DIREÇÃO NÃO HABILITADA DE VEÍCULO: O CRIME E A CONTRAVENÇÃO

Fernando de Almeida Pedroso

Dirigir veículo sem a devida habilitação na via pública.

A conduta acima enunciada sempre foi considerada contravenção penal, prevista e consagrada no artigo 32 da respectiva lei.

Com o advento do diploma legal nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, que instituiu o novo Código de Trânsito Brasileiro, a direção inabilitada de veículo na via pública, através do seu artigo 309, foi erigida à categoria de crime, cominando-se, além da pena pecuniária (alternativa), a sanctio juris restritiva da liberdade de detenção de seis meses a um ano.

Resta pois perscrutar se a novel lei, que transmudou em delito a prática contravencional, revogou o artigo 32 da Lei das Contravenções Penais.

Temos que não.

Como se sabe e cediço é, uma lei somente por outra é revogada, ocorrendo o fenômeno quando a nova norma explicitamente dispuser sobre a revogação da anterior (ab-rogação expressa) ou quando esta se torne antagônica, antinômica e contrastante com a ulterior, gerando incompatibilidade (ab-rogação tácita ou implícita).

Nenhuma destas situações, entretanto, desponta ocorrente entre os artigos 32 da Lei das Contravenções Penais e o artigo 309 do Código de Trânsito Brasileiro.

Ad primum, porque o artigo 309 da Lei nº 9.503/97 não proclamou revogado o epigrafado dispositivo da lei contravencional.

De outro turno, porque inexiste incompatibilidade entre os termos das disposições legais ora analisadas, emergindo entre elas relação de especialidade e subsiariedade, de modo que ambas subsistem, conservando sua autonomia.

Senão, vejamos.

Como alhures escrevemos (“Direito Penal – Parte Geral – Estrutura do Crime”, Livraria e Editora Universitária de Direito-LEUD, 2ª edição, 1997, Cap. 24), os tipos legais delitivos inscritos no diploma penal ostentam, via de regra, plena autonomia e independência, captando os fatos concretos que se amoldam à figura estabelecida.

Têm os tipos, dessarte, em princípio, identidade própria, decorrente da estrutura que lhes é dada pela lei, de modo que cada um é distinto do outro.

Algumas vezes, entretanto, os tipos se coordenam, relacionam e interpenetram, de sorte que um mesmo episódio encontra a possibilidade de ser captado, alcançado e subsumido por mais de um tipo legal delitivo, sem que, no entanto, todos se apliquem.

Surge então importante questão a ser considerada: todos os tipos em que o fato é encartável são aplicáveis, ocorrendo assim um concurso de crimes, ou, ao revés, somente um desses tipos se aplica, com exclusão dos demais ?

Se a apreciação jurídica procedida concluir que os tipos em que se subsume o fato são todos aplicáveis, teremos o concurso de delitos. Se, ao reverso, verificarmos, por qualquer razão, que há coordenação e combinação entre os tipos concorrentes, de modo que, perdendo estes sua autonomia e independência, a aplicação de um venha a afastar e a elidir a dos demais, estaremos diante daquilo que se denomina conflito ou concurso aparente (o Gesetzeskonkurrens da doutrina alemã) de normas penais (ou de tipos ou leis). Isso porque, em hipótese tal, o concurso de crimes que se apresenta, pela concorrência dos tipos a que o fato é adequável, somente existe na aparência, e não na realidade jurídica. É, pois, um concurso impróprio de crimes.

Em síntese: nos domínios em que ora se incursiona, há de ser examinado se a situação que se analisa se subsume efetivamente em diversos tipos penais (concurso de crimes) ou se, ao revés, existe uma unidade típica que a abriga, embora aparentemente haja uma concorrência de tipos legais para a adequação.

Imaginemos, exemplificativamente, que tivéssemos à nossa frente dois objetos (cada qual representando um tipo), tendo cada um deles sua própria composição e estrutura, sua própria autonomia e independência, ocupando o seu espaço próprio. Digamos, portanto, que esses objetos fossem um objeto metálico qualquer e um imã. Se os mantivermos distantes e separados, cada qual conservará sua independência e autonomia, ocupando lugar próprio. Se, contudo, os pusermos próximos, constataremos que entre eles se exerce uma força de atração, de maneira que um será atraído para o campo de força do outro, formando ambos um só corpo, uma só unidade, pela perda da autonomia e independência.

Sob esse prisma é que a questão do concurso aparente de normas se insinua e propõe para enfoque e resolução.

Torna-se então indeclinável aferir se a espécie propende para o concurso de crimes, conservando cada tipo aplicável sua autonomia ou independência, ou se para o conflito aparente de normas penais, constatando-se uma força de atração entre os tipos de forma a excluir a aplicação de um a de outros. Projeta o tema sua relevância, por conseguinte, para o âmbito da exata adequação típica, da qual a aplicação da pena cabível constitui mero reflexo.

Para a sua solução, impende e cumpre sejam postas as hipóteses que se apresentem sob a análise de três princípios fundamentais: o da especialidade, subsidiariedade e consunção.

Se, entre os tipos penais, houver uma relação de especialidade, subsidiariedade ou consunção, estarão eles coordenados e combinados, de sorte que a aplicação de um deles entrava e oblitera a dos demais. Se, porém, inexistir entre os tipos essa relação, todos conservarão sua autonomia e independência, sobejando simultaneamente aplicáveis ao caso, que, então, tonalizará hipótese de concurso de crimes.

