Da improbidade administrativa e dos excessos do Ministério Público

Renato Luiz Mello Varoto*

Irrecusável o entendimento de o representante do Ministério Público ser agente público, nos termos da Lei 8.429/92. Impropriamente denominada de “Lei do Colarinho Branco”, o texto legal, apresentado por alguns como revolucionário, em verdade nenhuma inovação substancial trouxe no que respeita à responsabilização de ímprobos.

Como repisadamente tem sido afirmado, a Lei da Improbidade limitou-se a reunir dispositivos existentes em vários textos legais, acrescentou-lhes alguns pequenos preceitos e foi o produto final e impreciso, jogado ao mundo, como forma de regulamentar o art. 37, § 4º da Constituição Federal. E, em mais uma improvisada resposta à pressão popular, foi saudada como a salvação da moralidade e do erário públicos.

Faltou solidez à nova lei. Na verdade, buscou ela regular um preceito sobre o qual indaga MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO: “rigorosamente falando, este preceito nada acrescenta ao direito pátrio. É todavia, uma advertência ao administrador (será que útil ?), e principalmente uma satisfação à opinião pública”.

A indagação do mestre paulista destaca-se no momento em que for levado em conta que a Lei 8.429/92, por severa imprecisão conceitual, tem dado margem a excessos de interpretação. O conceito de improbidade administrativa, vista como todo o ato que, de algum modo, agride à moral administrativa, vai-se alastrando consoante os interesses e oportunidades que estejam em jogo em determinado momento e sob certas circunstâncias. O amplo espectro do conceito de improbidade administrativa, trazido pela Lei 8.429/92, faz com que, pela impossibilidade de definições claras, os agentes públicos vejam-se sempre sujeitos a uma interpretação apressada, extensiva e, em alguns casos, maldosa, que acaba por enquadrá-los em práticas havidas como ilegais e que, culposa ou dolosamente, jamais lhes passaram por qualquer pensar.

Apenas para efeito de raciocínio seguir-se-á, aqui, o entendimento de ser “improbidade administrativa o designativo técnico para a chamada corrupção administrativa, que, sob diversas formas, promove o desvirtuamento da Administração Pública e afronta os princípios nucleares da ordem jurídica (Estado de Direito, Democrático e Republicano), revelando-se pela obtenção de vantagens patrimoniais indevidas às expensas do erário, pelo exercício nocivo das funções e empregos públicos, pelo “tráfico de influência”, nas esferas da Administração Pública e pelo favorecimento de poucos em detrimento dos interesses da sociedade, mediante a concessão de obséquios e privilégios ilícitos”.

As imperfeições conceituais da Lei, em toda a sua extensão, bem como sua questionada inconstitucionalidade, não constituem matéria a ser tratada aqui, onde se quer abordar a responsabilidade dos agentes públicos. Aí, ao contrário, a Lei é precisa e não deixa nenhuma dúvida quanto a quem pode ser responsabilizado por ato de improbidade administrativa. E desta lei os membros do Ministério Público não foram excluídos. Deles, como de qualquer outro agente público, é exigido respeito aos preceitos éticos e legais, quando no trato do interesse público.

O art. 2º da Lei 8.429/92 giza um conceito amplo de agente público, distanciando-o do restritivo conceito de servidor público, como forma de garantir a plena responsabilização daquele que vier a agredir não só o patrimônio público, como, por igual, os preceitos da administração pública, com destaque para a moralidade administrativa, todos princípios insculpidos no art. 37 da Constituição Federal, além daqueles que se encontram consagrados por nosso ordenamento jurídico. No texto da chamada Lei de Improbidade, o agente público abrange aquele que, na administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer das esferas governamentais, exerça, com ou sem remuneração, permanente ou transitoriamente, em virtude de qualquer forma de investidura ou vínculo, cargo, emprego ou função na administração. O conceito adotado, pelo diploma legal, atinge também os agentes que atuem em empresa incorporada ao patrimônio público ou de ente privado para cuja criação ou custeio o Estado tenha, de qualquer forma, concorrido ou concorra.

