BIOÉTICA E BIODIREITO

Kézia Milka Lyra de Oliveira*

A evolução da medicina trouxe à tona inovações na área da reprodução humana as quais vêm sendo alvo de inúmeras controvérsias e discussões que dividem, como há muito não se via, médicos, pacientes e juristas em todo o mundo.
A dificuldade de procriação, encontrada por muitos casais, fez com que cientistas desenvolvessem métodos conceptivos que, não obstante, em grande parte eficazes, geram discórdias e chegam a ser, para alguns mais fanáticos, uma verdadeira aberração, capazes de contrariar todos os princípios e valores de uma sociedade eminentemente conservadora e arraigada em conceitos cristãos.
O tema vem amadurecendo cotidianamente, mas está longe de ver delimitadas suas fronteiras.
A família, embora fragilizada diante de todos os percalços incutidos pela sociedade contemporânea, continua a ser, em seu contexto e papel social, a célula-mater deste universo embrutecido e marcado pelo afastamento dos entes que o formam.
Aos olhos da humanidade, a necessidade de constituir uma família torna-se indispensável aos que anseiam uma posição de “destaque e respeito” dentro do meio social em que se inserem. Desta maneira, aqueles que porventura não atingem este objetivo naturalmente, procuram valer-se de outros meios para consegui-lo. E em função destes, a medicina vem incentivando a pesquisa e alcançando descobertas inimagináveis até então.
A fecundação artificial é uma delas. Surgiu na década de 80 com os bebês de proveta, com as barrigas de aluguel e todas as ramificações possíveis destes métodos, se assim podemos chamar. Todas as notícias referentes ao assunto causaram grande impacto. De um lado os que contestam veementemente tais atos e de outro, homens e mulheres esperançosos na certeza de verem seus sonhos de perpetuação idealizados. O que se discute nos processos de inseminação artificial é a validade deste ato e os direitos relativos a cada personagem deste processo. Até onde poderá a medicina chegar em suas conquistas? O que leva homens e mulheres a se submeterem a estes tipos de experiências científicas? Qual a importância e necessidade de formulação de normas regulamentadoras deste tema?
Conceituar e disciplinar estas questões, fica a cargo da Bioética, do Direito e principalmente da própria sociedade, posto que esta será diretamente atingida e é a esta que se destinam as considerações e determinações legais que virão a regular a matéria de que aqui tratamos. Todavia, apesar do pouco conhecimento sobre as contradições e incertezas de que se revestem este assunto, permito-me fazer algumas considerações pessoais.
A Constituição Federal do Brasil estabelece, em seu capítulo referente aos Direitos e Garantias Fundamentais, que a vida é um bem indisponível, imprescritível, insuscetível de alienação. É o bem maior que o Estado deverá incessantemente tutelar. Ninguém poderá dela dispor. A tutela jurisdicional também alcança a integridade física do ser humano e muito se questiona sobre a faculdade que possui o indivíduo de doar seus membros ou órgãos do corpo, faculdade esta assegurada por lei. Mas, o que dizer sobre as doações de óvulos e espermatozóides? Será este um procedimento que fere o texto constitucional? A lei estabelece que ao homem é lícita a doação de órgãos, tecidos ou partes do corpo para fins de transplante (art. 199, parágrafo 4º da CF e Lei 9434/97 regulamentada pelo Decreto 2268/97), no entanto não dispõe acerca da doação de espermatozóides ou óvulos. Daí então, há que se indagar se o objeto deste contrato firmado nas Clínicas Particulares, especializadas neste tipo de procedimento, é legal e não agride o direito indisponível à vida. Se se entende que esta doação é perfeitamente possível, posto que a legislação brasileira só admite que há vida quando o óvulo fecundado passa à condição de feto, não havendo qualquer disparidade quanto ao texto legal, é mister ressaltar que a legislação referente a doações reza ainda que estas deverão ser gratuitas, e o que se tem visto é justamente o contrário. A realidade tem mostrado que poucos são os que têm acesso a estes métodos, em virtude dos altos custos do tratamento, fazendo com que esta doação perca as características próprias deste instituto, para assumir a posição de contrato oneroso estabelecido entre as partes, realizando, assim, uma verdadeira comercialização.
