A alopoiese nas sobrenormas penais da subcidadania brasileira

Natália Assis Melo

Sumário: 1. introdução; 2. considerações preliminares; 2.1. a alopoiese no sistema jurídico brasileiro; 2.2. a subcidadania brasileira; 2.3. as sobrenormas penais ; 3. a subcidadania brasileira como conseqüência da alopoiese jurídica; 4. alopoiese e “direito processual penal paralelo”; 5. casos concretos; 6. conclusão

1. INTRODUÇÃO

Alopoiese é um conceito recente dado a um antigo fenômeno que caracteriza a realidade dos “países periféricos”, notadamente o Brasil. Discutir esse fenômeno é de fundamental importância para que possamos compreender o porquê dessa realidade estar marcada por uma “justiça” extra-estatal, denominada “direito alternativo”, “direito paralelo”, “esfera de juridicidade” ou qualquer outra denominação que lhe possa ser dada.
Uma antiga discussão gira em torno do fato desses modos extra-estatais de dirimir conflitos constituírem ou não um direito fora do âmbito estatal. Para aqueles que, como Marcelo Neves, conceituam Direito como a “generalização congruente de expectativa normativas”(1) , não há Direito extra-estatal, já que estes não são dotados de generalidade. Para ele, o que se pode verificar são “estruturas sociais difusas de congruência tópica de expectativas normativas”(2), específicas, portanto, de uma determinada realidade. O Estado é visto, neste sentido, como o único órgão criador do Direito, já que é o único capaz de assegurar esta “congruente generalidade”. Um outro grupo de autores, entretanto, afirmam o caráter jurídico dessa “justiça” extra-estatal, concebendo a palavra Direito num sentido mais amplo, englobando aquelas “normas obrigatórias elaboradas por diferentes grupos sociais e destinadas a reger a vida interna desses grupos”(3). Logo, caber-se-ia falar em Direito Paralelo, Alternativo.
Independentemente, porém, de toda divergência teórica em torno dessa “justiça” inoficial, é inquestionável sua atuação no “mundo dos fatos”, especialmente quando se trata do Brasil. Ela possui um íntima correlação com o fenômeno da alopoiese no Direito. Este trabalho, portanto, visa, em sua essência, a estabelecer essa correlação, que será dada, especificamente, a nível da subcidadania brasileira e relativa às sobrenormas penais.
O trabalho, numa 1a parte, faz uma breve referência às definições dos elementos que compõem seu tema, para que, numa 2a parte, pudesse fazer uma junção destes, possibilitando a compreensão do tema em sua completude.

2. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

2.1. A alopoiese no sistema jurídico brasileiro
Um sistema pode ser autopoiético ou alopoiético de acordo com o modo como se reproduz. O sistema é dito autopoiético quando se reproduz autonomamente, guiando-se “por meio de código sistêmico próprio, estruturado binariamente entre um valor negativo e um valor positivo específico”(4), que, no âmbito jurídico, constitui-se pela contradição “lícito/ ilícito”. Sendo assim, pode-se falar em fechamento normativo, auto-referencial ou operacional.
Um sistema autopoiético pode, todavia, “assimilar, de acordo com seus próprios critérios, os fatores do meio ambiente, não sendo diretamente influenciado por esses fatores”(5) . E é exatamente essa possibilidade de comunicação entre o sistema e seu meio ambiente, ou seja, os outros sistemas, que caracteriza a abertura cognitiva.
Essa abertura cognitiva, quando acompanhada do fechamento normativo, proporciona uma positiva correlação entre os sistemas. A esse respeito, escreve Luhmann: “O Direito constitui, com outras palavras, um sistema normativamente fechado, mas cognitivamente aberto”(6), sendo esse fechamento “condição de possibilidade para abertura”(7). O fechamento normativo impede, ainda, a “confusão” entre o sistema jurídico e seu meio ambiente, demarcando suas fronteiras.
O sistema jurídico é dito alopoiético quando caracterizado, não por um fechamento, mas por uma abertura normativa. Isso porque sua reprodução normativa se dá pela abertura às interferências das diversas determinações do meio ambiente. Ocorre a sobreposição de diversos códigos, impedindo a formação de uma identidade sistêmica própria. Logo, num sistema alopoiético, pode-se afirmar que “as fronteiras entre o sistema e o meio ambiente social, não só enfraquecem, elas desaparecem”(8).
Essa é uma realidade típica de “países periféricos”, entre os quais se encontra o Brasil. É importante ressaltar que o que denominamos “países periféricos” são o que mais comumente dá-se o nome de “países subdesenvolvidos”, “países de terceiro mundo”. Essas denominações, entretanto, têm sido bastante criticadas: os “países de terceiro mundo”, por não mais haver um pólo forte de países socialistas que viabilizem a permanência da denominação “países de segundo mundo”; os “países subdesenvolvidos”, pelo fato deles não caracterizarem um estágio para o desenvolvimento, diferentemente daquilo que o termo nos induz a pensar. Nesses países, “os agentes do sistema jurídico estatal põem de lado o código-diferença ‘lícito/ilícito’ e os respectivos programas e critérios, conduzindo-se ou orientando-se primária e freqüentemente com base em injunções diretas da economia, do poder…”(9) .