O certo é que, mesmo revelando grande avanço no trato democrático das partes, o texto legal não permite falar em igualdade de tratamento entre os agentes públicos. O argumento da natureza especial das funções desempenhadas por uns e por outros continua sendo o principal justificador de que alguns não admitam possa o agente do Ministério Público ser responsabilizado plenamente por seus atos. Há provar que sua ação não encontra amparo na boa-fé, no equívoco, no engano. Por mais grosseiro e danoso que venha a ser o ato praticado pelo agente do Ministério Público, não se lhe atribuirá nenhuma responsabilidade se não ficar provado – não bastam indícios – abuso de poder, arbítrio, má-fé, fraude e outras condutas do mesmo desvalor.

Alguns autores defendem, fortemente, a impossibilidade de os agentes do Ministério Público serem responsabilizados além das hipóteses taxativamente grifadas em lei. Em outras palavras, defendem que a interpretação extensiva de textos legais é aplicável a qualquer agente público, menos aos integrantes do Ministério Público, os quais, pela especificidade de suas atribuições, não podem estar sujeitos a essa forma de responsabilização. Aqui, mais uma vez, aparta-se, fortemente, o Ministério Público do restante da sociedade.

Na mesma esteira, inaceitável a defesa de não poder a promoção do Ministério Público causar dano por depender de decisão do Judiciário. O argumento é simplista e irreal. Inoportuno discutir o conceito de dano, mas não há negar-lhe conteúdo moral. Assim, como não ver dano em manifestações do Ministério Público, inclusive pela imprensa, tribuna preferida de alguns, acusando e, em alguns casos, “condenando” o agente público? Na presidência do inquérito civil ou na condução de qualquer procedimento investigatório, o agente do Ministério Público pode causar dano-lhe moral e/ou econômico-financeiro.

Em síntese, no pensar dominante, os membros do Ministério Público só podem ser responsabilizados por dolo, com o que, repisado o preceito do art. 85 do Código de Processo Civil, que só admite a responsabilização civil do órgão do Ministério Público, quando, no exercício de suas funções proceder com dolo ou fraude”.

O certo é que tem sido praticada a impossibilidade de responsabilizar os membros do Ministério Público por ato de improbidade nos termos previstos em todos os incisos do artigo10 da Lei 8.429/92, por ser entendido que as condutas ali capituladas dão-se sob forma culposa, ao contrário dos artigos 9º e 11, em que é exigido o dolo. Mesmo aí não se tem notícia de que ocorra alguma responsabilização, embora o reconhecimento, quase unânime, da sociedade brasileira das imprudências e leviandades cometidas por ilhados membros do Ministério Público. O resultado é o aumentar do fosso que separa as várias espécies de agentes públicos. Inegavelmente, aos demais agentes públicos o tratamento é diverso: qualquer comportamento havido como ímprobo, culposo ou doloso, permitirá a responsabilização do agente nos termos da Lei 8.429/92, independentemente inclusive da efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público ou da aprovação ou rejeição das contas pelo órgão de controle interno ou pelo Tribunal de Contas, consoante dispõe o art. 21 da lei.

Oportuno, pela sua autoridade e ousadia, sublinhar a lição de FÁBIO MEDINA OSÓRIO, do Promotor Público do Estado do Rio Grande do Sul, para quem “a culpa grave pode fundamentar a responsabilização de Parlamentares, Magistrados e membros do Ministério Público que, no desempenho de suas atribuições causem, injustificadamente, por manifesto e desproporcional despreparo funcional, lesão ao erário, violando os princípios básicos que regem a Administração Púbica, v.g., moralidade e legalidade”.

É óbvio que podem os agentes do Ministério Público ser sujeitos em processo por improbidade administrativa, ainda que tanto apenas ocorra no tocante a atos praticados com dolo ou fraude, aceitando-se, segundo parte da Doutrina e moderna Jurisprudência, também a responsabilização, quando se tratar de culpa grave.

Questão interessante: a quem caberá impulsionar o processo quando se tratar de responsabilizar membro do Ministério Público?

A Lei é silente. Decorre daí o pressuposto de que a iniciativa do processo deverá ser do próprio Ministério Público, garantindo-se ao processado fórum especial, traduzido em julgamento pelo Tribunal de Justiça, consoante determina Lei Orgânica Nacional do Ministério Público – Lei 8.625/93.

A fixação desses princípios dá ao Ministério Público intrincado papel no desempenho de seu poder-dever, no que respeita à Lei 8.429/92, posto que pode ele, a um só tempo, atuar como seu fiscal e agressor. É preciso, sem atacar as prerrogativas e atribuições constitucionais do Ministério Público, assegurar mecanismos que impeçam venha ele, em decorrência de seu ambíguo papel, a ter “dois pesos e duas medidas”, ao tratar dos atos de improbidade praticados por agentes públicos.