Na seara do Direito Civil, partindo do conceito e dos efeitos do contrato, pode-se destacar que a obrigação nascida entre os contratantes requer a observância dos requisitos dispostos no art. 81 do Código Civil Brasileiro, eis que por ser um ato jurídico deverá revestir-se de seus pressupostos legais. O Direito Brasileiro acolhe o princípio do pacta sunt servanda, ou seja, os pactos hão de ser cumpridos. No entanto, para a escorreita aplicação deste no caso que ora se analisa, voltamo-nos mais uma vez à questão do objeto constitutivo deste negócio jurídico, que deverá ser lícito, e consoante os princípios éticos e morais.
Em periódico distribuído à classe médica pelo Conselho Federal de Medicina, deparo-me com as declarações da filósofa portuguesa Maria do Céu Patrão Neves que declina seu temor quanto à possível confusão que venha a ser firmada em relação à Bioética e ao que chama de Biodireito. Em suas palavras, ressalta que teme que os conceitos éticos existentes em cada sociedade possam ser codificados ao bel prazer de cada país, gerando, perigosamente, uma espécie de turismo bioético, possibilitando a muitos que, não atingindo seus objetivos em determinado país, possam valer-se do Ordenamento Jurídico de outros lugares, a fim de serem agraciados. Este o caso que vem sendo relatado pelos meios de comunicação em países como a Itália. Tamanha preocupação é de fato curiosa, mas também é interessante notar que as normas surgem, em virtude da valoração atribuída aos fatos que impulsionam as relações jurídicas constantes na sociedade. E em benefício desta mesma sociedade, é que se voltam tais dispositivos normativos.
O que se discute, porém, é que o que se põe em jogo é a disposição sobre a vida de seres humanos que, embora não estejam ainda formados, são negociados como parte do patrimônio de um indivíduo que se despoja de um bem, mediante a exigência de um valor pecuniário pré-estabelecido, que muitos se sujeitam a pagar na ânsia de ver a concretização de um sonho pessoal.
E neste contexto é que pairam as grandes argumentações dos juristas, já que esta é uma realidade que não se pode deslustrar. Que direitos poderá ter o doador no que se refere à criança que será gerada no ventre de uma receptora que o mesmo sequer conhece? Afinal, um dos requisitos para a constituição deste contrato sinalagmático é que receptora e doador não disponham da identidade de ambos. Em matéria de sucessão, esse filho será tido como legítimo? A Carta Magna estabeleceu que mesmo os filhos tidos fora do casamento terão os mesmos direitos que os filhos ditos naturais. Acontece, no entanto, que, neste caso o marido e a mulher anuem de comum acordo para a concretização deste contrato.
Sob o prisma médico, a fecundação artificial ou reprodução assistida, no dizer de França “é o processo biológico da união do espermatozóide com o óvulo, dando origem ao ser humano.” Esta fecundação artificial pode ser do tipo homóloga, quando a mulher é inseminada com o sêmen do próprio marido e pode ser do tipo heteróloga, em que a mulher recebe o espermatozóide de um outro homem e é neste último tipo que estacionam todas as controvérsias e complexidades do tema. Em que condições esta criança será gerada? Como poderá crescer sem conhecer sua própria história? Que conseqüências jurídicas poderão afetá-la? De acordo com o Código de Ética Médica, a fecundação homóloga não afeta em nada os princípios da moral e do Direito, podendo tais atos serem praticados dentro da normalidade. As estatísticas têm demonstrado que mulheres que concebem filhos fecundados mediante o processo heterólogo, muitas vezes rejeitam seus maridos após o nascimento do bebê, criando uma situação de constrangimento ao pai, ao próprio filho, enfim a sociedade como um todo, desvirtuando o propósito social atribuído ao matrimônio.
É fato bastante complexo e de extrema delicadeza, pois envolve inúmeras pessoas e influi em toda a sociedade, modificando, causando transtornos, insegurança, incerteza, mas também trazendo de volta o sorriso a muitos casais que sequer acreditavam na possibilidade de virem a constituir uma família realmente completa. Mais que um problema ético e moral, a fecundação artificial é um fato presente, constante e que mexe com o sentimento de todos que se envolvem direta e indiretamente com este acontecimento. Urge que realizemos debates capazes de estabelecer valores a estes procedimentos médicos, a fim de que possam ser praticados dentro da legalidade, atendendo aos interesses de todos a quem atinge.

Bibliografia
1 – Curso de Direito Constitucional
SILVA, José Afonso
2 – Curso de Direito Civil – Vol. 3
DINIZ, Maria Helena
3 – Revistas do Conselho Federal de Medicina

*Estudante do 5º ano de Direito da Faculdade de Direito de Caruaru

Autor: Indefinido Fonte: Infojus

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