A problemática dos embriões excedentes

A ciência vem avançando de forma espantosa, sua rapidez faz com que sequer o ordenamento jurídico consiga acompanhá-la, não sendo diferente com as técnicas de Reprodução, já que hoje é perfeitamente possível que embriões humanos sejam congelados em laboratórios, podendo permanecer neste estado por longo tempo (embora seja discutida a questão da afetação à sua integridade física), até que sejam implantados no útero materno.

Atualmente há uma técnica de Reprodução Assistida denominada Fertilização in vitro (FIV), esta, por sua vez, tem o escopo de solucionar a esterilidade humana, cujo processo se dá através da retirada de óvulos (maduros) que se encontram no ovário da mulher, a fim de serem os espermatozóides misturados aos primeiros havendo a fecundação e, conseqüentemente, originando o embrião.

Entretanto, para se obter os óvulos é feito uma estimulação na mulher, obtêm-se múltiplos óvulos e, assim, conseqüentemente, favorece para o aumento do número de embriões, a fim de aumentar as chances de uma gravidez com sucesso.

Todavia, toda essa tecnologia científica traz alguns malefícios, visto que pode causar um risco à mulher caso haja gravidez múltiplas, além da problemática acerca dos embriões excedentes, faz surgir inúmeras discussões, dos mais variados posicionamentos, como, por exemplo, qual o destino desses embriões criopreservados (excedentes), qual a melhor solução, conservá-los por tempo indeterminado ou destruí-los? Talvez doá-los? Vale lembrara que não existe qualquer Lei ou regulamento abordando o assunto, a não ser pela Resolução nº 1.358/92, no que tange à doação de gametas ou pré-embriões. Porém, está em discussão o projeto da nova Lei de Biossegurança, a qual cientistas discutem no Senado a utilização de células-tronco de embriões excedentes para pesquisa.

Para continuarmos no assunto é necessária uma primeira distinção, qual seja, entre nascitura e embrião originado a partir da FIV e segundo os ensinamentos de Maria Helena Diniz[1], deve-se “considerar juridicamente o nascituro, entendendo-se que a vida teria início, naturalmente, com a concepção no ventre materno.” Mas considerando o que dispõe acerca do direito da personalidade vemos, então, que o nascituro tem resguardado seus direitos desde a concepção. Porém, para ser titular dos direitos, o mesmo deverá nascer com vida, é o que chamamos de condição suspensiva[2] (artigo 1799, inciso I do Código Civil).

Tradicionalmente, nossos doutrinadores consideram que o nascituro somente existe com a ocorrência de uma gravidez, após a nidação, a qual é a implantação do ovo fecundado no útero materno, o ato de fixar-se no útero, a partir de então é que a Lei põe a salvo os direitos do nascituro.

O novo Código Civil fez questão de distinguir pessoa concebida e não concebida (artigos 1798 e 1799, inciso I)[3], fazendo surgir a polêmica acerca da personalidade dos embriões in vitro.

Devemos lembrar que o dispositivo legal oferece proteção à pessoa humana já concebida; porém, o próprio artigo 2º do Código Civil menciona que a lei põe a salvo , desde a concepção, os direitos do nascituro. Assim, o que venha a ser o termo “desde a concepção”? Qual foi a intenção do legislador? Seria o começo, início de uma vida? Ficaria assegurado, também, os direitos dos embriões in vitro?

No entanto, essa questão da concepção é divergente entre doutrinadores, visto que para alguns, como Maria Helena Diniz, após a penetração do óvulo pelo espermatozóide, surge uma nova vida, com patrimônio genético único e, apesar da gravidez viável iniciar apenas depois da nidação, para ela o embrião já tem considerado juridicamente sua personalidade.

Numa segunda linha de pensamento, esta mais coerente, a qual Silmara J.A.Chinelato Almeida faz parte, temos que não se pode falar em nascituro antes do embrião ser implantado no útero da mulher, pois vemos que não há possibilidade do mesmo crescer e se desenvolver até o estado final fora do ambiente próprio (útero).

Assim, o embrião jamais pode ser considerado nascituro, mesmo que possua uma carga genética única, mas isso não quer dizer que o mesmo não é merecedor de uma tutela jurídica, pelo contrário, vemos que cada vez mais as discussões em torno do assunto vem aumentando, sendo necessário que nosso ordenamento jurídico desperte para os novos acontecimentos (avanços) e tomem alguma atitude.

Existem inúmeras clínicas especializadas na técnica de fertilização in vitro, mas nos deparamos com uma dificuldade ao tentar saber qual o número exato de embriões, hoje, criopreservados; porém, podemos ter um parâmetro se pegarmos a cidade de São Paulo, onde cada clínica possui, em média, cerca de mil embriões.

A polêmica se inicia quando questionamos o destino dos embriões excedentes entre outras indagações, como, por exemplo, a questão do tempo de congelamento dos mesmos, já que existe toda uma história acerca da integridade física, tornando-se impróprios para implantação, bem como o risco de crianças nascerem com alguma deformidade quando utilizados embriões crioconservados por um tempo considerável.

