Como agilizar a Justiça?

“A morosidade, a ineficiência e o assoberbamento da Justiça podem ser resumidos em duas causas básicas: a) aproveitamento econômico-financeiro; b) gestão judicial inadequada (tecnológica, gerencial, e ideologicamente precária com raras exceções, meios materiais e humanos insuficientes)”.

A preocupação não é nova. Em 1975, no Diagnóstico sobre a Reforma do Poder Judiciário, o Ministro do Supremo Tribunal Rodrigues Alckmin (relator da Comissão) destacava que o retardamento dos processos e a ineficácia na execução dos julgados são velhas e generalizadas queixas. Rui Barbosa também já pregava aos moços que justiça atrasada não passava de injustiça qualificada e manifesta. E muito antes disto, em 1855, o pioneiro processualista pernambucano Paula Batista ensinava: “Brevidade, economia, remoção de
todos os meios maliciosos e supérfluos, tais são as condições que devem acompanhar o processo em toda a sua marcha”.

Discutem-se muito as causas da morosidade e da ineficácia da Justiça, mas pouca discussão desapaixonada e neutra, fincada apenas no interesse maior, que não é de segmentos sociais, políticos ou econômicos. Se bem analisado o assoberbamento do Judiciário entre nós (em todos os níveis) pode ser resumido em duas causas básicas: a) aproveitamento econômico-financeiro; b) gestão judicial inadequada (tecnológica, gerencial, e ideologicamente precária c/raras exceções, meios materiais e humanos insuficientes).

No primeiro caso, percebe-se o interesse econômico perpassando outros, mais ostensivos. É um aproveitamento, sobretudo de quem tem contra quem precisa lutar para ter, do Estado (precatórios, adiamentos via recursos que nada visam a não ser ganhar tempo, o que pode ser traduzido por dinheiro, diferença de juros e de ganhos financeiros nas diversas operações de investimento) e particulares (o pobre teme dever, sabe lucrar com cruzamento tempo x dívida), todos podem aproveitar dessa doença institucional: “sei que vou ter de pagar, de cumprir a sentença, mas vou aproveitar morosidade (muitos recursos quantitativa e
qualitativamente despropositados ou desvirtuados e a proverbial inapetência à agilidade) para diminuir a perda de dinheiro.

Ora, se assim é, a reforma do Judiciário pouco poderá fazer em prol do ideal de uma justiça acessível e ágil e, logo, justa. Se não enfrentar o mal com antídoto inteligente (cessar a causa eficiente do ganho só mesmo igualando as taxas financeiras do mercado às da Justiça, ou com desestímulo econômico do tipo multa suficiente adiantada como preparo recursal a ser devolvida em caso de êxito recursal). Com efeito, quando o aproveitamento da morosidade judicial ultrapassa a estratégia processual é porque há algo de muito ruim no aparato judicial. E se o Estado disto também se prevalece, aí então o mal é bem mais grave.

Porém, é no processo de execução que podemos bem visualizar toda a possibilidade de desgastes psicossociais no mister judicial.

O ideal na execução é a equivalência não só econômica, mas também jurídica, entre o adimplemento e a própria exe­cução, vista como atividade do Estado-juiz substitutiva da vontade do obrigado. De sorte que na falência dos meios morais e sociojurídicos conducentes à pronta execução espontânea das obrigações em geral (entre nós, no entanto, estes meios parecem mais voltados à inexecução até in judicium) é que desponta a execução processual, de caráter secundário (aliás, como toda jurisdição), de último instrumento lícito para forçar a satisfação do direito material, ou seja, tensão entre força estatal e força individual visando a
expropriação patrimonial contra o devedor resistente.

