A efetividade dos direitos na constituição

Eduardo K. M. Carrion

Texto que serviu de base para exposição feita na Femargs – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do Rio Grande do Sul João Antônio Guilhembernard Pereira Leite para os novos Juízes do Trabalho, Porto Alegre, 08/02/2001.

1. Introdução

Podemos identificar pelo menos dois grandes problemas relacionados com os direitos fundamentais, de que os direitos sociais fazem parte.

Inicialmente, no contexto de um diálogo intercultural imposto pela internacionalização cada vez mais acentuada das relações humanas, a crise da universalidade dos direitos fundamentais e a correspondente exigência de superação do etnocentrismo ou mais propriamente do eurocentrismo, bem como a adequada necessidade do reconhecimento da diversidade de representações da universalidade dos direitos fundamentais. Estreitamente ligada a essa problemática, a crise também da insuficiência do paradigma individual que em grande fundou historicamente a construção dos direitos fundamentais. Nessa perspectiva e na tentativa de superar o relativismo cultural e resgatar um patrimônio comum da humanidade propiciado pelo processo civilizatório, a apropriada afirmação de um universalismo plural;

Depois, a temática da efetividade dos direitos fundamentais, objeto principal dessas rápidas reflexões.

2. Efetividade da norma jurídica

2.1. A norma jurídica pode ser visualizada em pelo menos três planos distintos, embora complementares:

– o de sua validade, seja filosófica, sociológica ou política, primeiro, relacionada em grande parte com a questão da legitimidade da norma jurídica, seja mais especificamente jurídica, relativa sobretudo à competência para elaborar a norma jurídica;

– o de sua vigência, atinente fundamentalmente à eficácia jurídica da norma jurídica (1), e
– o de sua efetividade, referente basicamente à eficácia social da norma jurídica.

2.2. Efetividade e falta de efetividade de uma norma jurídica correspondem a pontos extremos, a realidade sugerindo situações intermediárias. A rigor, mesmo uma norma descumprida apresenta paradoxalmente um mínimo de efetividade. Trata-se num certo sentido de uma efetividade remanescente, residual, invisível, por assim dizer. A simples existência dessa norma na ordem legal, embora inaplicada, torna a infração por parte da autoridade ou de particulares contestável e instável, obrigando-os a uma certa prudência. Além disso, a própria evolução da conjuntura política, repercutindo no plano jurídico, pode fazer com que ela passe a ter com o tempo maior efetividade.

Demais, a norma jurídica pode mesmo assim, isto é, mesmo descumprida ou inaplicada, exercer uma função de legitimação da ordem estabelecida, aliás uma das principais funções da norma jurídica, ao lado da função reguladora. Em determinados casos, essa função legitimadora pode eventualmente ser sua prioritária se não exclusiva função, seu objetivo deliberado.

Assinale-se finalmente o fato de uma efetividade suficiente ser para muitos autores requisito essencial da própria validade jurídica da norma jurídica.

2.3. No plano constitucional, a questão da efetividade é crucial.

Na medida em que as Constituições costumam refletir os avanços da luta democrática, interessa diretamente aos setores populares o respeito a suas determinações. Entretanto, observamos, sobretudo nas sociedades de precária tradição democrática, uma tendência ao descumprimento das normas constitucionais que outorgam direitos e liberdades ou que limitam o poder. A maior ou menor efetividade das Constituições permitiu aliás que Maurice Duverger distinguisse entre Constituições-leis, isto é textos jurídicos efetivos, ainda que comportando sempre elementos não aplicados ou pouco aplicados, e Constituições-programas, “destinadas a dar uma aparência liberal e democrática a regimes de natureza completamente diferente (2).

Da mesma forma, lembre-se a célebre classificação ontológica das Constituições de Karl Loewenstein, diferenciando entre Constituição-normativa, isto é, viva e efetivamente vivida pelos destinatários e detentores do poder, real e efetiva, lealmente observada por todos os interessados e integrada na sociedade estatal e esta nela; Constituição-nominal, ou seja, carente de realidade existencial; e Constituição-semântica que, embora plenamente aplicada, “sua realidade ontológica não é senão a formalização da existente situação do poder político em benefício exclusivo dos detentores de fato do poder, que dispõem do aparato coativo do Estado” (3).

