Coisa julgada e inconstitucionalidade – a MP 2.180/2001

Ao editar a última versão da MP 2.180/01, o presidente da República fez introduzir o § 51 ao art. 884 da CLT, com a seguinte redação: ‘‘Considera-se inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal’’.

Uma primeira análise desse dispositivo parece conduzir à ruptura do princípio do devido processo legal, com o conseqüente comprometimento da segurança jurídica, que representam, respectivamente, o pilar e o objetivo maior de todo ordenamento jurídico. De fato, imaginar-se que o título executivo judicial possa ser declarado inexigível em sede de embargos, após o percurso sempre exaustivo da etapa cognitiva, sugere a subversão da lógica sistêmica que informa o procedimento, com o inaceitável esvaziamento do instituto da coisa julgada, como já está sendo anunciado por alguns doutrinadores.

Essa conclusão, entretanto, não prevalece se forem bem compreendidos os valores e objetivos que a inovação em debate pretendeu tutelar.

Evidentemente, não há como negar que toda a construção doutrinária acerca da imutabilidade da coisa julgada e do caráter excepcional das hipóteses de sua rescisão estão fundadas no propósito maior de conferir equilíbrio e estabilidade às relações jurídicas interpessoais. Como pondera Canotilho, lembrado por Estevão Mallet, ‘‘o princípio da intangibildade do caso julgado é ele próprio um princípio densificador dos princípios da confiança e da segurança inerentes ao Estado de Direito’’.(1)

No confronto entre a segurança intersubjetiva gerada pela coisa julgada e a supremacia da ordem constitucional vigente, cujo sentido incumbe ao Supremo Tribunal Federal positivar em última instância, a opção dos tribunais brasileiros tem sido clara em prestigiar a segunda e última das opções referidas.

Afinal, como preconiza o professor Gilmar Ferreira Mendes, ‘‘o dogma da nulidade da lei inconstitucional pertence à tradição do Direito brasileiro. A teoria da nulidade tem sido sustentada por praticamente todos os nossos importantes constitucionalistas. Fundada na antiga doutrina americana, segundo a qual The inconstitucional statute is not law at all, significativa parcela da doutrina brasileira posicionou-se em favor da equiparação entre inconstitucionalidade e nulidade. Afirmava-se, em favor dessa tese, que o reconhecimento de qualquer efeito a uma lei inconstitucional importaria na suspensão provisória ou parcial da Constituição’’.(2)

E continua o mesmo autor: ‘‘A lei declarada inconstitucional é considerada, independentemente de qualquer outro ato, nula ipso jure e ex tunc. A disposição declarada inconstitucional no controle abstrato de normas não mais pode ser aplicada, seja no âmbito do comércio jurídico privado, seja na esfera estatal. Consoante essa orientação, admite-se que todos os atos praticados com base na lei inconstitucional estão igualmente eivados de iliceidade. Essa orientação, que já era dominante antes da adoção do controle abstrato de normas no ordenamento jurídico brasileiro, adquiriu, posteriormente, quase o significado de uma verdade axiomática’’.(3)

Os atos ilegais ou inconstitucionais praticados pelo Poder Público, entre os quais se inserem aqueles de natureza normativa abstrata e, mais especificamente, os jurisdicionais, estão submetidos a modelos distintos de saneamento.

Enquanto os atos administrativos podem ser objeto de revisão administrativa a qualquer tempo (Súmula 473/STF) ou judicial (CF, art. 51, XXXV), os atos legislativos podem ser revogados ou alterados pelo Congresso Nacional ou ainda declarados nulos pelo Supremo Tribunal Federal ou pelos juízes e tribunais brasileiros — nesse último caso incidentalmente —, cada qual no exercício próprio de suas atribuições e competências constitucionais.

Mas os atos tipicamente jurisdicionais apenas podem ser rescindidos em hipóteses especialíssimas, que compõem o elenco do art. 485 do CPC. Entre essas hipóteses figura a da violação à literal disposição de lei, cuja arguição supõe a prévia existência de debate na instância cognitiva originária (En. 298/TST), ressalvando-se essa exigência apenas quando o debate revolver matéria constitucional, em relação à qual não pode haver dúvida ou perplexidade social acerca de seu exato significado (STF RE 101.114/SP).