Com a fecundação se inicia um processo autogovernado pelo próprio embrião, sendo inquestionável que o zigoto, por ser material genético humano vivo, é carecedor de proteção legal, já que o mesmo posto em ambiente próprio tornar-se á pessoa humana. Por esse motivo é que alguns autores defendem a idéia da proibição de doar embriões para fins de pesquisa, pois, como falamos, para eles a vida se inicia apenas com a fecundação, caracterizando, assim, um aborto.

Lógico que devemos sempre estar usando como paradigma, sendo este o único possível, a nossa Magna Carta, posto que, como expõe Ana Cristina Rafful, “não se pode negar que a destruição de embriões excedentes importa em destruição da vida humana e violação ao artigo 5º da Constituição Federal de 1988.”

Com base na Constituição Federal, mais especificamente em seu artigo 225, § 1º, incisos II e IV, surgiu a Lei 8.974 de 5 de janeiro de 1995 vedando a manipulação genética de células germinais humanas, quer dizer, de embriões humanos destinados a servir como material biológico disponível.

Vemos que os questionamentos envolvendo a matéria não param por aí, estando distante de se obter um consenso, embora parte da doutrina, senão a maioria, manifesta-se favorável ao uso dos embriões excedentes para terapia celular.

Em relação a atribuição do crime de aborto nos casos de descarte de embriões, vemos que a constatação do início da gravidez é pressuposto essencial para caracterização do mesmo, bem a propósito a lição de Mirabete[4], o qual ao referir-se a objetividade jurídica do crime de aborto, diz expressamente que “tutela-se nos artigos em estudo a vida humana em formação, a chamada vida intra-uterina, uma vez que desde a concepção (fecundação do óvulo) existe um ser em germe, que cresce, se aperfeiçoa, assimila substâncias, tem metabolismo orgânico exclusivo e, ao menos nos últimos meses de gravidez, se movimenta e revela uma atividade cardíaca, executando funções típicas da vida.”

Portanto, retiram-se todos os elementos que venham a caracterizar o crime de aborto (artigo 124 do CPC), sendo evidente que o Código Penal apenas pretendeu tutelar a vida intra-uterina e não o embrião fora do útero materno, o qual possui sim uma vida, não podemos negar, mas esta apenas em potencial.

Eduardo de Oliveira Leite[5] esclarece bem essa questão, segundo ele, “ para teoria concepcionista o crime de aborto se configuraria em qualquer fase do desenvolvimento da gravidez, desde a fecundação ( e não apenas a partir do ovo) até o parto. Igualmente ocorreria crime de aborto na destruição de embriões excedentes da fertilização in vitro . Já para a teoria genética desenvolvimentista inexiste crime de aborto antes da nidação (portanto, em fase anterior a gravidez, na ótica de seus defensores) quer, porque a gravidez só existe em organismo vivo, não se podendo atribuir tal estado fora dele.”

Ainda resta a questão da adoção de embriões in vitro por casais estéreis e isso envolve toda um regulamentação pelo Código Civil. Estaríamos nos reportando a adoção pré-natal.

Para tanto, estaríamos falando em vida humana com início na concepção, retornando novamente a questão do momento da concepção, pois para Ana Cristina Rafful[6] apenas “pode-se concluir que a vida tem início desde a concepção quando há inserção de todo patrimônio genético dos pais, sendo a vida um direito inerente a esta pessoa em formação, pois se assim não fosse, não haveria razão lógica para se salvaguardar os direitos do nascituro, através do que dispõe o artigo 4º do Código Civil[7], tratando-se desta forma, o direito à vida não deriva de nenhum ordenamento jurídico, pois a natureza já conferiu ao ser humano a vida e as faculdades que lhes são próprias.”

Diante de toda essa orientação e considerando que o embrião é uma vida em potencial, quer dizer, possui condições de se desenvolver se implantado no útero, ambiente próprio para que possa crescer, se aperfeiçoa até o momento do nascimento, não se pode considerar que seja objeto de contrato; porém, nada impede que siga os trâmites legais para uma adoção, a qual constitui ato jurídico solene, estabelecendo vínculo.

Como vimos, com a técnica da FIV (fertilização in vitro) vários óvulos são fecundados por espermatozóides e, conseqüentemente, surgem vários embriões, excedendo o número necessário a serem utilizados na técnica da fecundação assistida, assim, eles passam a ser criopreservados durante anos. Entretanto, essa prática de conservação expõe os embriões à riscos em virtude da manipulação técnica e sua preservação por tempo indefinido, o que torna questionável as chances de se obter um desenvolvimento regular do embrião.

Todavia, a Lei 8.974 de 5 de janeiro de 1995 ao regular os incisos II e V do §1º do artigo 225 da Constituição Federal, vedou expressamente, a produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servir como material biológico disponível, considerando a prática de tais atos crime.

