O papel do Inquérito Civil e da Ação Civil Pública e como instrumentos de acesso à Justiça

Antonio Simini Júnior

Criação da lei 7.347/85, através do artigo 8°, § 1°, foi o inquérito civil acolhido pela Constituição da República em seu artigo 129, inciso III, como instrumento posto à disposição do Ministério Público à defesa dos interesses sociais (artigo 127 da Constituição da República).

A denominação dada visa, sobretudo, diferenciá-lo do inquérito policial, cujas finalidades são distintas. Ao passo que o inquérito civil busca amealhar informações necessárias para servir de base à propositura da ação civil pública pelo Ministério Público, o inquérito policial visa a comprovação da materialidade do crime e a determinação de sua autoria, para fundamentar o ingresso da ação penal pública pelo órgão ministerial.

Não sendo um procedimento contraditório, o inquérito civil destina-se somente a levar elementos de convicção para que o órgão ministerial identifique a ocorrência de circunstâncias ensejadoras à propositura de medida judicial de sua iniciativa, não obstante ser a legitimação ministerial concorrente com os demais legitimados à ação civil pública.

O inquérito civil tem demonstrado ser um eficiente instrumento de cidadania, posto que a atribuição do Ministério Público à defesa social tem por manifesta intenção a promoção da cidadania, haja vista o hábito hoje disseminado de associações, partidos políticos e cidadãos, isolados ou coletivamente, representarem ao Ministério Público a apuração de eventos lesivos aos interesses difusos e coletivos.

Inegável a atuação institucional na defesa dos interesses difusos à vista deste instrumento posto à disposição. Todavia, não deixa de ser preocupante este sintoma (representações realizadas), demonstrando a fragilidade de nossa incipiente democracia e a pouca consciência dos cidadãos quanto aos seus direitos mais elementares.

Por apresentarem os interesses difuso difusos uma natureza de conflituosidade, este traço não está ausente do inquérito civil, que nada mais é do que uma forma de tutela desses interesses.

Assim, esse instrumento de resguardo da cidadania quando aplicado na defesa de lesões de menor expressão jamais causou grande celeuma ou contestação.

Entretanto, as reações surgiram quando se passou a utilizá-lo para apuração de grandes danos aos interesses sociais. Milindram-se alguns porque viram seus pares ser submetidos a cruezas judiciárias reservadas habitualmente aos pobres. Esses fatos maiores alcançam toda a sociedade, sobremaneira os mais carentes, porque o dinheiro público desviado de seu óbvio destino significa menos construções de escolas e hospitais públicos, moradias populares gerando, por conseqüência, péssimo nível educacional, precárias condições de saúde, aumento das favelas, do desemprego, enfim dos problemas que assolam o país. Evidente, pois, diante do quadro apresentado que a população mais pobre não tem como escapar das mazelas que degradam o social, ao passo que os detentores do poder econômico, às custas da miséria, não se privam das escolas e hospitais particulares.

Por certo, não é o inquérito civil instrumento de fiscalização, de equilíbrio e de ajuste, que tornem o os sistemas político, social e econômico mais justos, mesmo sendo ele recurso de participação da sociedade na vida pública.

Entretanto, por combater as grandes violações aos interesses difusos, que causam danos sociais quase sempre irreparáveis, atingindo sempre e sempre aquela parcela da sociedade menos favorecida e praticados pelo Estado, grandes corporações ou pessoas de projeção política, vem este instrumento sofrendo grandes reações com o propósito de limitar seu alcance.

Daí, então, surgem as acusações de excesso de poder do Ministério Público, de que a instituição quer governar, ou mais comumente, que se viola os interesses individuais dos investigados, cuja honra precisaria ser preservada.

Como salienta Antonio Augusto de Mello Camargo Ferraz : “é evidente que a honra de qualquer pessoa, inclusive a de homens públicos, merece todo o respeito. O que não admissível é que a esse pretexto se procure a manutenção de privilégios, ou o acobertamento das mais graves lesões aos interesses sociais. Cabe lembrar que o art. 27, VIII, da Lei n° 5.250, de 9 de fevereiro de 1967 (Lei de Imprensa), dispõe não constituir abuso no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e de informação “a crítica inspirada pelo interesse público”. A jurisprudência, no tocante aos assim chamados delitos de imprensa, tem reiteradamente firmado o princípio segundo o qual o direito a preservação a imagem pessoal cede diante do interesse (público) à ampla informação: “A função que justifica a existência de um jornal é, sem dúvida, trazer a opinião pública informada a respeito dos assuntos que, de mais perto, a sociedade tem o sagrado dever de conhecer, particularmente em relação ao comportamento das pessoas que exercem função pública ou assemelhada, pois que é seu dever primeiro gerir, com honestidade e isenção, os destinos da comunidade, aplicando corretamente os recursos do erário. Haveremos de aceitar que a impressa, de modo geral e, pelo menos, teoricamente, ao fiscalizar os atos da administração, estará exercendo vigilância, visando a preservar o interesse público, comum. Estará aí a razão porque a Lei 5.250/67, em seu art. 27, VIII, não considera crime a crítica inspirada pelo interesse público” (RT 590/383).

Ora, se tal presunção é válida em relação a imprensa, com maior razão haverá de sê-lo ao Ministério Público quando investiga fatos de natureza extrapenal.

Eventuais medidas inibidoras do poder-dever de investigar atos irregulares só seriam benéficas àqueles que detêm parcela mais significativa do poder, em prejuízo a parcela mais carente, pois não se instaura inquérito civis com o propósito de se ferir a honra de alguém, não obstante ocuparem diariamente as páginas dos jornais os danos ao patrimônio público e social, que normalmente acabam impunes. Ademais, a abertura receosa de um inquérito civil poderá ser coibida pelo Judiciário.

Novamente a lição de Antonio Augusto de Mello Camargo Ferraz: “… dez anos após a edição da Lei n° 7.347/85, com um misto de apreensão e esperança, verifica-se que o destino do inquérito civil, ou da ação civil pública, ou do Ministério Público, ou ainda do próprio Judiciário, será o mesmo destino da maioria dos brasileiros: se o processo de democratização alcançar, como se deseja, um estágio em que as desigualdades passem a se reduzir ao invés de aumentar, em que o poder político e econômico passe a ser repartido de forma mais equânime, ao inquérito civil estará reservado papel destacada de verdadeiro instrumento de cidadania, cidadania que será progressivamente afirmada e implementada.
A ação civil pública, por sua vez, uma das mais inovadoras e eficazes soluções concebidas na história jurídica do país, poderá nessa hipótese cumprir seu destino de ensejar ao Judiciário sua plena afirmação como Poder, pois será o meio pela qual a ele serão levadas as grandes questões de interesse social.
Se, ao contrário – hipótese que deve ser rejeitada –, falhar o processo de efetiva democratização, o fenecimento do inquérito civil e da ação civil pública não seria com certeza o mais grave dos problemas brasileiros”.

Cristalino, pois, que o problema enfrentado pelo nosso país não é de excesso de fiscalização, mas de falta e controle do poder, bem porque qualquer mecanismo voltado a este fim se mostra (aos olhos daquela parcela detentora do poder) intolerável, porque o impedem de continuarem satisfazendo seus interesses pessoais e corporativistas, em detrimento dos interesses da grande maioria.

Antonio Simini Júnior é Promotor de Justiça em Dracena/SP

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