É fundamental, por outro lado, que a discricionariedade, que é própria a alguns agentes públicos e que não pode ser negada no que respeita à liberdade decisória própria ao agente do Ministério Público, não venha a ser transformada em chicote da liberdade e garrote à Administração Pública. O sentido da discricionariedade importa lembrar ser ela, “o resíduo da liberdade, ocorrente em cada caso, deferido ao administrador como um poder e simultaneamente um dever de integrar a vontade da lei, corporificando-as nas situações específicas em que tal interferência seja requerida pela própria norma que se dá execução”.

O grave, entretanto, é que, no exercício desse poder-dever de fiscalizar, venham agentes do Ministério Público transformando-se em patrocinadores de arbitrariedades e castradores da liberdade de administradores e cidadãos e entrevistados prediletos da imprensa sensacionalista.

Neste particular tem sido preocupante o caráter extensivo, quase oceânico, que integrantes do Ministério Público têm dado ao que seja improbidade administrativa. Com injustificável e duvidosa freqüência, confundem ilegalidade com improbidade, cerceando, e até mesmo paralisando, a ação administrativa e, pior, desrespeitando a vontade popular manifestada nas urnas. Agem, tais agentes, esquecidos, por certo, de ser o povo o único e verdadeiro titular da soberania nacional, atuando todos os demais, por delegação, inclusive o Ministério Público. Como detentor do poder originário de organização do Estado, não pode o povo ver suas decisões atacadas e destruídas por manifestação solitária de vontade.

Ainda que proibidos de assumir posicionamentos político-partidários, são cada vez mais freqüentes as definições de representantes do Ministério Público em favor de uma ou outra administração, de um ou outro agrupamento partidário, com o que acabam praticando verdadeiro segundo ou terceiro turno eleitoral, ilegítimo e imoral, quando os vencedores não são de seu agrado ou não militam nas greis que lhes são simpáticas. E não se diga que tanto é exagero para comprovar a afirmativa, basta ver, em toda a imprensa, quase que diárias manifestações de representantes do parquet destruindo a imagem de administradores públicos, atribuindo-lhes condutas completamente desprovidas de qualquer sentido ético, moral e legal e que, ao crivo técnico-legal do Poder Judiciário, acabam reconhecidas como revestidas da mais absoluta moralidade e legalidade.

Preocupam manifestações, ainda que de boa-fé, feitas por Procurador da República em palestra a servidores públicos, incitando-os ao denuncismo político: “Tirem xerox, passem para a imprensa, para o Ministério Público, e vamos denunciar” (grifos nossos) . O mesmo agente público, em outra oportunidade fustigara o secretário da Receita Federal, criticando-o “O leão virou um gatinho mimado, de pelúcia com os grandes sonegadores”.Isto tudo combinado com o haver mandado, por meio de acompanhante, duro recado a um Senador da República: “Fale para ele assinar a CPI da Corrupção”.

De excepcionalidade a justificar manchetes na grande imprensa nacional a decisão do Superior Tribunal de Justiça que negou habeas corpus a Procurador da República que tentava trancar ação penal que contra ele era movida por agente público. Texto do jornal Folha de São Paulo on Line de 26.11.2002: “O STJ (Superior Tribunal de Justiça” negou o pedido de hábeas corpus feito pelo procurador da República Luiz Francisco de Souza, de Brasília, em ação penal que ele responde no TRF (Tribunal Regional Federal) da 1ª Região. O procurador é acusado de ofender a honra do advogado Marcos Jorge Caldas Pereira, irmão do ex-secretário-geral da Presidência Eduardo Jorge. Marcos Jorge e o seu escritório, Caldas Pereira Advogados e Consultores, dizem que foram difamados por Luiz Francisco em entrevista ao “Jornal Nacional”, da TV Globo, em 2000, na qual ele teria falado sobre os desvios de recursos do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo. Luiz Francisco entrou no STJ com pedido de habeas corpus, dizendo não ter tido intenção de difamá-los. Segundo o procurador, ele teria apenas narrado fatos relativos à investigação sobre os desvios de verbas do TRT.