2.2. A subcidadania brasileira
O Brasil é caracterizado por dois pólos principais dentro do ordenamento jurídico-estatal: os subcidadãos, que formam o pólo passivo, pois sobre eles recaem as obrigações; e os sobrecidadãos, que formam o pólo ativo, já que sobre eles recaem os direitos.
Subcidadãos ou subintegrados são o que vulgarmente dá-se o nome de “os excluídos”, “os marginalizados”. São aqueles que não “têm” economicamente e que não “podem” politicamente, faltando-lhes, portanto, condições reais para exigir o exercício de seus direitos, apesar de ter as condições normativas para tanto.
É importante salientar que a expressão “excluídos” para caracterizar esse grupo não é precisa, já que eles não são excluídos de maneira total do sistema jurídico-estatal; eles estão incluídos enquanto sujeitos passivos, enquanto devedores. Eles “não têm acesso aos benefícios do ordenamento jurídico, mas dependem de suas prescrições impositivas”(10).
O pólo oposto é composto pelos sobrecidadãos, também denominados sobreintegrados, e que formam o grupo dos “donos do poder”, tanto político quanto econômico. Sobre eles não recaem as imposições obrigacionais, visto que eles usam o ordenamento jurídico-estatal de acordo com seus interesses particulares, sendo, muitas vezes, a própria Constituição posta de lado por eles na medida em que ela “impõe limites à sua esfera de ação política e econômica”(11) . Cabe aos sobrecidadãos, portanto, o papel de credores no “mundo jurídico”.
Dada a “estreita vinculação da estrutura estatal com a manutenção das relações de subintegração e sobreintegração”(12), pode-se falar numa legislação e numa constitucionalização simbólica. As leis ordinárias, as leis constitucionais e o ordenamento jurídico-estatal como um todo possui uma função eminentemente simbólica, visto que essa realidade normativa não se aplica na prática(13).

2.3. As sobrenormas Penais
Sobrenorma significa norma processual. Logo, sobrenorma penal são as normas de Direito Processual Penal. Num conceito dado por Alfredo de Marsico, “O direito processual penal estuda o conjunto das normas ditadas pela lei, para aplicação do direito penal na esfera judiciária, tendo por fim não só a apuração do delito e a atuação do direito estatal de punir em relação ao réu, mas também a aplicação de medidas de segurança adequadas às pessoas socialmente perigosa…”(14) . Sobrenormas penais (leis processuais), portanto, são aquelas normas que viabilizam e regulamentam a aplicação da norma penal (leis substantivas). A esse respeito, afirma Bentham: “estas leis – as substantivas – seriam totalmente despidas de efeito, se o legislador não criasse, ao mesmo tempo, outras que têm por objeto fazer cumpri-las e que são as leis do processo”(15).

3. A SUBCIDADANIA BRASILEIRA COMO CONSEQÜÊNCIA DA ALOPOIESE JURÍDICA

Definida a cidadania como a “integração jurídica igualitária na sociedade”(16), não se pode falar em cidadania numa realidade marcada pela alopoiese jurídica, pelas relações de subintegração e sobreintegração desse fenômeno decorrentes, como é o caso brasileiro. A cidadania está baseada no princípio da igualdade, igualdade esta relativa tanto aos direitos quanto aos deveres. Para haver cidadania é preciso que haja autonomia do sistema jurídico, já que, com a interferência bloqueante do político e do econômico no direito, os que “podem” e “têm”, ou seja, os sobrecidadãos e os que não “podem” e não “têm”, ou seja, os subcidadãos, vão interferir no mundo jurídico, provocando uma desigualdade.
Logo, o que existe, na realidade brasileira, são: subcidadãos, que não “podem” politicamente, não “têm” economicamente e detêm os deveres jurídicos; e sobrecidadãos, que “podem” politicamente, “têm” economicamente e detêm os direitos jurídicos.

4. ALOPOIESE E “DIREITO PROCESSUAL PENAL PARALELO”

Dada a alopoiese no sistema jurídico estatal através das interferências políticas e econômicas, o que já foi explicado, surgem os subcidadãos. Estes, vendo-se integrados ao ordenamento jurídico-estatal apenas como devedores, criam um ordenamento, jurídico ou não, paralelo ao direito posto pelo Estado e que tem por finalidade regulamentar as condutas daquela realidade de onde ele surgiu.
Todos os ramos de um direito alopoiético, inclusive o Processual Penal, sofrem as mesmas conseqüências dessa alopoiese. Logo, surgem, em realidades específicas, normas processuais penais (sobrenormas penais) diferentes das estatais.
Esses ordenamentos são criados pelo subcidadão para regulamentar seu agir e seu vivenciar numa realidade na qual o ordenamento estatal não penetra e, quando penetra, trata-o de forma eminentemente passiva, ou seja, como detentor de obrigações. Esta é uma realidade empiricamente perceptível, mas que provoca uma antiga discussão já mencionada na introdução deste trabalho: seria esse “ordenamento social” jurídico ou não-jurídico? Os autores que defendem o “monismo jurídico” admitem a existência desses ordenamentos, mas negam seu caráter jurídico. Direito, para eles, portanto, tem um sentido estrito, sendo o conjunto de “normas jurídicas elaboradas pelo Estado, para reger a vida social”(17). Um outro grupo de autores, defensores do “pluralismo jurídico”, afirma o caráter jurídico desses ordenamentos. Emprega-se, neste caso, um conceito mais amplo da palavra “direito”, englobando normas ditadas pela sociedade, desde que regulamentadoras de condutas. É importante notarmos, contudo, que não é no mesmo sentido que se emprega a palavra “direito” num e noutro caso.
O “direito” paralelo decorrente da alopoiese no direito existe e repercute no Direito Processual Penal. Isto significa que, dado um crime numa realidade regulamentada por um ordenamento inoficial, o processo de aplicação da lei penal será ditada por esse ordenamento específico.

