Certas decisões não servem para garantir os direitos autorais

Aroldo Joaquim Camillo Filho*

Dias atrás constava do obituário de um grande jornal a seguinte informação – Fulana de Tal: Ontem. Tal “notícia” dá a impressão de tratar-se de indigente, sem parentes nem amigos, sem velório, sem missa e sem enterro, nada tinha e se tivesse, não teria a quem deixar. Nada mais triste. Quanto e o que valeu essa vida, direito fundamental de todo o ser humano, esculpido na Constituição Federal e em mais de uma dezena de normas planetárias?

Tristeza igual deveriam nos causar certas decisões judiciais que, se não por ficção jurídica, mas pela mais absoluta falta de bom senso e proporcionalidade, estão por aí disseminadas, sendo, muitas vezes, utilizadas como ameaça em detrimento daqueles que, para não terem contra si decisões deste jaez, mesmo entendendo não terem praticado ilícito algum, a mera possibilidade de ocorrer, faz com que tais pessoas, normalmente jurídicas, submetam-se ao arbítrio do titular do pretenso direito absurdo e sepultado está o direito de defesa.

Exemplo clássico são as conhecidas sentenças condenatórias por violação a direito autoral, amplamente divulgadas como punição exemplar aos bandoleiros da pirataria digital, encontráveis atrás de barracas na rua São Bento e outras cercanias. Em relação ao direito autoral sobre software, essas decisões têm, numa ilícita inversão de valores, condenado os réus, em geral empresas nacionais de pequeno porte, ao pagamento de indenização por perdas e danos, já pré-liquidado nas sentenças em três mil vezes o valor unitário do software original.

Pois bem, tais pré-liquidações, fundamentadas – por analogia e não por disposição expressa – na edição não autorizada de livros, que assim o prevê apenas no caso de não ser possível a apuração do número de livros ilegalmente editados, equivalem a uma pena de morte para as empresas que, na imensa maioria dos casos, sequer patrimônio suficiente para seu próprio giro possuem e estão fadadas à falência no momento da execução do julgado.

O cálculo é simples. O Windows, de uso corrente e quase um gênero de primeira necessidade, custa em torno R$ 500, num país onde o salário mínimo é menos da metade disso. Três mil vezes o valor unitário desse programa equivale à modesta quantia de R$ 1,5 milhão. Seguramente, mais de 90% das empresas brasileiras não teriam condições de arcar com esse valor, apenas por uma cópia. Se outras houver, a proporção segue para cada uma, que sequer necessita estar em uso, nem em comercialização. Basta não ter sido regularmente adquirida.

Há, aí, outra questão a ser entendida. A lei do software entende como cópia não autorizada, dentre outras, aquela feita do original adquirido, conhecida como backup, se houver outra instalada no disco rígido do microcomputador. Em outras palavras, se o sistema operacional Windows está instalado, a cópia de segurança deve ser o próprio original adquirido, não podendo ser feita outra, nem para deixá-la inerte, num cofre, por mera cautela. Como se o fabricante substituísse o original danificado imediatamente ao ser solicitado.

Por outro lado, é manifesto que essa absurda indenização ultrapassa descaradamente o real dano sofrido. E dano não é o preço de venda da cópia, mas o lucro que o titular do direito deixa de auferir. Nem se somado a eventual dano moral, que aqui em nosso país gira em torno de, no máximo, 500 salários mínimos, equivalentes a R$ 100 mil, para uma vida humana, ceifada por um ato ilícito.

O Direito Autoral deve ser protegido e, quando violado, a violação combatida, assim como qualquer ato ilícito. As empresas de tecnologia investem fortunas no desenvolvimento dessas ferramentas e, no capitalismo, tal investimento é componente do custo do produto, capilarizado em cada cópia vendida, em geral milhões. Os infratores, por sua vez, devem ser punidos pela infração cometida, se cometida, pagando o prejuízo causado acrescido da devida e necessária reprimenda, que, nesse caso, deve ser no bolso. Porém, tudo tem limite e o limite aqui é a própria existência.

O absurdo é tamanho que se estivesse o senhor Bill Gates dirigindo seu carro em São Paulo, ocasião em que, por acidente, atropelasse um pobre coitado que morresse, seria condenado em valor equivalente ao dano praticado, incluindo o moral, sendo que este último dificilmente ultrapassaria os já mencionados R$ 100 mil.

Se, por outro lado, o pobre infeliz carregasse no bolso uma cópia “não autorizada” de seu Windows original, comprado com o suor de seu trabalho, para guardá-la em segurança no local distinto de onde se encontra programa adquirido, pasmem, o morto já estaria devendo R$ 1,4 milhão ao senhor Gates. De se notar que a cópia foi feita para segurança, dado que aquela em uso foi regularmente adquirida.

Duas conclusões, no mínimo, ululam: a vida humana no Brasil vale menos que uma cópia do Windows; é mais barato matar o Bill Gates. Verdadeiro e inaceitável absurdo.

Essas decisões, ao contrário da intenção do legislador, não servem para garantir direito autoral de ninguém. Servem, sim, para disseminar a delação injusta, a extorsão legal e a paúra. Verdadeira fogueira medieval às bruxas. E o bom senso? Morreu ontem, está no obituário, indigente, sem parentes nem amigos, sem velório, sem missa e sem enterro, nada tinha e se tivesse, não teria a quem deixar. Nada mais triste.

Aroldo Joaquim Camillo Filho é membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP

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