A limitação da responsabilidade no exercício da empresa

A atividade empresarial é composta por vários elementos. Dentre eles, podemos destacar dois que caracterizam o exercício dessa atividade: o empresário, que é quem exerce efetivamente a empresa, e o risco por ele assumido quando se dispõe a exercê-la.

Para a exploração de uma atividade econômica organizada é necessário que o empresário utilize, pelo menos, alguns bens (dinheiro, equipamentos, insumos etc.) e os destine a uma finalidade específica.

De outro lado, temos o princípio da responsabilidade patrimonial, ou seja, o devedor responde por todas as suas obrigações com todos os seus bens que constituem garantia comum dos credores. Assim também ocorreria com o exercício da atividade econômica: o devedor responderia por todas as obrigações oriundas dessa atividade com todos os seus bens. Daí a questão do risco no exercício da empresa.

Assim, ao explorar a empresa, o empresário correria o risco de perder não só o patrimônio separado para essa atividade (equipamentos, insumos etc.), mas todo o seu patrimônio, o seu conjunto de bens conseguidos com o trabalho de uma vida inteira. Essa é a regra: responsabilidade ilimitada.

Ocorre que essa regra representava, e ainda representa, um verdadeiro desestímulo ao exercício de qualquer empresa. Quem arriscaria o patrimônio construído com anos de trabalho para explorar uma atividade econômica, por mais vantajosa que fosse?

Dessa preocupação inicial, surgiu a necessidade de pensar numa forma de reduzir esse risco empresarial.

PONTES DE MIRANDA1, ao tratar do conceito de patrimônio, cogitava da possibilidade de se ter um patrimônio separado ou especial, que, por sua vez, teria um passivo próprio, que incidiria somente sobre essa parcela patrimonial. Assim ensinava:

“O patrimônio separado ou especial forma-se pelo que nele entrou simultaneamente ou após a criação dele, pelo que se adquire em virtude de direito pertencente ao patrimônio, ou pelo que se há de sub-rogar àqueles ou a esses elementos, e pelo que adquire em virtude do negocio jurídico ou ato jurídico stricto sensu, referente ao patrimônio (…). Todo patrimônio especial tem um fim. Esse fim é que lhe traça a espera própria, lhe cria a pele conceptual, capaz de armá-lo, ainda quando nenhum elemento haja nele. (…) A especialidade do patrimônio faz nascerem direitos, pretensões, ações e exceções que não tinha o titular do patrimônio geral, de que foi separado (…) O passivo do patrimônio especial é o conjunto de dívidas, obrigações, situações passivas nas ações e exceções que expõem o patrimônio especial à satisfação dos titulares desses elementos passivos. Por abreviação, mas somente por abreviação, diz-se que são dividas do patrimônio especial, dívidas da massa concursal, obrigações e situações passivas do patrimônio especial, da massa concursal etc. Devedor, obrigado, sujeito passivo das ações e exceções é o titular do patrimônio especial, e com os elementos do patrimônio especial é que se hão-de cumprir (execução voluntária, execução forcada) aqueles deveres, obrigações, ou o que for (…)” (grifamos).

Dessa idéia de patrimônio especial, afetação de parte do patrimônio a um fim específico, surgiu a possibilidade de se limitar a responsabilidade do empresário aos bens afetados.

CALIXTO SALOMÃO FILHO2 assim conceitua a separação patrimonial: “A separação patrimonial instrumental a essa afetação é exatamente aquela que permite ao comerciante limitar seu risco (impedindo que dívidas oriundas de sua atividade comercial ameacem seu patrimônio pessoal) e garante os credores por dívidas oriundas da atividade praticada com o patrimônio separado (assegurando que aquele patrimônio é a garantia de sua dívida e que portanto eles não terão a concorrência dos credores particulares do titular do patrimônio)”.

Assim, o empresário responderia perante os credores pelas obrigações oriundas do exercício de sua empresa somente com o patrimônio afetado, assumindo tais credores, o prejuízo de eventual saldo devedor.

É o que ensina SILVIO MARCONDES MACHADO3:

“A limitação da responsabilidade, em sentindo amplo, significa que o devedor, distribuído entre os credores tudo quanto, em certa medida, era destinado à sua satisfação, fica liberado, nada mais podendo estes reclamar, embora não inteiramente satisfeitos”.

Estreitando esse conceito de limitação da responsabilidade, o professor acima citado4 assim a classifica: “responsabilidade objetivamente limitada”, em que a limitação é tida sobre determinados bens do devedor, e “responsabilidade quantitativamente limitada”, em que o devedor fica responsável somente por uma soma determinada, pela qual responde com todo o seu patrimônio.

Vale ressaltar que essa limitação somente era, e no Brasil ainda é, aplicada às pessoas jurídicas legalmente constituídas, ou seja, reunindo-se duas ou mais pessoas para a exploração de uma atividade econômica, essas se inscreveriam no órgão competente e criariam uma ficção jurídica, de forma que passaríamos a ter três sujeitos de direito: a sociedade empresária, o sócio “a” e o sócio “b”.

A sociedade empresária responde de forma ilimitada por todas as suas obrigações. Os sócios, por sua vez, respondem sempre de forma subsidiária pelas obrigações da sociedade, ou seja, somente há responsabilidade a eles imputável se, exauridos os bens sociais, ainda restarem obrigações a serem cumpridas.

Assim, a regra era a sociedade de pessoas, em que a responsabilidade dos sócios era subsidiária, solidária e ilimitada, de forma que, exauridos os bens sociais, os sócios responderiam por todo o saldo devedor, solidária e ilimitadamente (com todos os seus bens).