O habeas corpus foi negado por unanimidade, em julgamento no dia 21. Segundo o relator do caso no STJ, ministro Vicente Leal, esse tipo de habeas corpus, em que é alegada a “falta de justa causa” para o prosseguimento do processo, só é aceito quando a denúncia não define satisfatoriamente o crime do qual a pessoa é acusada ou não há nenhum indício da autoria”.

Nessa perspectiva é forçoso reconhecer a gravidade de denúncias, que se vêm acumulando, como a do presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Jair Krischke, que, em depoimento na Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, acusou o Ministério Público daquele Estado de agir politicamente, arquivando denúncias contra o governo estadual do PT, além de outras práticas todas tipificadas como atos de improbidade.

No texto do jornal:

“Krischke mostrou cópia de um relatório reservado do serviço secreto da BM no qual está escrito que “uma pessoa da PGJ” (Procuradoria-Geral de Justiça, segundo ele Krischke) orienta o agente a respeito de um “flagrante preparado em Canoas” e da “necessidade de gerar eventos de grande repercussão para a CPI na imprensa”. O documento fala em “quebrar a resistência da Polícia Civil às mudanças necessárias”.

Krischke disse que a área criminal da Procuradoria de Justiça é o “Triângulo das Bermudas., porque grande parte das denúncias importantes que envolvem o governo do Estado desaparece nas gavetas”. O presidente do MJDH citou casos de denúncias contra integrantes da Corregedoria de Polícia Civil, acusados de prevaricação e abuso de autoridade, que teriam sido arquivados pelos promotores”.

Seria ingênuo pensar a denúncia como fato isolado na dimensão nacional. Hoje, práticas desse nível são constantemente reveladas ao povo brasileiro. Felizmente, embora não seja um fenômeno circunscrito a um ou outro agente do Ministério Público, é valor de poucos, muito poucos. É possível reconhecer que a grande maioria vive um processo profundamente ético-moral no desempenho de sua função, por vezes concorrente, de fiscal da lei.

Na esteira de comportamentos desse tipo está sendo despertada uma consciência de zelar para que a intervenção do Ministério Público não ultrapasse os limites definidos em lei, perdendo sua perspectiva ético-legal, renunciando à idéia de verdadeiro defensor da sociedade, para optar pela barbárie da persecutio imprudente e irresponsável.

É preciso que os agentes do Ministério Público tenham extremo cuidado ao agir como fiscais da improbidade para, no dizer de CARLOS FREDERICO BASTOS DOS SANTOS, não “devorar a honra, a paz e o patrimônio de inúmeros agentes públicos dignos por possíveis hermenêuticas extensivas (apressadas interpretações ao pé da letra) que venham a qualificar como improbidade administrativa qualquer ato ilegal praticado por agente público, gerando assim uma verdadeira balbúrdia na ordem jurídica, ou seja, fazendo com que um simples fato corriqueiro e que motivasse apenas de uma sanção disciplinar punível com advertência se transmudasse por exagero em ato de improbidade administrativa por violação ao art. 11 e, conseqüentemente, carretando as duras sanções decorrentes do art. 12, inciso III, da LIA, como a perda da função pública que, em tese, seria aplicada cumulativamente com as demais ali previstas, e assim por diante. Exemplos semelhantes não faltarão para demonstrar a preocupação dos doutrinadores com possíveis excessos de interpretação, sendo importante aqui relembrarmos as antigas lições de Direito Romano acerca do princípio da equidade desenvolvido por seus jurisconsultos, bem como a lapidar definição de Direito que nos foi legada por CELSUS, segundo o qual “jus est ars boni et aequi”, ou seja, “a arte do bom e do eqüitativo”.

Tem-se, no pensar dominante, da quase absoluta impossibilidade de separar improbidade e imoralidade administrativa, ainda que traduzam conceitos diferentes. Assim, é preciso, no exame das condutas tipificadas na Lei 8.429/92, atentar para um horizonte mais largo do que a simples lesão ao erário público, para observar ofensas aos princípios próprios à boa administração, todos eles abrigados pela Lei, como a boa fé, a lealdade, a publicidade, a impessoalidade. Aliás, o art. 4º da Lei 8.429/92 é taxativo, ao dispor sobre a obrigatoriedade dos agentes públicos de velar pela observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade.

