Erick: 'meu crime é ser filho de ministro do STJ e advogado.'

Erick José Travassos Vidigal*

No dia 23 de fevereiro do corrente ano, domingo, por meio de matéria veiculada pelo jornal “Folha de S. Paulo” e de reportagem apresentada no programa “Fantástico” da TV Globo, retornou à ordem do dia a discussão que gira em torno do exercício da advocacia por parentes de magistrados, ou, em linguagem sensacionalista, da advocacia de filhos de ministros.

O objeto da reportagem da “Folha de S. Paulo”, que de “furo jornalístico” nada tinha, haja vista o fato de o assunto constar do site “Notícias do Superior Tribunal de Justiça” desde o dia 21 de fevereiro, em verdade, dispõe sobre o meu envolvimento em um “possível esquema de negociações de decisões no STJ”. Envolvimento esse totalmente ligado ao exercício da função de advogado. Com relação a tal assunto, o tempo e as medidas judiciais cabíveis e necessárias se encarregarão de esclarecer os fatos. Por ora devo me ater à questão da advocacia de parentes.

A situação acima narrada provocou manifestações de vários segmentos da sociedade, matérias jornalísticas injuriosas e difamatórias e, o pior, conduzido em meio a uma tentativa irresponsável de desmoralizar o Judiciário perante a sociedade, o debate estabelecido está totalmente desprovido de um norte, além de afrontar a Constituição Federal e as leis da República.

Para início de conversa, nós, operadores do Direito, temos o dever de não nos levar pelo sensacionalismo e pelas conversas desprovidas de conteúdo jurídico. Dessa forma, a questão “advocacia de filhos de ministros” deve ser tratada, sempre, como “exercício profissional legítimo da advocacia por pessoas que detém algum grau de parentesco com magistrado, ou mesmo exercício profissional legítimo da advocacia por magistrados aposentados”.

Surgem aqui novos atores. Não apenas filhos de ministros, mas irmãos de ministros, filhos, sobrinhos, netos, esposas de desembargadores, juízes, promotores, bem como juízes, desembargadores e ministros aposentados. Por que não incluir aqueles que mantém relacionamento mais próximo, porém que não são tão fáceis de se identificar? Refiro-me aos amigos de magistrados. Ou mesmo aos grandes advogados, de renome nacional, muitas vezes doutrinadores cujas obras norteiam a atividade profissional de alguns magistrados e que são recebidos com todo respeito por isso?

Do exposto até aqui já se pode extrair a afirmação de que a situação não é tão simples como tentam mostrá-la. Da mesma forma, sua solução. Já propuseram de tudo para impedir os “filhos de ministros” de exercerem licitamente sua profissão que, segundo reza o comando inserto no artigo 133 da Constituição Federal, “é indispensável à administração da justiça”. Há projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional, que têm por escopo, pasmem, a vedação de um direito assegurado pela Carta da República justamente no artigo 5º, aquele que, pelo menos quando aprendemos e lecionamos na academia, não pode ser violado. Para refrescar a memória:

“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,…”. Antecipando-me ao julgamento do Supremo, que diante da comoção popular conduzida pelo ramo sensacionalista da imprensa e até por sua jurisprudência dominante, invocaria o velho conceito Aristotélico da igualdade (tratar de forma igual os iguais e de forma desigual os desiguais), não há como colocar advogados parentes em situação diferente da de advogados não parentes. Isso porque o critério diferenciador aplicável ao caso concreto é o fato de ser advogado.

Se o critério fosse a proximidade com o magistrado, teríamos que inserir os amigos dos magistrados no rol dos desiguais. O fato é que não podem existir advogados com tratamentos distintos, mormente pelo fato de manterem parentesco com magistrados. Poderia o legislador penalizar alguém por ter nascido filho, ou irmão, de um magistrado? E se pudesse, como faria para delimitar o advogado amigo?

“XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Ora, as qualificações profissionais exigidas para o exercício da advocacia já estão previstas na Lei n.º 8.906/94 (Estatuto da OAB). Dentre eles há que se ressaltar a prova de conclusão de curso de Direito reconhecido pelo MEC e a aprovação em concurso público conduzido pela Ordem dos Advogados do Brasil, denominado “Exame de Ordem”. Qualquer outra exigência para o exercício da advocacia em qualquer Tribunal, como, v.g., tempo de experiência ou exame junto aos membros da Corte, poderiam até ser inseridas na lei 8.906/94 (jamais nos Regimentos Internos dos Tribunais, por choque direto com lei federal e com a própria Constituição de 1988), todavia não seriam tais disposições aplicáveis aos advogados que já atuam perante as Cortes, pois a lei não pode retroagir em prejuízo do direito adquirido (de advogar livremente atendendo as exigências da lei no ato da inscrição na OAB).

“LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios recursos a ela inerentes”. Aqui surge o ponto de maior importância e que não recebeu nenhuma atenção dos que até aqui se atreveram a discutir o assunto. A escolha do advogado, diante do princípio constitucional da ampla defesa, é feita pelo cliente, jurisdicionado, e não pode, jamais, ser imposta pelo Estado. Tal escolha se embasa em confiança técnico-profissional e, acima de tudo, em confiança pessoal.

Ao constituir seu advogado, o cliente expõe sua intimidade àquele que lhe inspira confiança e segurança. Ao ser constituído, o advogado assume o compromisso de melhor defender os interesses de seu constituinte. Como poderia o Estado querer obrigar o jurisdicionado a contratar novo advogado, abrir sua intimidade novamente e gastar mais dinheiro, ao tempo em que deve abandonar àquele profissional de sua plena confiança, somente porque tal profissional mantém grau de parentesco com magistrado que, certamente, não julgará sua causa?

Ressalte-se, por oportuno, que a questão da suspeição e do impedimento já são exaustivamente disciplinados nos Códigos de Processo Civil e Penal, na Lei Orgânica da Magistratura e no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil. O procedimento é simples e eficaz. Magistrado, parente ou amigo, que já está na causa, veda o ingresso de advogado, parente ou amigo (art. 134, CPC, parágrafo único, segunda parte). Advogado, parente ou amigo, que já estava na causa, veda o exercício funcional do magistrado (art. 134, IV, CPC).

O que se discute então? Por certo não se pode afastar o fato de que os advogados que residem e atuam em Brasília produzem, até sem querer, um receio, quanto à concorrência, em seus colegas de outros Estados membros. Mais isso é assunto interno para ser discutido pela Ordem dos Advogados do Brasil. Em verdade, toda a polêmica aparenta não ter solução por uma simples razão: o que se discute não é juridicidade, direito ou legalidade. Trata-se da grande discussão que integra a agenda mundial do presente século. Discute-se, na verdade, ética, ou melhor, a falta dela.

Por certo tal discussão não terá solução por meio de leis e reformas jurídicas. Brocardo comum no meio acadêmico: “não se promove a paz social por decreto”. Estamos a discutir um valor. Jamais poderá o Estado impor valores por meio de leis, uma vez que são os valores de uma sociedade que inspiram suas leis. Data maxima venia, o problema não está no exercício da advocacia por parentes de magistrados da mesma forma que não há problema em parentes de titulares de mandatos eletivos se candidatarem para outros cargos. Seria razoável impedir o filho de um Governador de se candidatar ao cargo de Deputado Federal? Seria lógico impedir que dois irmãos sejam membros do Congresso Nacional?

Ainda não atentaram para o fato de que a presunção deve ser sempre a melhor. Um magistrado(a) que vê problemas na atuação de um advogado que mantém relação de parentesco com colega seu, não por ferir a legalidade, mas, sim, por agredir a moralidade, está, talvez sem perceber, apontando o dedo na face de seus colegas e afirmando que tais magistrados não têm a imparcialidade e a moralidade necessárias para ocupar o cargo que ocupam.

Em reportagem veiculada na “Folha de São Paulo” no último domingo, que tratava sobre a advocacia de filhos de ministros, viu-se uma situação um tanto quanto constrangedora para alguns jovens advogados. Para um profissional que cumpre todos os requisitos necessários para receber sua carteira de advogado, incluindo aquele juramento em que afirmamos a defesa das instituições democráticas, das leis do País, da Constituição Federal e do Estado de Direito, ser chamado de “meninos” e ver sua clientela, conquistada com suor, retirar sua credibilidade por tal fato, poderia até soar como insulto dirigido a pessoas cuja história não se conhece.

Quanto a mim, sou um menino sim, de 28 anos, bacharel em Direito, concluindo curso de pós-graduação em processo civil, com artigos circulando no meio acadêmico, professor de duas faculdades particulares, uma delas a mais conceituada do Centro-Oeste, com monografias escritas, livro jurídico publicado, casado há cerca de seis anos, com duas enteadas e uma filha.

Meu crime: ser filho de magistrado do STJ e advogado (como tantos outros). Nossa pena: ver o Estado democrático de direito ruir diante de nossos olhos, com a advocacia sendo estuprada a todo instante, tendo mais da metade de nossas prerrogativas (aliás, do cidadão) suspensas por meio de liminar proferida pelo Supremo no século passado, sem que alguém com coragem para desagradar magistrados e quem quer que necessite ser desagradado, levante-se para dizer o que tem que ser dito e fazer o que tem que ser feito.

É passada a hora de se esquecer do holofote e dar atenção a quem necessita: o jurisdicionado. O resto deve ser discutido nos Tribunais de Ética da OAB, nos Conselhos superiores do Ministério Público e da Magistratura, e, principalmente, pelo Governo Federal, já que está claro que o problema surge, e permanece, no vício de formação educacional. Somente estimulando o debate sobre a ética nas famílias, nas instituições religiosas e nas escolas é que se poderá deixar, por legado, um mundo melhor aos que virão.

Erick José Travassos Vidigal é advogado e professor universitário na UniCeub e Euro-Americana

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