3. Efetividade da norma constitucional

3.1. As primeiras declarações dos direitos foram sobretudo declarações dos direitos individuais e políticos. Após a primeira guerra mundial, seu conteúdo ampliou-se significativamente, abrangendo matéria econômica e social, caracterizando-se então as declarações dos direitos também como declarações dos direitos econômicos e sociais. Essa uma das grandes diferenças existentes entre o constitucionalismo clássico, de base individualista, e o constitucionalismo social, impulsionado em grande parte pela luta da classe trabalhadora. A Constituição da República de Weimar de 1919 serviu de modelo para o constitucionalismo social, embora a Constituição mexicana de 1917 a precedesse de mais de dois anos neste caminho. Aliás, a Constituição jacobina de 1793 já previra alguns dos denominados “direitos sociais”, responsabilidade genérica da sociedade.

Fala-se tradicionalmente na existência de três gerações (4) das declarações dos direitos. A primeira, correspondente aos clássicos direitos individuais e políticos; a segunda, referente aos direitos econômicos e sociais, e a terceira atinente aos novos direitos, relacionados em grande parte com as novas preocupações da sociedade contemporânea: minorias, meio-ambiente, informática, engenharia genética etc.

Cabe ainda ressaltar que se direitos individuais diziam sobretudo respeito a direitos que implicavam uma abstenção por parte do Estado, os direitos econômicos e sociais e os novos direitos dizem respeito também a prestações a serem conferidas principalmente pelo Estado, embora também pela sociedade (5).

No contexto dos direitos econômicos e sociais e dos novos direitos, a problemática da vigência ou eficácia jurídica, por um lado, e da efetividade ou da eficácia social da norma constitucional, por outro lado, cresce em importância.

3.2. A ordem jurídica caracteriza-se sobremaneira pela existência de normas genéricas e abstratas, embora possa haver normas individuais e concretas. A norma constitucional, por excelência, tende a apresentar um grau de generalidade e abstração superior ao das normas infraconstitucionais. O que a norma constitucional tende a ganhar em generalidade e abstração, quando em comparação com as normas infraconstitucionais, tende a perder em densidade normativa. Em outros termos, a norma constitucional, tendendo a ser um comando mais genérico e abstrato do que aquele da normas infraconstitucionais, remete muitas vezes ou quase sempre à sua regulamentação através de normatividade infraconstitucional posterior, ou, em face da possibilidade de eventual recepção de norma infraconstitucional anterior, logicamente posterior.

Daí, a pergunta: na falta de normatividade infraconstitucional, na ausência de norma regulamentadora, produz a norma constitucional efeitos jurídicos, possui ela eficácia jurídica, é ela juridicamente aplicável?

3.3. Não pretendemos aqui examinar a temática da eficácia e da aplicabilidade, eficácia jurídica e aplicabilidade jurídica, da norma constitucional, em especial da norma constitucional carente de regulamentação. A doutrina e a jurisprudência dividem-se a respeito da matéria (6).

Gostaríamos apenas de salientar que a questão da eficácia e da aplicabilidade, eficácia jurídica e aplicabilidade jurídica, da norma constitucional está estreitamente ligada com a problemática da efetividade ou da eficácia social da norma constitucional.

Apenas a titulo ilustrativo, caberiam algumas observações com relação ao instituto do mandado de injunção, já que se trata de mecanismo presumidamente criado para fazer face à questão da falta de regulamentação de dispositivo constitucional atinente a direitos.

4. O Mandado de Injunção

Não se trata propriamente de examinar o instituto recepcionado pela Constituição de 1988, mas apenas de tecer um breve comentário.

Enquanto que a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, que diz respeito a “omissão de medida para tornar efetiva (qualquer) norma constitucional (CF, art. 103, § 2º)”, tem por objetivo principal a defesa da ordem constitucional, o mandado de injunção, que diz respeito a “falta de norma regulamentadora (que) torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania (CF, artigo 5º, LXXI)”, é instrumento de defesa de um legítimo direito individual ou coletivo de fundamento constitucional. Por isto mesmo, tratando-se de ação direta de inconstitucionalidade por omissão, a legitimidade ativa é restrita, reservada a determinadas pessoas físicas ou jurídicas em decorrência de seu papel institucional; tratando-se de mandado de injunção, é ampla, autorizada a qualquer pessoa física ou jurídica que tenha um legítimo direito individual ou coletivo de fundamento constitucional a defender.

Natural que decorra da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, atendida sua natureza, basicamente efeito declaratório e efeito mandamental. O mesmo não poderia se dar com relação ao mandado de injunção, devendo decorrer, respeitada sua distinta natureza, além do efeito declaratório e do efeito mandamental, o atendimento, ao menos parcial, do direito reclamado, mas inviabilizado pela falta da norma regulamentadora, nem que seja legislando supletiva e provisoriamente para o caso concreto. Sob pena de transformar-se o mandado de injunção numa ação direta de inconstitucionalidade por omissão subsidiária, cuja uma das diferenças principais seria apenas o alargamento da legitimidade ativa, interpretação essa que agride a sistemática constitucional que exatamente prevê mecanismos distintos para situações e soluções diversas.