Há relação de especialidade entre tipos legais delitivos sempre que um deles, comparado com outro, contiver os mesmos elementos descritivos e circunstâncias essenciais, com a adição, porém, de outros caracteres, chamados elementos especializantes.

Estabelece-se, de tal arte, a correlação entre tipo geral e tipo especial, envergando este todas as características daquele, contudo com acréscimos especiais.

O tipo especial, por conseguinte, preenche integralmente o tipo geral, com a exigência, porém, de outras particularidades necessárias à configuração jurídica do crime.

Assim, quem perpetra o tipo especial incide também no tipo geral.

Nessa conjuntura, para que se entrave e oblitere o bis in idem, o tipo especial há de prevalecer e predominar sobre o geral, afastando a sua incidência para o caso. Lex specialis derogat legi generali.

Uma verificação prévia para o efeito suso assinalado, todavia, sempre será necessária: constatar se ambos os tipos (geral e especial) encontram-se em vigor. Se os dois preceitos não estiverem contemporaneamente vigentes ao tempo de sua aplicação, o problema se desloca e transfere para os domínios da lei penal no tempo, situação que não se nos afigura ocorrente entre o arito 32 da lei contravencional e o artigo 309 do Código de Trânsito.

O crime descrito no artigo 309 da recente Lei nº 9.503/97, que instituiu o novo Código de Trânsito Brasileiro, contém elemento especializante em relação à contravenção penal do artigo 32 da respectiva Lei, motivo pelo qual não foi a prática contravencional implicitamente revogada – por incompatibilidade – pelo novo preceito incriminador . Isso porque o delito epigrafado não se contenta com a simples direção inabilitada de veículo na via pública para a sua subsunção típica, como sucede na prática contravencional (de simples perigo abstrato), exigindo, em acréscimo à simples contravenção, a ocorrência do perigo de dano como condição objetiva de punibilidade. Não se trata de resultado naturalístico ou tipológico do crime, posto que se o surgimento do perigo de dano ou o próprio dano estiverem embutidos na direção de vontade do agente, outra poderá ser a figura penal (cf. nosso “Direito Penal – Parte Geral – Estrutura do Crime”, Livraria e Editora Universitária de Direito-LEUD, 2ª edição, 1997, nº 5.4). É, pois, delito de mera conduta, subordinada sua punição, porém, objetivamente, ao acontecimento que a lei assinalou.

Sendo o crime tipo especial em relação à prática contravencional, pela inserção da apontada condição objetiva de punibilidade, desponta igualmente relevante, entre as disposições legais em apreço, o princípio da subsidiariedade, agregado à contravenção.

No caso, adquire vulto, importância e relevo a subsidiariedade na função supletiva e subjacente à especialidade.

Assim, constitui a subsidiariedade consectário e corolário da especialidade, pressupondo, para a sua aplicação, uma relação de geral e especial entre tipos.

Este é o enunciado do princípio: lex primaria derogat legi subsidiariae.

Vale dizer: a enunciação do princípio, literalmente, tem o mesmo significado, com outras palavras, que o princípio da especialidade, aduzindo que o preceito de lei principal (tipo especial) prevalece sobre o que lhe é subsidiário e supletivo (tipo geral).

A importância do princípio de que ora se cuida desponta da sua colocação inversa.

Dessa forma, sempre que um tipo especial não puder, por um motivo qualquer, abrigar tipicamente o episódio que se analisa e examina, o tipo geral, subsidiária e supletivamente, como reserva do tipo especial (já que este contém todos os seus elementos), outorgará guarida típica ao fato.

Numa partida de futebol, por exemplo, se o jogador titular não atuar satisfatoriamente no evolver do jogo, será providenciada sua substituição pelo jogador do banco da reserva, para que cumpra este o mister que aquele não pôde levar a contento.

Mutatis mutandis, é o que sucede na subsidiariedade, pois substitui o tipo geral, supletivamente, o tipo principal ou especial, quando neste não se encartar ou subsumir inteiramente o fato criminoso.

Desse modo, se o fato concreto não contiver todos os elementos especializantes requestados pelo tipo especial, não logrando, consequentemente, nele se subsumir, não ficará, no entanto, atípico, pois terá sua tipificação projetada e transferida para o tipo geral, que, então, o compreenderá.

A subsidiariedade, preleciona WESSELS, reivindica a tipicidade para o caso em que uma outra norma já não intervenha (“Direito Penal”, Parte Geral, Sérgio Antonio Fabris Editor, tradução de Juarez Tavares, 1976, pg. 180).

Por conseguinte, quem dirige automóvel na via pública sem a devida habilitação, sem criar ou gerar situação concreta de perigo, não comete o crime descrito no artigo 309 da Lei nº 9.503/97, à falta da necessária condição objetiva de punibilidade exigida, mas a prática contravencional – subsidiária – prevista no artigo 32 da respectiva lei, não revogada, portanto, à falta de incompatibilidade contextual, pelo novel diploma.

Esse o nosso pensar.

Fernando de Almeida Pedroso

O autor é Promotor de Justiça no Estado de São Paulo, Professor de Direito na Universidade de Taubaté (UNITAU). Autor dos livros “Direito Penal – Estrutura do Crime” (LEUD), “Aspectos Polêmicos de Processo e Direito Penal” (LEUD), “Processo Penal – O Direito de Defesa” (RT), “Prova Penal” (AIDE), “Homicídio, Participação em Suicídio, Infanticídio e Aborto – Crimes Contra a Vida” (AIDE) e “Competência Penal” (DEL REY – no prelo)

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