Inobstante não seja propósito do trabalho a análise das condutas tipificadas nos artigos 9º, 10 e 11 da Lei 8.429/92, impossível na análise proposta passar in albis algumas das figuras abarcadas pelo texto legal, posto que revelam condutas que podem muito bem determinar dificuldades de julgamento por parte do Ministério Público, uma vez que, em tais hipóteses, cresce o risco de algum de seus membros estar, a um só tempo, atuando como fiscal da lei e sujeito ativo de sua agressão.

Daí não se poder negar destaque ao artigo 11 da Lei 8.429/92 que, ao considerar como atos de improbidade administrativa aqueles que atentem contra os princípios da moralidade pública, não apenas confirmou o entendimento doutrinário da importância dos princípios maiores da Administração Pública, como pôs autêntica pá de cal sobre o equivocado juízo de improbidade administrativa ser sinônimo de dano, ou pelo menos, de agressão ao patrimônio público.

Oportuno, lembre-se aqui, a advertência de MARCELO FIGUEIREDO sobre o equívoco legal em equiparar improbidade a legalidade, ao admitir como ímprobo todo o ato atentatório aos princípios constitucionais. O resultado, diz o autor, é o arbítrio, só superável com imenso esforço doutrinário para dar à improbidade administrativa seus legítimos limites conceituais.

Estendendo suas preocupações, o mesmo autor lembra: “novamente a preocupação nada tem de acadêmica, porquanto, dentre tantos problemas, os resultados e conseqüências da ação ilegal e da ação por ato de improbidade são radicalmente diversos. Esses últimos, segundo a lei, acarretam as sanções do art. 12,III ( perda da função, ressarcimento, suspensão dos direitos políticos ,etc.)”.

O membro do Ministério Público que venha a dar interpretação elástica aos termos da lei agirá, inevitavelmente, com expressiva possibilidade de prática de excesso, de desvio de finalidade e do injusto. Embora não haja nada de novo em tal entendimento, a verdade é que, cada vez mais comum, o ultrapassar dos limites da função fiscal da lei, para um mergulhar, e fundamente, na ilegalidade que deveria ser reprimida.

Em rápido registro no que respeita ao desvio de finalidade e ao uso oblíquo de poderes, é importante lembrar, em relação ao inciso I do art. 11: “para que se configure o disposto no inciso, basta que o ato inquinado vise a fim ilícito ou extrapole a esfera de competência do agente público”.

O essencial, pelo menos por ora, é deixar claro que, se o membro do Ministério Público pode ser sujeito ativo de conduta ímproba, a hipótese torna-se mais consistente quando examinado o art. 11 da lei.

O dever de fiscalizar a lei não pode ser confundido, dando vazão a personalismos na sua interpretação ou aplicação. Como função essencial à Justiça, o Ministério Público não pode permitir que, direta ou indiretamente, algum de seus membros se utilize do órgão para a prática de atos que ele tem a obrigação de fiscalizar, e de lutar pela responsabilização de seus autores, ainda que intra corporis. Não pode atuar consoante o partido político que esteja no poder.

Ao dispor sobre a improbidade administrativa na forma de agressão aos princípios da Administração Pública, a solidez da manifestação do legislador é tão expressiva que as espécies de improbidade administrativa ditadas pelo art. 11, todas presumidamente dolosas, permitem perceber que entre elas “se amolda não apenas a conduta comissiva, mas também o que é mais comum, a omissiva, ou seja, o incumprimento por parte do agente público, dotado de competência administrativa, do dever de buscar a persecução para as venalidades de que têm ciência em razão de suas funções. Tão ou mais censurável que afrontar uma norma é o silêncio sobre seu descumprimento, omissão que contribui para o esvaziamento dos princípios aludidos”.

Na esteira desse pensar, de modo induvidoso, está o Ministério Público sujeito a obedecer aos princípios do estado de direito, restando inafastável sua responsabilização, quando se apresentar dissonante em relação aos mesmos, seja por omissão ou ação que, de algum modo, contamine a ordem jurídica.

O art. 11 está eivado de imprecisões que dificultam o enquadramento objetivo do agente público na prática de improbidade, com o que, evidente, o aumento do risco de ser o mesmo indevidamente punido por práticas que não foram pensadas pelo legislador.