Os Tribunais têm em geral sido avessos, em sede de mandado de injunção, ao atendimento, ao menos parcial, do direito reclamado, mas inviabilizado pela falta da norma regulamentadora. Algumas decisões do STF, ainda em 1991 e 1992, avançavam numa perspectiva inovadora; entretanto, em 1994, a exegese feita ao artigo 37, VII, da Constituição de 1988 representou uma nítida inflexão neste sentido. Mais recentemente, o STF, ao concluir o julgamento do Mandado de Injunção 543-DF (7), parece ter retomado a perspectiva inovadora.

Como vemos, muito resta ainda por fazer-se em termos de garantia da supremacia formal da Constituição.

5. Conclusão

Elemento importante na atual conjuntura são as iniciativas governamentais em matéria de reformas constitucionais, algumas já aprovadas pelo Congresso Nacional.

Ao invés de conformar as políticas públicas à Constituição, inspirada nos princípios da democracia social e da democracia participativa, procura-se, na ótica conservadora, adaptar a Constituição ao projeto neoliberal de alto custo social para as classes trabalhadoras.

Grande parte das reformas constitucionais aprovadas atingiram o “núcleo jurídico-político fundamental” da Constituição de 1988, caracterizando uma verdadeira “fraude à Constituição”. Constituição essa que favorece um projeto de desenvolvimento nacional, inclusive como forma de viabilizar as conquistas sociais da Constituição. Projeto esse que historicamente, isto é, no contexto de uma industrialização tardia, encontrou e hoje ainda encontra no Estado um importante se não decisivo articulador. Não se trata de desconhecer ou de condenar o processo de internacionalização e de globalização da economia, mas de saber-se em que condições nos inseriremos nesse processo: como pólo periférico ou preservando a autonomia dos centros de poder nacionais em face da emergência das estruturas de poder transnacionais. De forma a que desenvolvimento, que implica também no nosso caso em resgate da dívida social, não seja confundido – abastardado poderíamos acrescentar – com simples crescimento econômico.

Finalmente, o que se observa é uma tentativa de desmonte do Estado, a reforma econômica e a reforma administrativa, bem como a política indiscriminada de “privatizações” inserindo-se nessa perspectiva.

Pontualmente, a defesa da Constituição, sobretudo das conquistas constitucionais, em face da investida “reformista” e da tentativa de descaracterização da Constituição de 1988, torna-se premente.

Notas:

1. Não se trata aqui de examinar as nuanças e diferenças entre vigência, eficácia, aplicabilidade, existência etc. da norma jurídica, bastando por enquanto chamar a atenção para o fato de uma norma jurídica não vigente, por exemplo já revogada, ou melhor, não universalmente vigente, poder ser ainda aplicada: haja vista a hipótese dos direitos adquiridos.
2. DUVERGER, Maurice, in Institutions Politiques et Droit Constitutionnel, 1 – Les grands systèmes politiques, PUF, Paris, 12a edição, 1971, p. 42.
3. LOEWENSTEIN, Karl, in Teoría de la Constitución. Editorial Ariel, Barcelona, 2ª edição, 3ª reimpressão, 1983, pp. 216-222.
4. Alguns constitucionalistas, como Paulo Bonavides, preferem a expressão dimensões das declarações dos direitos àquela de gerações das declarações dos direitos, procurando sugerir não a idéia de uma mera substituição ou superação de uma geração das declarações dos direitos por outra, mas sim a perspectiva de um aperfeiçoamento e de uma complementação contínuos das declarações dos direitos, cada nova dimensão preservando, enriquecendo e ampliando as conquistas das dimensões anteriores. Outros referem-se ainda a uma quarta e mesmo a uma quinta geração das declarações dos direitos.
5. Jellinek distinguirá assim entre o “status” negativo ou “status libertatis”, referente basicamente aos direitos individuais, o “status” ativo ou “status activae civitatis”, atinentes fundamentalmente aos direitos políticos, e o “status” positivo ou “status civitatis”, concernentes a prestações a serem conferidas principalmente pelo Estado, embora também pela sociedade, isto é, a pretensões jurídicas positivas.
6. A esse propósito, remetemos ao nosso texto A dimensão prospectiva das Constituições, in Apontamentos de Direito Constitucional, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 1997, pp. 21-30.
7. Julgado em 26/10/2000. Ver Informativo STF n° 208.

Eduardo K. M. Carrion é Professor Titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFRGS

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