Esta derradeira e agressiva (mais para os fracos que para os fortes) fase da execução das obrigações, a execução forçada, daí por que processual (substitutiva da força individual, tendência natural, mas socialmente vedada) é que vem merecendo maior reflexão dos processualistas, notadamente nas obrigações caracterizadas por desembolso financeiro, máxime quando o obrigado é um hipersuficiente, um não-assalariado, um não-consumidor (empresas incorporadoras, construtoras, bancárias…). Neste quadro, é habitual, quase cultura forense, a inversão de valores e objetivo do processo de execução, que deixa de ser o remédio derradeiro para ser o melhor e mais recomendado tratamento daquelas obrigações de devolver quantia certa, de ressarcir, de pagar… A advertência de Nietzche: “A mais
comum forma de estupidez humana é esquecer o que a gente está tentando fazer”, é bem apropriada à temática em foco. Não podemos, com efeito, nos esquecer de que o ideal, que o salutar, é o cumprimento espontâneo, voluntário das obrigações, porque mais rápido e menos violento. Este distanciamento dos objetivos aliado ao excesso de trabalho repetitivo que gera o embotamento mental, funcional e logo à indolência operacional, é sempre bem aproveitado pelo devedor, com ou sem o pálio de teorias pseudojurídicas, é “um lento exaurimento da consciência, que a torna aquiescente e resignada: uma crescente preguiça moral”, como
diagnostica Cappelletti.

A satisfação forçada das obrigações deve ser desestimulada, por todos os meios e por várias razões (desafogo da Justiça,…). Não se podendo evitar a demanda executiva, mal menor será reduzir-lhe a duração, até porque a cognição que se impunha já é matéria passada, isto é tanto mais verdade (e longamente depurada) em sede de execução de sentença. Se houver meios e modos de se incentivar judicialmente a vontade do obrigado para conduzi-lo à adimplência voluntária (ainda que compelida), isto será muito mais coerente com a liberdade volitiva e respectiva responsabilidade que deve imperar nos sistemas de Direito contemporâneos.

Disto são bons exemplos: a astreinte do Direito francês (cujo amplo espectro foi quase anulado entre nós) e as severas sanções do Direito inglês (contempt of court), tudo visando poupar ao credor (e ao Judiciário) as delongas e os desgastes com eventual ação executiva do que já foi julgado.

Vale dizer, já que a execução forçada tem mais atrativos (com ela ganha-se tempo e dinheiro, e isto até às vésperas da longínqua expropriação de bens) que a espontânea (isto porque esquecemos dos nossos objetivos primordiais), deve-se, ao menos, evitar a todo custo a situação-limite e pouco nobre para a humanidade da substituição da vontade individual pela estatal, culminando com a invasão, manu militari, do patrimônio do devedor; tal agravo não deveria extrapolar sua necessária natureza de exceção (só admissível dada a virtual imperfeição do homem) à regra do cumprimento voluntário, espontâneo (o melhor dos
ideais) ou induzido (o ideal possível), das obrigações e, a fortiori, as judiciais.

Toda sentença, aliás, deveria conter dispositivo mais eficaz (que a mera boa vontade) de desencorajamento de atos atentatórios à sua própria dignidade, que precisa ser preservada a qualquer preço, eis que é ponto central do travejamento político-social do Estado de Direito. Ora, se o particular, mediante sua autonomia privada, pode impor cláusulas penais, amiúde excessivamente onerosas, para pressionar a vontade do obrigado, por que o Estado-juiz também e com maior prudência não poderia impor contra-incentivos (para prevenir a violência da expropriação de bens, que deveria ser o último estágio da execução) àqueles
atos atentatórios a tudo e a todos. Tal dispositivo desencorajador da perversão executiva seria aplicado de logo pela sentença, após o longo processo legal, repleto de garantias e seguranças que muitas vezes são habilmente manejadas por advogados (parciais que são) e se transformam, sob às vistas de boa parte dos magistrados (imparciais que são), em vantajosos duelos que só protelam a obrigação (e a exação judicial), sobretudo as pecuniárias.

A desconsideração da personalidade jurídica de empresas (Direito – instrumento de progresso do homem, jamais de abuso e fraude) carece também de melhor acolhida nos espíritos de nossos legisladores e julgadores, tudo segundo um critério de salvaguarda da justa composição dos conflitos (máxime os entre hiper x hipossuficientes) e prestigiamento do papel social do Judiciário.

É urgente, pois, que se dotem as sentenças de contra-incentivos a toda esta vexatória situação processual, em que o obrigado-sucumbente tripudia sobre a sentença e, conseqüentemente, sobre o favorecido por ela. São recursos, embargos, inviabilidade prática de alcançar e/ou se pracear bens do devedor e para agravar deturpações de preceitos legais. São, enfim, publicações, petições, termos de conclusão e decisões que demandam meses, e tudo movido por razões inconfessáveis (só formalmente, mas de todos conhecidas) transvestidas de razões “técnicas” (se tanto) quase sempre já reiteradamente vencidas em todas as instâncias.