5. CASOS CONCRETOS

Na prática, existem infinitos casos que ilustram o que foi exposto acima, entre os quais o que foi registrado pela Folha de São Paulo do dia 20 de Julho de 1993. É um caso de linchamento ocorrido no dia 20 de Junho de 1993 na cidade de Ipú, Ceará, onde cerca de 6 mil pessoa mataram a pauladas, pedradas e picaretadas o agricultor Francisco de Assis Ramos de Araújo, acusado de ter assassinado a facadas Maria Paiva de Oliveira e sua filha Francisca Jocilene Paiva após tentar violentar sexualmente as duas.
A agrícola e pobre população de Ipú, revoltada com o delito penal e desacreditada no sistema jurídico-estatal, já que este não lhes assegura os direitos, criam uma espécie de “barreira” a ele, criando, a partir daí, suas próprias normas (inclusive normas processuais penais), adequadas a sua realidade política, econômica e moral. Daí poder-se falar em impenetrabilidade do Direito Estatal nesses “guetos” particulares.
O que indiscutivelmente ocorre, na prática, é um julgamento popular baseado nessas “normas sociais”. Elas suprem a morosidade do ordenamento jurídico oficial, estabelecem uma punição adequada à moral daquele grupo e asseguram a efetivação da pena estabelecida.
Diferentemente das sobrenormas estabelecidas no CPP, o grupo de subcidadãos (seis mil pessoas) decreta uma norma penal (pena de morte) e estabelece o meio para se alcançar a concretização da norma penal, que é a sobrenorma penal (picaretadas, pedradas e pauladas).
Uma outra ocorrência, também registrada pela Folha de São Paulo do dia 20 de Julho de 1993, mostra a morte, por linchamento a pauladas, do pedreiro Francisco Ribeiro de Sousa, no bairro do Ariri, em Belém. A vítima era acusada de estupro.
Inúmeros outros casos podem ser citados como exemplo desse “direito processual penal paralelo”, criado pelos subcidadãos brasileiros na tentativa de suprir as falhas do direito estatal alopoiético.

6. CONCLUSÃO

Está em curso um processo de legitimação, na qual os subcidadãos, descrentes na Polícia e no Estado, passam a fazer justiça com as próprias mãos, julgando, muitas vezes com crueldade, a pessoa que praticou ou o suposto praticante de crime que mobilize a opinião pública.
Os subcidadãos criam normas jurídicas, entre as quais sobrenormas penais, que correspondem ao que, na prática, é aplicado.
“Por que motivos e razões se transforma o pacato cidadão em matador, qual o incentivo que terá recebido o homem de bem, para de repente se transformar em besta-fera tresloucada pelo ódio aos marginais?”. É a pergunta que se faz no Diário de Pernambuco do dia 24 de julho de 1993.
Essa pergunta é pertinente, tendo em vista tudo o que foi exposto. Ela refere-se ao fenômeno da “normatização social”, originária a partir da alopoiese no sistema jurídico-estatal e criado por aqueles cujos direitos não estão assegurados por este falho sistema, o que corresponde, no caso brasileiro, à maioria da população.

7. BIBLIOGRAFIA

1. ARRUDA JR., Edmundo Lima de (org.): “Lições de direito alternativo”. In: Revista Acadêmica. São Paulo, 1991.
2. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1991.
3. MONTORO, Franco. Introdução à ciência do direito. 3 ed. São Paulo: Livr. Martins Ed, v.1, 1972.
4. NEVES, Marcelo. “Da autopoiese à alopoiese do direito”. In: Anuário do mestrado em direito. Recife, n.5, 1992.
5. NEVES, Marcelo. “Entre subintegração e sobreintegração: a cidadania inexistente”. In: Revista Acadêmica. Recife, a . 75, 1992.
6. NEVES, Marcelo. “Do pluralismo jurídico à miscelânea social: o problema da falta de identidade da(s) esfera(s) de juridicidade na modernidade periférica e suas implicações na América Latina”. In: Direito em debate. Ano V, n.5. jan./jun. 1995.
7. NORONHA, E. Magalhães. Curso de direito processual penal. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1992.

NATÁLIA ASSIS MELO é Advogada em Recife-PE e Professora Substituta de Legislação e Ética do Turismo e da Hotelaria na UFPE

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