No que concerne aos julgados proferidos com base em diplomas legais declarados inconstitucionais ou em conformidade com interpretações não respaldadas pelo Supremo Tribunal Federal, a jurisprudência não tem claudicado em declarar-lhes a nulidade, por considerar que ‘‘Preceito da Carta Magna ou é bem aplicado ou tem sua literalidade vulnerada, jamais pode ser razoavelmente interpretado’’.(4)

Com base nessa compreensão que se pode afirmar hegemônica, múltiplas ações rescisórias têm obtido sucesso nos tribunais brasileiros, com a desconstituição de sentenças passadas em julgado, envolvendo as denominadas questões massivas com raiz constitucional.

Em relação a essas questões massivas, as ponderações de Eduardo Gabriel Saad merecem destaque: ‘‘O fenômeno que se convencionou qualificar de massificação do direito vem, de fato, exigindo profunda revisão da coisa julgada a fim de que seja dado ao Estado desempenhar a contento sua função jurisdicional, isto é, a distribuição da justiça que pôs termo à justiça pelas próprias mãos imperante, durante séculos, na sociedade primitiva. … O processo de adaptação a novas relações intersubjetivas dos dois dogmas do instituto da coisa julgada — o formal e o material — é inevitável e está em curso. Provam esse fato a Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717 de 29/6/65), A Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347 de 24/7/85) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11/9/90), prevendo a coisa julgada erga omnes ou ultra partes.(5)

Como foi lembrado por Eduardo Gabriel Saad, os conceitos de limites objetivos e subjetivos da coisa julgada estão sendo submetidos a revisão, como, por exemplo, no emblemático caso do Código de Defesa do Consumidor, no qual ‘‘… o legislador se mostrou mais ousado no seu esforço de compatibilizar a coisa julgada com a tutela de interesses na sua dimensão coletiva. Não só se reportou aos interesses difusos e coletivos, como também aos direitos individuais homogêneos, que vêm a ser aqueles cujos titulares são identificados, mas tratados como coletivos, no âmbito processual. A respectiva sentença faz coisa julgada erga omnes, mas secundum eventum litis. A procedência da respectiva ação favorece a todos aqueles representados pelo órgãos legalmente legitimado. Nunca, porém, pode prejudicá-los, uma vez que a rejeição da ação coletiva por falta ou insuficiência de prova não impedirá o ajuizamento de ação individual por um dos que se considerem prejudicados’’ (ob. cit.).

A discussão em torno da segurança jurídica assume importância singular quando em discussão regras de matiz constitucional, cujos sentido e alcance devem ser fixados, em caráter definitivo, pelo Supremo Tribunal Federal. Afinal, não se compadece com a índole do Estado Democrático de Direito, em que prepondera o princípio fundamental da isonomia dos cidadãos em face da lei, a construção de situações jurídicas visceralmente contraditórias, quando são idênticas as situações jurídicas confrontadas.

Afinal, representa a Constituição o vértice axiológico da ordem jurídica nacional, não sendo tolerável que o sentido de suas disposições possa variar ao sabor dos atores envolvidos na resolução das disputas concretas.

A ilogicidade do sistema que permite a consagração dessas situações é evidente, legitimando expressões e críticas censórias, como Aloteria judiciária@ e outras de igual gênero.

Relembre-se que os ‘‘Atos inconstitucionais são … nulos e destituídos, em conseqüência, de qualquer carga de eficácia jurídica. A declaração de inconstitucionalidade de uma lei alcança, inclusive, os atos pretéritos com base nela praticados, eis que o reconhecimento desse supremo vício jurídico, que inquina de total nulidade os atos emanados do Poder Público, desampara as situações constituídas sob a sua égide e inibe — ante a sua inaptidão para produzir efeitos jurídicos válidos — a possibilidade de invocação de qualquer direito’’.(6)

Todo ordenamento jurídico objetiva, fundamentalmente, conferir estabilidade e harmonia às relações sociais, permitindo que os cidadãos possam pautar suas condutas de acordo com a exata medida de suas regras, recebendo do Estado, quando necessário, sem distinções ou privilégios de qualquer espécie, o suporte necessário à salvaguarda patrimonial ameaçada ou lesada.

Nesse sentido, se é certo que os julgamentos proferidos no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal ostentam eficácia erga omnes, inclusive alcançando efeito vinculante no caso das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (EC nº 03/93; art. 102, § 21, da CF), não menos correto, dentro da perspectiva ideal de unidade e coerência do sistema, que os julgamentos contrários proferidos pelos demais órgãos do Poder Judiciário sejam retificados pela via recursal ordinária, rescindidos na senda rescisória ou, em última análise, declarados inexigíveis em sede de embargos à execução ou de exceção de pré-executividade.

O dogma da ‘‘intocabilidade’’ da coisa julgada deve ser compreendido na perspectiva da unidade e coerência do ordenamento jurídico, da segurança social e da isonomia normativa assegurada aos cidadãos.