O duplo grau de jurisdição, virtual imposição dada à falibilidade do gênero humano, é um direito do jurisdicionado, porém jamais uma obrigatoriedade (é, por assim dizer, um recurso voluntário e não necessário); todavia, entre nós, é como se fosse uma regra obrigatória (quase sempre estimulada pelo sistema) ainda que improvável o êxito, ou mesmo certo o insucesso da apelação (do agravo no recurso especial…). É preciso se repensar a cultura do recurso assumidamente protelatório ou por “dever (?!) de ofício” (aqueles tolos recursos do Poder Público). E isto ainda ocorre porque há incentivos econômicos (gratuidade ou
insignificância das custas, pelo menos p/os mais abonados) e nenhum desestímulo ao que pretenda desvirtuar o duplo grau de jurisdição, convertendo-o em mera dilação de justas, devidas e sentenciadas obrigações. Por que não percentuais crescentes tendo por referencial básico a maior taxa de remuneração do mercado financeiro ou algo análogo? Acréscimo financeiro que reverteria ao credor-vitorioso e, se porventura bem-sucedido o recurso, tornar-se-ia ineficaz, eis que desestímulo à dilação infundada. Algo, enfim, precisa ser feito para acabar ou reduzir os despropósitos, e pior, a perversão social da execução judicial, que, aliada ao fato de um juiz apático ou encharcado de “teorias” viabilizadoras de todo este quadro patético, é o quanto basta para o descrédito da Justiça e para ultrajar o
jurisdicionado “vencedor” (?!) da demanda.

É comum nas execuções de sentenças (por quantia certa, e pior se for incerta) contra empresas não se acharem bens disponíveis/viáveis para penhora (até a sede da executada é da propriedade de outra empresa, do grupo ou não, e os meios para se superarem tais complicações procedimentais são, ilogicamente, sempre mais demorados e tortuosos para o exeqüente). Quando se lograr penhorar um bem, a praça é impiedosa contra o credor (carro p.ex.: pagará multas, impostos, etc. e não raro após anos esta garantia nada garante, ou só parte do crédito). Para assegurar o juízo, as empresas executadas amiúde costumam ter um mesmo bem para todas estas ocasiões (há um caso emblemático: um caminhão só existente no documento e sempre oferecido como “segurança” (?!) do juízo em embargo protelatório da devolução ao consumidor de seus salários, poupados para aplicar em imóvel
residencial). Nomeiam-se bens cuja titularidade provoca discussões, ou bens de difícil conversão em dinheiro, tudo com o fito de protelação. Aliás, a tal “segurança do juízo” (art. 737, CPC) é norma cujo peso é irrelevante para o hipersuficiente da relação processual, contudo altamente limitativa para muitos hipossuficientes, e faz-nos lembrar de lei tão criticada por Anatole France: “Fica proibido dormir sob as pontes de Paris”. Tratar desiguais como iguais é a suma injustiça in concreto! Quem conhece a realidade das defensorias e dos NPJs bem sabe como são freqüentes as injustiças decorrentes do rigor na aplicação das
leis e, quem convive com a advocacia envolvendo empresas ou ricos, não desconhece a flexibilização desse mesmo rigor. Essa dupla militância é enriquecedora…

Por que será que raramente se vê, nestes casos, nomeação de bens conforme a ordem legal (art. 655, CPC) imposta ao devedor (porém sem qualquer sanção eficaz, eis que a comutação no “direito” de nomear mais protela/onera o credor)? Prefere-se nomear bens imóveis cuja conversão em dinheiro gera delongas.

Nestes casos, sempre às vésperas da praça vem o depósito da condenação (que para sua atualização ensejará novas demandas “calculatórias”, como almeja o devedor) se isto for do planejamento econômico do executado.

Quanto à outra causa da morosidade da Justiça brasileira (estadual e federal, em todos os graus de jurisdição), a gerencial, temos que a gestão da máquina judicial ainda é pouco profissional e pontuada por clientelismo e nepotismo (até concursado para porteiro é requisitado para gabinetes) é preciso uma nova e moderna cultura gerencial. Hospitais e escolas já dispõem de administradores profissionais de nível superior. Ora, magistrados não devem perder tempo com a gestão de meios.