As condutas previstas, de modo aberto e impreciso, no art. 11 e seus incisos, enfrentam, além da dificuldade própria de dimensionar a verdadeira motivação, outros obstáculos, como é o caso da exigência de serem indevidos os atos previstos no inciso II.

Atenção especial merece a previsão do inciso III: “revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo”. O dispositivo, certamente um dos mais desatendidos por alguns agentes do Ministério Público, deve, por igual, servir de proteção ao consagrado direito constitucional à inviolabilidade, em especial “a inviolabilidade à intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas” (art.5º, X da Constituição Federal). Inaceitável, pois, sejam meras investigações do parquet ou até mesmo elementos processuais trazidos a público sem nenhum outro objetivo que não o de alimentar a vaidade do “fiscal da lei”, provocando danos irreparáveis ao atingido. E, lamentavelmente, os exemplos crescem de forma geométrica em nosso país. Por certo fere elementares deveres para com a Administração aquele que se valendo de suas atribuições (sem o que não possuiria as informações) torna-as públicas, independentemente de vir ou não a causar prejuízo na apuração dos atos de improbidade. É, por certo, traição e deve ser punido, com todo o rigor, vez que dupla a agressão: à Administração e ao cidadão investigado e, quem sabe, inocente. Além, é claro, de haver comprometido o interesse público.

A questão principal. do ponto de vista que está sendo examinado é que tais práticas estão destruindo a vida de pessoas honestas, afastando dos cargos eletivos os cidadãos de boa vontade e, acima de tudo, revelando forças, muitas vezes ocultas na produção de processos com evidente conteúdo político e politico-eleitoral. As recentes eleições são um bom material de exame em torno da afirmativa.

O dever de lealdade à Administração não permite ao agente público divulgar assuntos que, em decorrência de sua atividade, é guardião do sigilo. Não se trata, por certo, de nenhuma agressão ao princípio da publicidade. O de que efetivamente se trata é de não prejudicar a Administração, divulgando fatos reservados e cujo sigilo deve obrigatoriamente ser preservado. Aliás, tem sido entendimento doutrinário e jurisprudencial, que mesmo após deixar o serviço público, o agente permanece com a obrigação do sigilo. No mesmo entendimento, será improbidade negar publicidade a atos que exigem divulgação.

Do disposto nos incisos III e IV do art. 11, resulta claro que o agente público deverá ter o maior zelo para não confundir a necessidade do sigilo com a obrigação de publicidade própria aos atos oficiais, a publicidade com a fofoca, a lealdade com a omissão. O direito dos administrados de serem informados sobre o que ocorre na Administração Pública não pode ser tomado como justificativa para a irresponsável e, na maioria dos casos, dolosa, quebra da lealdade do sigilo.

Os princípios éticos e jurídicos que presidem a Administração Pública e cuja agressão não é tolerada pela Lei 8.429/92 avultam de importância quando se trata daquele que, como o Ministério Público, não é apenas agente da função administrativa, mas atua, fundamental e constitucionalmente, como seu fiscal. As distorções patrocinadas por qualquer agente do Ministério Público vêm, desde o início, impregnadas de um duplo ataque de improbidade: o do agente e o do fiscal.

*advogado e professor aposentado da Universidade Federal de Pelotas/RS

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1. Comentários à Constituição brasileira de 1988. 2ª ed. São Paulo, Saraiva, 1997, v. I, p.253.

2. PAZZAGLINI, ob. cit., p. 39/40

3. Improbidade Administrativa. 2ª ed., Porto Alegre. Ed. Síntese, 1998, p.114.

4. FERREIRA, Wolgran Junqueira. Princípio da Administração Pública. Baurú, Edipro, 1995, p. 139/140.

5. Home Page terra. com. br. 14/07/2001

6. Revista VEJA, edição n.º 1676, 22/11/2000, p. 40.

7. Revista VEJA, edição n.º 1703, 06/06/2001, p. 52

8. Jornal ZERO HORA, Porto Alegre/RS, 26/06/2001, p. 6

9. A Esfinge da Lei de Improbidade Administrativa. Home Page da Associação do Ministério Público do Rio de Janeiro, junho de 2001.

10. PROBIDADE ADMINISTRATIVA. 3ª ed., São Paulo, Malheiros Editores, 1998, p.60.

11. Ibidem. p.60.

12. PAZZAGLINI, ob.cit., p. 126.

13. PAZZAGLINI, ob.cit., p.51.

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