Bens públicos e a proteção possessória

João Luis Fischer Dias

O instituto da posse sempre trouxe perplexidades aos juristas. Ainda hoje, a doutrina não chegou a um entendimento unânime quanto a sua natureza jurídica, sendo a tendência atual considerá-la direito real especial. A questão possessória adquire maior complexidade quando relacionada aos bens públicos. O tema suscita grande interesse acadêmico e sobressai, com rara importância, na vida diária e na ordem prática da vida dos cidadãos das grandes e médias cidades.

Os problemas fundiários ocorrentes no campo e na urbanização das cidades multiplicaram-se em poucas décadas, quando o País teve grande parte da sua população migrando do campo para as cidades. Criou-se literalmente um “inchaço” nas Metrópoles e, agravando-se a situação, soma-se o fato do atraso na efetivação da reforma agrária, para de fixação do homem no campo, proporcionando-lhe condições de vida digna e progresso. A fome, as doenças e outros males sociais impelem a população dos “sertões” para a Capital. Ocorre o denominado “êxodo rural”. Estima-se que neste século, a população brasileira em sua maioria migrou do campo para as cidades. O deslocamento deste contingente populacional ocasionou e vem ocasionando o colapso das cidades, com o esgotamento dos recursos públicos, exacerbação do desemprego e da injustiça social, sendo este fato, com certeza, uma das mais importantes causas do incremento da violência, da miséria e, em fim, dos males advindos .

Adentrando à análise do objeto em tela, – a posse em bens públicos -, vemos que a realidade acima descrita desafia os juristas da atualidade, os juízes, promotores, advogados, e os operadores do direito, a aplicarem a lei, interpretando-a em consonância com o fim social a que se destina, (art. 5º da LICC), assim também, jamais olvidando os ditames da Constituição Federal, que cristalizou os objetivos da nação brasileira, insculpidos na Carta Política, dentro os quais está a erradicação da miséria e prevalência da justiça social. A questão central é adequação do arcabouço legal, às exigência da realidade social, e a paz social. Pois, como se demonstrará, o Estado-Juiz não pode patrocinar injustiça ou a iniquidade, ainda quando esta venha por parte do Executivo, sob o aparência do manto da legalidade. Em outras palavras, os direitos humanos fundamentais do cidadão e da coletividade devem ser aquilatados, sopesados, avaliados, quando do provimento jurisdicional, pois a discricionariedade do Administrador deve ser contida, dentro dos limites constitucionais, com ênfase nos direitos humanos, sendo o Poder Judiciário o templo sagrado, onde se floresce e vivifica-se o respeito a esses direitos.

A posse civil revela-se como instituto fundamental para preservação da paz social. Afirma Humberto Theodoro Junior para justificação teleológica da tutela possessória:
“A razão de ser dessa proteção legal a uma situação simplesmente de fato, sem indagar de sua origem jurídica, está segundo Kohler. ” ao lado da ordem jurídica existe a ordem da paz, que, por muitos anos, tem-se confundido, não obstante o direito ser movimento e paz, tranqüilidade. A essa ordem da paz pertence a posse, instituto social, que não se regula pelos princípios do direito individualista. A posse não é instituto individual, é social; não é instituto da ordem jurídica, e sim da ordem da paz. Mas a ordem jurídica protege a ordem da paz, dando ação contra a turbação e privação da posse”.

Contudo, em verdade, a proteção possessória sobre bens públicos assume caráter nitidamente publicista , sendo de todo conveniente fazer a sua exegese a partir dos princípios gerais do direito público e da Teoria Geral do Direito Constitucional. Cretella Júnior afirma que os bens públicos seguem a um regime jurídico próprio não lhes aplicando as regras de direito civil, mas de direito administrativo. Labora em manifesto equívoco a aplicação de normas de direito civil à posse pública. A doutrina é unânime em considerar que o bem público é indisponível, impenhorável, inalienável, não sujeito ao usucapião ou a qualquer oneração.

Quanto aos bens públicos do uso comum do povo (praças, rios, ruas, etc..) e os bens de uso especial ( repartições públicas, edifícios destinados uma finalidade, etc..) não resta dúvida que as normas de direito civil devem ser rigorosamente afastadas, aplicando-se normas e princípios do direito administrativo, havendo inclusive quem defenda o descabimento neste caso dos interditos possessórios. Isto decorre da própria relação jurídica material de propriedade, vez que entre particulares há uma relação de coordenação de interesses, (propriedade privada), enquanto se presente o Estado, na relação jurídica, revela-se a característica de subordinação de interesses (propriedade pública), fixando o interesse público acima de quaisquer outros interesses. Obviamente a subordinação decorre e se concretiza a partir da aplicação da Lei, cuja primado garante o cidadão contra os abusos do Estado.

Portanto, a posse do Estado sobre os seus bens não decorre de elementos próprios do direito privado, sendo inaplicáveis as teorias sobre a posse subjetiva (SAVIGNY) e a objetiva (IHERING), que não servem para solucionar a posse pública. Não há que se perquirir em animus ou corpus. A posse Estatal é derivada diretamente da Lei, nesse sentido poder-se-ia afirma a existência de posse presumida, ou posse ficta.