Pelo fato dos embriões possuírem características genéticas únicas merecem proteção em relação a sua “vida”, de sua integridade física, assim como de sua dignidade, por isso é que se proíbe qualquer tipo de investigação experimental.

“Somente seria permitido um tratamento experimental destinado a sobrevivência do embrião, ao desenvolvimento sadio ou à superação ou correção de alguma moléstia grave de que seja portador, mediante técnicas de manipulação genética. A transferência de genes a substância embrionária humana por razões de terapia gênica, pela utilização de um vírus manipulado em laboratório como vetor para introduzir o DNA, integrando o genoma e operando uma proteção que se incorpora ao patrimônio genético do embrião e, conseqüentemente, a sua descendência, não poderá ser utilizado por implicar autorização da dotação celular daquele embrião.”[8]

Neste caso cabe perfeitamente a aplicação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, já que a manipulação genética distorcida da finalidade terapêutica resta proibida, pois é incabível uma seleção de embriões, a eugenia (se usada de forma negativa).

Enfim, qualquer tentativa de experiência feita em embriões vivos, de acordo com a legislação atual, deverá ser reprimida juridicamente, exceto se for para fins terapêuticos que o beneficiem, ou seja, o próprio embrião, como no caso de alguma moléstia.

Por outro lado, ainda resta uma chance, pois o Senado federal parece favorável com relação à autorização para o uso de embriões excedentes que estejam congelados há mais de três anos em pesquisa de fins terapêuticos, apesar da oposição por parte da igreja, pois renova a esperança, expectativa para tratamento de doenças crônicas e lesões medular.

A terapia com utilização das células-tronco, a qual são células progenitores que possuem capacidade de diferenciar-se em tecidos variados, como por exemplo, sangue, músculos, ossos, entre outros tecidos do corpo humano, é uma terapia celular para tratamento de doenças e lesões por meio de uma substituição de tecidos doentes por células saudáveis. Um exemplo desse tipo de terapia é o já conhecido transplante de medula óssea, usado em tratamentos de pacientes com leucemia.

Estudos apontam para sucesso em tratamento através de células-tronco para tratar de doenças que hoje são incuráveis, como as doenças cardíacas, diabetes, renais, distrofia muscular, Alzheimer, etc.

Em 02 de junho do corrente ano houve uma audiência pública, a qual foi realizada pela Comissão de Assuntos Sociais e Comissões de Educação do Senado Federal, cuja esta colocou em pauta a discussão acerca do novo projeto da Lei de Biossegurança.

O objetivo é conseguir que permitam a utilização das células-tronco de embriões excedentes produzidos a partir da técnica da fertilização in vitro e que se encontram crioconservados há mais de três anos ou, ainda, que foram descartados por serem considerados impróprios para implantação, por ter, por exemplo, sua integridade física afetada. Vale lembrar que também pleiteiam a regulamentação no que diz respeito a comercialização de embriões, bem como, proibir a clonagem terapêutica.

Portanto, podemos afirmar que ainda resta alguma chance para esses embriões excedentes, no sentido de serem úteis e responsáveis por uma, talvez, revolução na ciência, ao invés de serem apenas descartados. Há necessidade urgentíssima dessa regulamentação, lógico que se deve levar em conta todos os aspectos, não apenas o jurídico, mas também os científicos, éticos e morais.

REFERÊNCIAS

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[1] DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 2º ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p.427.

[2] Condição é a modalidade voluntária dos atos jurídicos que lhes subordina o começo ou o fim dos respectivos efeitos à verificação, ou não-verificação, de um evento futuro e incerto. Condição suspensiva é aquela que transforma a expectativa de direito em direito adquirido, desde que realizado o acontecimento por ela estipulado. No que diz respeito ao direito eventual, os direitos do nascituro ficam sob condição suspensiva. A questão está longe de estar pacífica na doutrina.

[3] Art. 1798 – Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão.

Art. 1799 – Na sucessão testamentária podem ainda ser chamado a suceder:

I – os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão;

II – as pessoas jurídicas;

III – as pessoas jurídicas, cuja organização for determinada pelo testador sob a forma de fundação.

[4] MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 16º ed. São Paulo: Atlas, 2000. p.93.

[5] LEITE. Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais e direito: aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995. p.387.

[6] RAFFUL. Ana Cristina. Ob. Cit. p.70 e 71.

[7] Consta nos comentários da referida autora o artigo 4º do Código Civil, no entanto, o citado diploma legal sofreu uma reforma, a partir de 2002 o dispositivo está inserido no artigo 2º.

[8] DINIZ. Maria Helena. Ob.Cit. p.409.

* Vanessa Afonso Chaves
Advogada na cidade de Maringá; Especialista em Direito Civil e Processo Civil e Aluna do Curso de Mestrado em Direito da Universidade Estadual de Maringá

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