O TRIBUNAL DO 'IÚRI'

Edson Martins Areias

A mocinha carioca corrige seu jovem namorado recém chegado ao Rio de Janeiro : ela afirma morar na General San “Martan” , próximo ao “Cízar Park ”. Já o narrador desportivo ao se referir a jogador de futebol da equipe belga chama-o “Oliveirrá ”. Melhor sorte assistiu a nosso atleta do século, Edson Arantes do Nascimento , a quem não se impingiu o apodo “ P í l e i ”, após sua venturosa incursão nas canchas norte-americanas.

Fato é que brasileiro gosta de complicar. O correto é dizer Avenida General San Martim
( como “latim”, “espadachim”, “mastim”). Primeiro , por homenagear um general sul americano; segundo porque , sendo “San” (castelhano) e não “Saint” (francês) , a pronúncia da jovem carioca resulta em hibridismo monstruoso , denotando, ademais , total ignorância a respeito da História desta banda menos afortunada das Américas.

Razão também assiste ao jovem namorado com seu doce sotaque nordestino : se não quis ler “ César “ , “ Cáiser ” não soa errado. Preocupante mesmo é o profissional televisivo a berrar “ Oliveirrá ”, mormente por reverberar um eco colonizado : Oliveira é tão brasileiro quanto tutu com carne seca.

Achávamos ser apenas piada esta história do “sáine dái ” , ( “sine die”) , até que nossos ouvidos sentiram a elegante , bonita e desinibida causídica pronunciá-lo em alto e bom tom.

Estes equívocos decorrem , em parte, do colonialismo endêmico : a geração de nossos pais e avós afrancesava tudo; a atual americaniza . É nossa vocação natural para complicar .

Exemplo de complicação é a pronúncia do “jota ” em Latim. Ningúem diz “de cuius”, mas muitos pronunciam “ius” “iure”, “iuris”. Errado ? Não necessariamente , mas pode, contudo, induzir um hibridismo ilógico, como será visto adiante.

Alguns tentam justificar a pronúncia aleatória do “jota” com som de “ i ” com a dúbia assertiva de que “ não existia a letra jota em Latim”.

Não é bem assim : a notação gráfica “J” , assim como “U”, não era comum no período clássico, mas ambas foram introduzidas no alfabeto justamente para designar tais sons. A palavra , “PETRUS”, antes do advento do “ U ” grafava-se PETRVS; “ TRIBVNAL ” e “IVRI” designavam os sons “TRIBUNAL” e “JURI”, respectivamente. A palavra “VOLVIT” podia ser lida com os sons de “volvit”(volta) ou “voluit” (quer) , de acordo com a acepção textual.

A pronúncia do Latim, mereceu aprofundados estudos , retratados em várias obras, dentre as quais , as dos renomados mestres franceses Meillet, Bourciez, Juret, Macé, M. Marouzeau ;do mestre suíço Niedermann ; do mestre norte-americano Edwin B.Williams e do mestre brasileiro Nelson Romero em seu livro “L’ argument historique et la pronontiation du Latin ” publicado em 1948.

Incidentalmente ,vários outros autores abordaram o tema em suas obras didáticas . O professor José Cretella ,por exemplo , acompanha douta maioria , ao perfilhar a classificação predominante , identificando três tipos de pronúncia erudita do Latim : a restaurada , a eclesiástica e, por fim, a tradicional ou clássica.

Na versão restaurada , o “ jota ” não é grafado , mas quando lido em textos que o encampam, é pronunciado como “I”. Nesta versão , dentre outras particularidades , o encontro oe , é lido “oi” , e a vogal “g”, é lida “guê”. Assim, ao se optar pela a pronúncia restaurada, Caesar soa “Cáiser ”ou (Kaiser ); aequitas “ áiqüitas ” ; Ciceron ecoa “ Quíqueron” ; de cujus reflete “de cuius” ; Justitia reverbera “Iustitia ” e não “Justícia”. nulla poena sine lege resulta “nulla póina sine legue ”. Esta pronúncia (restaurada) é mais corrente nos países anglo – saxônicos e em parte da França.