É patente a deficiência de gerenciamento profissional da Justiça, notadamente em recursos humanos, materiais e financeiros. Conceitos tais como qualidade total, avaliação externa e interna, preocupação com o alvo do serviço público (o usuário-consumidor), pesquisa, modernização tecnológica e adequações de rotinas permanentes…, parecem distantes ficções científicas em nossas organizações judiciárias. O problema não se resume à reforma de leis e não há de melhorar o suficiente somente com o aumento de verbas. Não. Trata-se, isso sim, de reforma sistêmica, superação de certas concepções.

A gerência, aliás, sabidamente sempre foi, culturalmente, o ponto débil de nossas Justiças. A irritação e o embotamento em face da rotina burocrática, mas importante, do serviço judicial, geram a indolência, a apatia funcional. Afora a concepção processual infensa à agilidade e aos objetivos primários do Direito e da Justiça, a liderança gerencial sempre foi fator de ineficiência de nossa Justiça. Não raro, vemos, ainda, nos balcões da Justiça, aqui e noutros Estados, fortes e patéticas manifestações de inconsciência quanto ao fim do cargo público: eu sou o chefe e ostento tal importância demonstrando mais poder que eficiência, mas servindo-me do cargo (mais meio de sustento que de servir), que bem servindo ao público.

Primeiro cuido de tudo na hora do expediente, só depois, então, atendo aos clientes que, de pé no balcão, ficam a atestar o quão inútil é o chefe, o líder. E se algum cliente, na qualidade cívica de patrão-contribuinte, reclamar, tudo piora para ele, doutor ou não, eis que escravo do monopólio deste serviço. Com efeito, ele é o dono do destino dos que precisam dos seus deveres funcionais! Lustra seu ego de burocrata fazer-se esperar, demorar, causa-lhe prazer burocrático… É claro que há boas exceções neste quadro, mas o desafio é exatamente transformá-las em regra.

É raro o chefe dar seu construtivo exemplo de bom atendimento ao público, liderando o bom desempenho de todos os seus liderados; aliás, parece que na Justiça o usuário é o último dos objetivos. Fenômeno raro é a decisão inteligente e salutar de, enquanto houver balcão para atender, ninguém faz outra coisa ou serviço).

Reverter a perversa situação do cliente ter de sorrir e agradar em troca do bom atendimento, é pressuposto de uma nova consciência gerencial na Justiça, já para os veteranos, mas, sobretudo, para os novos servidores.

A falta de pessoal (aliás, parece haver mais seguranças, atividade-meio, que atendentes da atividade-fim), de material, a má remuneração, etc., explicam muitas deficiências no atendimento do público-alvo, mas a falta de liderança eficiente e consciente da meta primeira do serviço é, por certo, a maior causa da ineficiência do serviço público judicial. Uma campanha com cartazes deveria sensibilizar a todos para esta vocação, espontânea ou cobrada pelo usuário-consumidor.

Todavia, sequer placas informativas (só para citar um exemplo dentre muitos) aos usuários nos elevadores, escadas e corredores foram pensadas, o que atesta a inapetência administrativa: o público-cliente (representado por advogado ou não) não é a preocupação básica dos gerentes e diretores destes serviços. Sem uma gerência (de cima para baixo) profissional e consciente dos alvos, dos clientes, como na concorrência empresarial, pouco adiantará qualquer reforma no Judiciário e nas leis processuais.

Os símbolos desta nova concepção gerencial deveria ser: o banimento da palavra não do vocabulário do serventuário da Justiça de qualquer escalão e a troca dos muitos cartazes de avisos negativos (restrições, negações, complicações…) para os usuários por avisos positivos que despertem o zelo com o cliente, razão de ser de tudo, inclusive do Poder e do salário de todos.

Outras medidas poderiam melhorar ainda mais esse quadro de morosidade e desgastes na essencial (Estado democrático de Direito) imagem da Justiça (justiça tem haver com segurança e estabilidade, valores jurídicos e nisso gasta-se tempo, mas necessário), além da total extinção do processo de execução, a adoção de súmula impeditiva de recursos no plano federal (na AGU isso já há, mas timidamente) e no plano estadual. Redução ou racionalização da quantidade de recursos.

* Luiz Otavio de O. Amaral
Advogado militante e professor na Faculdade de Direito da Universidade Católica de Brasília, ex-Diretor da Fac. de Direito da UDF

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