BEM PÚBLICOS DOMINIAIS

A questão toma novos contornos e aumenta em complexidade quando analisarmos os bens de domínio privado do Estado (bens dominicais). Ora, quando desafetados de função pública podem perfeitamente serem alienados, ou onerados. A pergunta é se há, neste caso, a posse civil.. Pensamos que mesmo em se tratando de bem dominical não é possível o uso das ações possessórias. Estes bens, apesar da sua disponibilidade, continuam sendo propriedade pública, sujeitos portanto a regime jurídico administrativo próprio. A Constituição Federal proibiu o usucapião sobre qualquer bem público. (inclusive os dominiais). Também são impenhoráveis, art. 100. Portanto, foi reforçada a intangibilibilidade o bem público.

O instituto da autoexecutabilidade dos atos administrativos, que autoriza ao Estado a retomada coativa do bem público, demonstra-se totalmente incompatível com a posse civil. Os dois institutos repelem-se mutuamente. Ora se o Estado pode, manu militari, recuperar bem público, não é lícito ao particular reter este bem em nome de uma “ocupação” advinda da tolerância do Estado. O interesse do particular não pode ir ao encontro do interesse público, tal fato é elementar e básico na compreensão do direito público. A autoexecutabilidade também atinge os bens dominiais, por esta razão são igualmente insusceptíveis de apossamento.

Portanto, o bem público e insusceptível de apossamento pelo particular, sendo que a permanência deste em bem público, por mera tolerância, não cria direito possessório a ser defendido através dos interditos. A rejeição da aplicação de institutos do direito privado -posse- afasta uma série de equívocos que trazem tumulto ao processo judicial e transtornos as relações jurídicas da sociedade. A confusão, os desmandos e a “omissão estatal” na solução das demandas sobre terrenos públicos advém muito da aceitação indevida dos interditos em matéria estrita de direito público. Devem, portanto, os interditos possessórios, – reintegração de posse, manutenção e interdito proibitório e outros – devem ficar restritos as lides entre particulares.

E quanto aos direitos do cidadão? Ressalto que, embora não se forme a “posse civil” em bens públicos, o jurisdicionado não está desprotegido, tendo em sua defesa vasta gama de ações contra o ato administrativo ilegal ou abusivo da Administração, dentre outras o mandado de segurança, a ação anulatória de ato administrativo, com pedido de antecipação da tutela, as ações cautelares em geral, a ação popular, a ação civil pública etc.. A teoria do controle pelo judiciário dos atos administrativos pode e deve ser usada, em toda a sua extensão, pelo indivíduo lesado por ato ou omissão da autoridade pública.

Mutatis mutandis a mesma justificação teleológica para posse civil, citada no texto supra-transcrito, deve estar contida na motivação do ato administrativo, cuja finalidade não pode atentar contra paz social, sob pena de malferimento ao interesse público justificador da ação administrativa.

A administração detêm o poder (inarredável) de executar os seus próprios atos, (retomada de bem público invadido), usando do Poder Discricionário, mas deverá fazê-lo dentro dos limites e finalidades, contidos nas Leis e na Constituição Federal. O abuso de poder, manifestado pelo excesso de poder ou pelo desvio de finalidade deve ser levado ao Poder Judiciário, que pode e deve sustar liminarmente os efeitos deste ato administrativo ilegal. O juiz, em nosso sistema, tem o poder de revisão e de cassação dos atos ilegais e ilegítimos.

Como exemplo, pode-se citar o ato administrativo que pretenda reaver a posse de bem público, despejando família em comprovada situação de miserabilidade, expondo-a ao relento sem quaisquer condições de mínima e dignidade e subsistência. Esta família, com crianças, não recebe qualquer suprimento o ajuda do Estado, e não tem para onde ir. Pergunta-se: o ato administrativo acima citado tem amparo legal e Constitucional ? Deve, no caso de ser acionado o Judiciário, receber do Estado-Juiz a confirmação de sua legalidade ? Os direitos fundamentais e a função social da propriedade estariam sendo respeitadas pelo Estado? A Administração estaria agindo segundo o interesse público?

Outro exemplo, estaria no caso do Poder Público ter incentivado, ou se omitido, por anos sobre determinada área pública, criando-se a expectativa de “regularização” da ocupação pelo particular. Pergunta-se, deverá o Estado indenizar, previamente, o particular pelos investimentos feitos, tanto em relação as acessões quanto as benfeitorias ? A jurisprudência tem admitido a indenização nestes casos. São questões complexas, mais que poderão ser perfeitamente conhecidas pelo Poder Judiciária, sem que se necessita o uso das ações possessórias, incabíveis em matéria estrita de direito público.

Essas questões deverão ser necessariamente avaliadas pelo Estado-Juiz, sob pena de resultarem em inócuas as disposições constitucionais e legais, protetivas aos direitos humanos. Como o exemplo acima, existem outras situações nas quais deve o Judiciário se preocupar ativamente, construindo jurisprudência no campo publicista, sobre o uso de bens públicos, com vistas a solução dos problemas supracitados. Deve aceitar o desafio posto pelos fatos sociais existentes, não se esquecendo que o Estado-Juiz é igualmente responsável pelo destino desta grandiosa nação, inclusive no tocante ao aumento da observância e cumprimento dos direitos fundamentais do ser humano.

*João Luís Fischer Dias é Juiz de Direito do Distrito Federal e Professor do CEUB

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