Na versão eclesiástica , destaca-se o C e G como em Italiano. A locução “sine lege” soa “sine ledge” e “ Ciceron” se pronuncia “Tchítcheron”.

Na versão tradicional ou clássica, Ciceron se lê Cíceron , mesmo. Ademais, tanto o “I ” como o “J”, é lido da mesma forma que o “J” na maioria das neo-latinas . Assim “Iustitia ” , é lida “ Justicia ”; Legis , exatamente como se escreve – “légis” ; poena – pena; aequitatis – eqüitátis .Também o “T” intervocálico como, e.g., em “notitia” ,”clementia”, “inocentia” ,soa exatamente como nas palavras notícia, clemência, inocência . Na pronúncia clássica ou tradicional a vocalização se aproxima do Português , quando não coincide plenamente.

A presente nota longe de se arvorar em aula sobre o abrangente tema ,almeja ,tão somente, prestar modesta orientação aos que não alcançaram o estudo de Latim nos cursos propedêuticos : busca, destarte , preservar a coerência e elidir o que chamamos de “ hibridismo bárbaro”.

Será ,então, errado dizer “iuris et de iure” , exatamente como se lê ? Não, não é ,mas os que adotarem a sofisticada pronúncia restaurada deverão seguir pronunciando “de cuius ”, “aberratio”, Iustitia , “contra leguem” , “norma aguendi”, “ius quívile”, “error in viguilando” etc. , aliás, pronunciando-o “et cóitera”.

Quanto ao “etc.” recomendamos que ninguém se filie à turma do “Císar Parque” e passe a falar et cítera, para imitar “los hermanos carnales” do hemisfério forte.

Sobejam razões para optarmos pela pronúncia clássica. A primeira , por ser a mais próxima do Português. A segunda porque nas neolatinas e seus dialetos, com raras exceções, o “I”, transmutado em “J” , foi mantido. Iulius Caesar, grande general e político é Júlio Cesar, Giulio Cesare , Jules Cesar , e só é “Iulius Kaiser ” para alguns anglo – saxões.

Iesus Nazarenus Rex Iudeorum , soa consonantal em quase em todas as línguas Jesus, Jésus, Jesu, Gesu , Jesus Christ ,sendo grafado com “J” ou “G”; a grafia e pronuncia vocálica é restrita aos germanos , que chamam Iacob a Jacó , Iosef a José, Ioachim a Joaquim, Iúlia a Júlia , Iasmin a Jasmim , Iohan a João.

Sob Justiniano, o jota foi grafado nos textos, que atravessaram o mundo. Se na Europa Setentrional o povo dantanho aderisse tão facilmente aos estrangeirismos é bem possível que aprendessem a pronunciá-lo, como nós , eis que tal som inexiste em seus idiomas.

Por coerência , não há como dizer Iuris e seguir pronunciando pena e não póina ou lege e não legue, et cétera e não et cóitera .

Até por que a palavra “poena” ., por exemplo ,migrou para o Português , Espanhol ,Italiano, com o mesmo som “pena”, e no francês peine “péne”.

Assim , melhor que se opte pelo “juris et de jure”, ainda quando grafados com “i” ; pela poena – pena e não póina, pelo “tribunal do júri”, pela General San Martim ; pelo César Parque – Káiser Parque ,que seja, mas jamais os colonizados “Císar” , “ Oliveirrá” , “sáine dái” , “ et cítera ”…

Preferível errar em nosso próprio idioma a se aventurar nos dos outros : restará sempre a escusa , válida e saudável , da salvaguarda do falar pátrio .

Aliás , bem fazem os franceses , marcando o sotaque gaulês em qualquer idioma que falem, cantem declamem, ou até mesmo escrevam ; para eles o “César” de plantão é um Monsieur Ouilliámme Clintón , com assento em Ouachinguitón. …

O autor , advogado e professor no Rio de Janeiro, registra sua gratidão aos antigos mestres de Latim do Colégio Militar , em especial ao Professor Ricardo Rosas e ao Professor Nascimento ( in memoriam), e , mais, ao intelectual e filólogo , Professor Paulo Rónai( in memoriam) ,emérito lente do Colégio Pedro II.

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