato de estarem seus representantes ou advogados, em contato mais freqüente com a Justiça, acabam tendo um tratamento extremamente amistoso. São empresas-clientes da Justiça do Trabalho. Umas até “clientes preferenciais”, que em breve vão acabar reivindicando que seus “cartões” sejam pontuados em função do número de reclamações, para trocarem esses pontos por milhagens… Claro isto é apenas uma caricatura, mas que reflete, de certo modo, o que se passa no dia-a-dia da Justiça do Trabalho (Justiça e certas empresas “parceiras” no descumprimento do direito do trabalho).

Mas, agora, fruto da revitalização do princípio protetor a nova Justiça do Trabalho fará o que já devia estar fazendo, tratar essas empresas como inimigas, não para ser contra o capital, mas para estar do lado das empresas que não comparecem na Justiça do Trabalho, exatamente, pelo fato de serem cumpridoras dos direitos trabalhistas.

A nova Justiça do Trabalho, então, conferirá uma espécie de selo “Amiga da Justiça do Trabalho” a todas as empresas que não tiverem reclamações trabalhistas e às suas “clientes” dará um tratamento repressivo, condenando-as, pela reincidência, ao pagamento de indenizações por dano social, fixadas a partir dos parâmetros jurídicos criados pelos artigos 186, 187, 927 e 404, parágrafo único, do Código Civil, e, no aspecto processual, inverterá o ônus da prova, para que tais empresas provem que na situação posta em julgamento os fatos foram diversos daqueles tantos outros que o juiz já instruiu e julgou.

Nesta perspectiva de penalização pela utilização da Justiça do Trabalho como forma de incrementar o negócio a partir do não pagamento das dívidas trabalhistas, deve-se reconhecer que ao inadimplente contumaz não basta a determinação de reparar o dano com juros de 1% ao mês, não capitalizados. Para estes, na perspectiva do dano social, a pena deve ser maior. Com base na previsão contida no artigo 404, parágrafo único, do Código Civil, os juros deves ser calculados pela taxa SELIC e no que tange às instituições financeiras, que emprestam a juros altíssimos (os maiores do mundo) o dinheiro que deixam de repassar aos trabalhadores, o índice deve ser, por aplicação do princípio da isonomia, o mesmo, qual seja, o do cheque especial.

11. Proteção contra dispensa arbitrária: Sob a nova perspectiva protetiva da dignidade humana, é crucial que se passe a considerar que a dispensa imotivada de trabalhadores não foi recepcionada pela atual Constituição Federal, visto que esta conferiu, no inciso I, do seu artigo 7º, aos empregados a garantia da “proteção contra dispensa arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos”. Ora, da previsão constitucional não se pode entender que a proibição de dispensa arbitrária ou sem justa causa dependa de lei complementar para ter eficácia jurídica, pois que o preceito não suscita qualquer dúvida de que a proteção contra dispensa arbitrária ou sem justa causa trata-se de uma garantia constitucional dos trabalhadores. Está-se, diante, inegavelmente, de uma norma de eficácia plena.

A complementação necessária a esta norma diz respeito aos efeitos do descumprimento da garantia constitucional. Mesmo que assim não fosse, é evidente que a inércia do legislador infraconstitucional (já contumaz no descumprimento do comando constitucional) não pode negar efeitos concretos a um preceito posto na Constituição para corroborar o princípio fundamental da República da proteção da dignidade humana (inciso III, do artigo 1o), especialmente quando a dispensa de empregados se configure como abuso de direito, o que, facilmente, se vislumbra quando um empregado é dispensado, sem qualquer motivação, estando ele acometido de problemas de saúde provenientes de doenças profissionais, ou, simplesmente, quando a dispensa é utilizada para permitir a contratação de outro trabalhador, para exercer a mesma função com menor salário, ou vinculado a contratos precários ou a falsas cooperativas; ou seja, quando o pretenso direito potestativo de rescisão contratual se utiliza para simplesmente diminuir a condição social do trabalhador, ao contrário do que promete todo o aparato constitucional.

Revista Consultor Jurídico

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