Ora, se se admite na etapa da execução a argüição de vícios que inibem a eficácia do título judicial a qualquer tempo, mediante a apresentação da ‘‘oposição pré-processual’’ ou, quando menos, em sede de embargos à execução (CPC, arts. 585, II, 586 c/c 618, I, 572, 587, 741, I), por muito maior razão deve-se admitir que o julgador promova, quando em debate a defesa da própria Constituição, o reexame da legitimidade material da manifestação judicial, nos moldes do art. 884, § 51, da CLT.

Se determinado julgamento proferido pelos órgãos do Poder Judiciário consagra situação francamente inconstitucional, nada mais razoável do que a subtração de seus efeitos, na forma proposta no § 51 do art. 884 da CLT.

A história do controle de constitucionalidade introduzido no Brasil revela que a adoção do sistema misto, segundo o qual todos os órgãos do Poder Judiciário estão habilitados ao exame incidental da constitucionalidade dos diplomas legais e atos normativos relevantes para a solução dos conflitos, teve por objetivo sanear o excesso de questões conduzidas ao Supremo Tribunal Federal, cuja atuação passou a assumir, nos dissídios intersubjetivos concretos, caráter meramente revisor, quando atendidos os pressupostos recursais genéricos e específicos previstos em lei.

Mas a eficácia erga omnes dos julgamentos proferidos no controle concentrado de constitucionalidade persistiu como exigência lógica e natural de coerência sistêmica, igualmente permanecendo intacta a conveniência política e social de que os demais juízos e tribunais brasileiros se curvem às decisões constitucionais proferidas no campo do controle difuso pelo Supremo Tribunal Federal.

Confirmando esse ideal de lógica e coerência, os tribunais brasileiros têm decidido, de forma reiterada, que os julgamentos passados em julgado, quando envolvem debates constitucionais em sentidos diversos daqueles preconizados pelo Supremo Tribunal Federal, e que não tenham ascendido pela via difusa à cognição da Excelsa Corte, podem ser objeto de saneamento por meio de ação rescisória, ajuizável com suporte no art. 485, V, do CPC.

Nesse sentido, a privação dos efeitos executivos de julgado contrário ao que tiver sido decidido pelo Supremo Tribunal Federal, quando envolvida matéria constitucional, nos moldes do art. 884, § 51, da CLT, não denota ofensa à regra do art. 51, XXXVI, da CF, até porque esse último dispositivo ostenta inegável conteúdo intertemporal, ao dispor que ‘‘a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada’’.

Sustentar a imolabilidade absoluta da coisa julgada a partir da regra do art. 51, XXXVI, da CF, equivale a defender a própria ineficácia das regras legais que disciplinam a ação rescisória, que não teriam sido recepcionadas com o advento da Carta Magna de 1988, compreensão que conduziria a uma contradição invencível, pois o mecanismo rescisório encontra previsão na própria Constituição, quando definidas as competências do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça (arts. 102, I, ‘‘j‘‘, e 105, I, ‘‘e‘‘, da CF).

Ainda que alcançando efeito rescisório indireto, a inovação inscrita no art. 884, § 51, da CLT, expõe a tentativa do legislador provisório de conferir maior lógica e harmonia ao modelo que estrutura o Poder Judiciário brasileiro, realçando a sua natureza sistêmica e enfatizando a necessidade de prevalência dos pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional, em proveito da segurança jurídica e da estabilidade das relações sociais.

Em conclusão, desde que apenas aplicável às coisas julgadas formadas sob a égide de sua eficácia, a regra do art. 884, § 51, da CLT, com a redação dada pela MP nº 2.180/01, não configura qualquer afronta ao art. 51, XXXVI, da CF.

Notas:
1. In ‘‘Dupla Inconstitucionalidade do § 51, do art. 884, da CLT’’ Revista LTr 66-02/151.
2. In ‘‘Jurisdição Constitucional’’ Saraiva, 1996, p. 249/250.
3. ob. cit., p. 253.
4. TST, RO-AR-68.380/93 – Ac. SDI n1 267/94 – Relator Ministro Guimarães Falcão.
5. In Suplemento Trabalhista – Ltr 112/00, ‘‘Temas Trabalhistas (14) – Da Coisa Julgada’’.
6. STF, ADIQO-652/MA, Relator Min. CELSO DE MELLO, DJU de 2/4/93, p. 5.65.

* Douglas Alencar Rodrigues
Juiz titular da 17º Vara do Trabalho de Brasília/DF

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