Seguindo a orientação da limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais, e em contraposição à sociedade de pessoas, surgiu a sociedade por ações, em que se obtinha a responsabilidade do acionista limitada ao valor das ações subscritas ou adquiridas.

Ocorre que a sociedade anônima era vista como um modelo de grande empresa, como ensina RUBENS REQUIÃO5: “A sociedade anônima, desde o início de sua existência, logo se impôs como perfil de grande empresa, fenômeno que se iniciou no século passado, para se impor em nossos dias. Ela, com efeito, constitui notadamente a ideal estrutura das sociedades gigantes e dos imensos conglomerados e grupos empresariais”.

Com esse perfil, a possibilidade de limitação da responsabilidade ficava restrita aos grandes empreendimentos, razão pela qual se fazia necessária a criação de um tipo societário intermediário, em que houvesse a limitação da responsabilidade associada a um empreendimento de menor porte e menos complexo que o da sociedade anônima.

Assim, em 1982, na Alemanha, foi criado o primeiro modelo de sociedade de responsabilidade limitada6, que foi tida como um tipo intermediário entre as sociedades de capital e de pessoa, mas com características próprias, como salienta SILVIO MARCONDES7:

“Trata-se de pessoa jurídica em que a responsabilidade do sócio se atém à sua quota, o que a aproxima dos traços da sociedade anônima. Por outro lado, toma o feitio das sociedades de pessoas por diversos característicos: simplicidade e liberdade de constituição, base financeira menos rígida, permitindo nos estatutos a obrigação para os sócios de quotas suplementares proporcionais às de capital, as quais podem ser de diferentes valores, desnecessidade de conselho fiscal e de assembléias gerais, dispensa de publicação de balanço, exercício da gerência pelos sócios. Duas características de relevo distinguem, ainda, a nova espécie de sociedade: a restrição à circulação das quotas sociais – que não podem ser cotadas em Bolsa e somente são transferíveis mediante ato judicial ou notarial – e, tendo em vista o interesse dos credores, a obrigação dos sócios em responder pelas quotas subscritas por consócios insolventes”.

Assim, chegava-se a um tipo societário em que a responsabilidade dos sócios era limitada ao valor total do capital social: as quotas subscritas, bem como as não integralizadas por sócios insolventes.

Esse modelo serviu de referência para a criação da lei portuguesa, austríaca, italiana, espanhola, francesa etc., e, inclusive para a criação da lei brasileira.

No Brasil, a sociedade limitada surgiu em 1912, como ensina NELSON ABRÃO8: “Entre nós, em 1912, foi que o saudoso doutor Herculano Marcos Inglez de Souza, incumbido pelo governo da República de apresentar um Projeto de Código Comercial, lhe consagrou um capítulo dessa obra, intitulando-o Das sociedades limitadas. Propusera ele o reconhecimento do novo tipo de sociedade, a fim de seguir a tendência que se assinala no regime das sociedades para aumentar a aplicação do princípio da comandita sob diversas formas, de modo a animar a concorrência das atividades e dos capitais no comércio, sem ser preciso recorrer à sociedade anônima, que melhor se reservará para as grandes empresas industriais, que necessitam capitais muito avultados e prazo superior ao ordinário da vida humana”.

Nesse contexto, em 1919 surgiu o Decreto n. 3.708, de 10 de janeiro, que criou a sociedade por quotas de responsabilidade limitada.

O novo Código Civil brasileiro9, por sua vez, revogou esse Decreto e passou a disciplinar esse tipo societário, agora com nova denominação: “Sociedade Limitada”.

Dessa forma, consagrou-se a limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais como um verdadeiro incentivo à exploração da empresa, na medida em que traz segurança jurídica aos empresários e investidores.

Por isso, atualmente, no Brasil, cerca de 90% das sociedades são do tipo limitada, e quase não se encontram sociedades em nome coletivo, cuja responsabilidade dos sócios é subsidiária, solidária e ilimitada.

Visto isso, para finalizar esse artigo, é oportuno salientar que esse benefício, indispensável ao exercício da empresa, somente pode ser usufruído por sociedades empresárias, ou seja, por pessoas jurídicas constituídas por duas ou mais pessoas que se unem para a exploração de determinada atividade.

No caso de exercício individual da empresa, ainda vigora a regra da responsabilidade ilimitada e impossibilidade de afetação de parte do patrimônio para o exercício da atividade.

Notas:

[1] Tratado de Direito Privado, Rio de Janeiro, 1955, v. 5, p. 368-380.

[2] O Novo Direito Societário. 2. ed. reform., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 154.

[3] A limitação da responsabilidade do comerciante individual, São Paulo: Max Limonad, 1956, p. 267.

[4] Op. cit., p. 267-268.

[5]Curso de Direito Comercial, 23. ed. atual., São Paulo: Saraiva, 1998, v. 1, p. 400.

[6] Lei de 20 de abril de 1982, modificada pela Lei de Introdução do Código Comercial alemão, de 10 de maio de 1897, e consolidada em 20 de maio de 1898.

[7] Problemas de direito mercantil, São Paulo, 1970, p. 194.

[8] Sociedade por quotas de responsabilidade limitada, 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 35.

[9] Arts. 1.052 a 1.087.

* Cinira Gomes Lima Melo
Pós-graduanda em direito empresarial pela PUCSP, Mestranda em Direito pela UNIMES, professora em cursos preparatórios para o exame da OAB e Advogada na área empresarial.

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