Acusado de integrar esquema de repressão argentino pede liberdade e suspensão de extradição

O argentino Gustavo Francisco Bueno, acusado de integrar o sistema repressor durante o regime militar do país vizinho e preso para fins de extradição, impetrou no Supremo Tribunal Federal (STF) o Habeas Corpus (HC) 102344, pedindo sua imediata soltura. Pede, também, a suspensão do trâmite do pedido de Extradição (EXT) 1170, formulado pelo governo argentino, até o julgamento de mérito do HC ora impetrado. Ele está preso desde 27 de agosto do ano passado na Superintendência Regional da Polícia Federal do estado do Pará.

O HC foi protocolado no STF no último dia 11 e encaminhado à presidência da Suprema Corte, em razão das férias forenses, que se encerram no próximo dia 31. No processo, a Defensoria Pública da União (DPU), que atua em favor de Gustavo Bueno, questiona decisão da relatora do pedido de Extradição 1170, ministra Ellen Gracie, que decretou a prisão do argentino em 3 de setembro de 2009.

Origem

O pedido de extradição tem, em sua origem, um processo que corre na Justiça em Rosário contra agentes do governo que participaram do sistema repressor militar naquela cidade. Contra Bueno pesa a acusação de ter participado pessoalmente do sistema repressor e de ser responsável pelo desaparecimento e morte de Roberto “Tito” Messiez.

Ele seria, também, uma testemunha chave no processo, pois, nos anos 80, deu um depoimento ao Centro de Estudos Legais e Sociais argentino, em que descreveu métodos utilizados e nomes de pessoas que atuaram na Quinta Funes, uma propriedade rural onde, sob o comando do general Leopoldo Galtieri (que também exerceu a presidência da Argentina), foi montado um centro de interrogatórios e torturas com objetivo de aniquilar, física e moralmente, o grupo guerrilheiro radical Montoneros.

Alegações

A DPU alega que Bueno reside no Brasil desde 15 de junho de 1989 e é portador de Cédula de Identidade de Estrangeiro Permanente emitida pelo governo brasileiro e de carteira de reconhecimento do status de refugiado do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). Nessa condição, alega, jamais poderia ser preso.

A DPU lembra que o Brasil é signatário da convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, concluída em Genebra em julho de 1951 e incorporado à legislação brasileira por meio do Decreto nº 50.215/1961. Observa ainda que, conforme dispõe o artigo 33 da Lei nº 9.474/97 (que define os mecanismos para implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951), “o reconhecimento da condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio”.

Refugiado

Lembra, a propósito, que Gustavo Francisco Bueno deixou a Argentina em 1979, ainda durante o período militar, depois de sofrer dois atentados contra a sua vida e a de sua família. Passando pelo Brasil, rumou para a Europa sob proteção da ONU, lá vivendo como refugiado na Dinamarca e Suíça. Retornou à Argentina em 1984, após a ditadura militar, mas voltou a sofrer atentados e a receber ameaças. Por isso, decidiu abandonar definitivamente sua casa em Rosário, vindo a ingressar no Brasil sob proteção da ACNUR, em novembro de 1987, e aqui vive há mais de 20 anos, com autorização brasileira de permanência, na condição de refugiado da ONU.

Conforme a DPU, se um determinado Estado tem interesse na extradição de um refugiado reconhecido pela ACNUR, deve, antes de mais nada, postular naquele órgão a desconsideração desse status e, só após obtê-la, requerer a extradição. Mas isso não ocorreu, no presente caso.

Portanto, segundo ela, “o pedido de extradição deve ser extinto sem julgamento do mérito, fazendo-se cessar imediatamente a coação ilegal à liberdade de locomoção do paciente”.

Punibilidade

A DPU invoca, também, o artigo 3º, alínea “c”, do Tratado de Extradição Brasil-Argentina, segundo o qual não será concedida a extradição, quando a ação ou a pena já estiver prescrita segundo a lei do Estado requerente ou requerido. O mesmo, segundo ela, está previsto no artigo 77, inciso VI, da Lei 6.815 (Estatuto do Estrangeiro).

No caso, observa, o suposto crime sob investigação, que teria sido praticado em 22 de agosto de 1977, é punido com pena privativa de liberdade máxima de cinco anos. De acordo com o Código Penal Brasileiro (CPB), a prescrição punitiva ocorre em 12 anos para crimes punidos com pena máxima não superior a oito anos. Portanto, o crime já estaria prescrito.

Conforme a DPU, o governo argentino alega que o delito imputado a Bueno é de caráter permanente. Entretanto, sustenta, “não há, nos autos da extradição, qualquer documento traduzido para o vernáculo que sustente o argumento de que a vítima ainda se encontra privada de sua liberdade desde 22 de agosto de 1977”. Assim, segundo ela, estaria havendo coação ilegal, ante a falta de justa causa. Por outro lado, como Bueno deixou a Argentina em 1979, não seria possível que ainda perdure o crime continuado.

A DPU contesta, também, o argumento da imprescritibilidade do crime atribuído a Bueno, assim como o de que se trataria de crime de lesa humanidade. Alega que a imprescritibilidade dos crimes de lesa humanidade na legislação argentina decorre da adesão daquele país à Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa Humanidade de 1968, ocorrida em 16 de agosto de 2003. Entretanto, sustenta, esta data é posterior ao fato imputado a Bueno (1977). Por conseguinte, a lei não poderia ser aplicada retroativamente para prejudicá-lo, tendo em vista a irretroatividade penal, consagrada no artigo 18 da Constituição da República Argentina, de 1994.

Por fim, sustenta que a prescrição só alcançou a pretensão punitiva do delito imputado a Bueno “por desleixo do próprio Estado requerente”. Lembra ela que a redemocratização da Argentina ocorreu em 1983. Desde então, observa, já se passaram mais de 20 anos de governos eleitos democraticamente, mas só agora se formulou pedido de extradição de Bueno, que não mudou de nome nem se escondeu das autoridades argentinas, até porque possuiu paradeiro conhecido das autoridades nacionais e internacionais ligadas ao ACNR.

Pedido

Diante desses argumentos, a Defensoria Pública da União pede, em caráter liminar, a colocação de Bueno em liberdade ou, alternativamente, sua manutenção em prisão domiciliar, mesmo porque ele precisa de cuidados médicos que a prisão da Polícia Federal não tem condições de oferecer. Pede, finalmente, a suspensão do pedido de extradição até julgamento de mérito do HC.

No mérito, pede o arquivamento do processo de extradição, ante a manifesta impossibilidade da entrega de Bueno e devido à caracterização da prescrição da pretensão punitiva, tanto pela legislação argentina quanto pela brasilleira.

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