Ressarcimento integral do dano e prescrição nas ações de improbidade

Autores: Carlos Ari Sundfeld e Thiago Luís Sombra (*)

 

O Direito Administrativo Sancionador tem atravessado um período de dúvidas, turbulências e indefinições. O que pode tornar mais racional, mais justo e mais eficaz o controle da Administração? Devemos aumentar o consensualismo ou aumentar o número de processos judiciais e administrativos? Essas questões estão por trás dos debates sobre prescrição e sobre leniência, que as circunstâncias pautaram para este mesmo momento da história brasileira.

Em um dos seus capítulos, o STF reconheceu a repercussão geral do Recurso Extraordinário 852.475/SP (relator ministro Teori Zavascki), cuja discussão é sobre a imprescritibilidade ou não da pretensão de ressarcimento dos danos causados à Administração pela prática de atos de improbidade administrativa. O momento é interessante para a retomada do tema pelo Plenário do STF, considerada a perda da eficácia da Medida Provisória da Leniência e o desdobramento da fase criminal da operação “lava jato” em várias ações de improbidade administrativa propostas pelo MPF e pela AGU. As consequências deste julgamento serão certamente capazes de influenciar de forma significativa nas atividades de controle, investigação e persecução de atos de corrupção no país.

A configuração da prescrição nas ações de ressarcimento tem despertado expressivos embates na doutrina[1] e jurisprudência[2]. Parte do problema foi resolvido recentemente pelo STF. Ao julgar outra repercussão geral, no RE 669.069, relator ministro Teori Zavascki, a Corte promoveu um recorte no tema ao apontar a distinção entre as ações de ressarcimento decorrentes de ilícito civil contra a Administração Pública, ações que considerou prescritíveis, e aquelas oriundas de atos de improbidade administrativa, cuja prescritibilidade não foi decidida na ocasião. Segundo o ministro Teori, para delimitar o que seriam ilícitos civis se deveria utilizar o método de exclusão, ou seja, “não se consideram ilícitos civis, de um modo geral, os que decorrem de infrações ao direito público, como os de natureza penal, os decorrentes de atos de improbidade e assim por diante”[3]. Com isso, o primeiro passo para a estabilização do regime jurídico da prescrição nas ações de ressarcimento por atos de improbidade administrativa foi dado: a separação dos danos causados por ilícito civil à Administração Pública.

O segundo passo envolve a definição do alcance da prescrição das sanções dos incisos I, II e III do art. 23 da Lei de Improbidade Administrativa, em relação aos agentes públicos. À exceção da hipótese de prestação de contas, o regime jurídico da prescrição nas ações de improbidade submete-se à modalidade de relação jurídica existente entre o agente público e a Administração Pública. A depender da existência de um vínculo temporário, como a função de confiança e o mandato eletivo, ou da constância de regime estatutário/celetista, a prescrição será maior ou menor, terá termos iniciais e causas de interrupção distintos[4].

Se temporário o vínculo, o prazo prescricional será de 5 anos contados da data do término do mandato/reeleição, função de confiança ou cargo em comissão, conforme inciso I do art. 23 da Lei de Improbidade[5]. Se duradouro, em razão da investidura em cargo ou emprego público, o prazo prescricional será definido em lei específica para faltas disciplinares puníveis com demissão a bem do serviço público. Se exercer cumulativamente função de confiança e emprego/cargo público, também se aplica o prazo prescricional do inciso II do art. 23[6]. Aos particulares, pessoas físicas ou jurídicas, réus na ação de improbidade, se aplica a mesma sistemática de contagem do prazo e termo inicial da prescrição atribuída aos agentes públicos[7]. No caso dos agentes federais, o regime disciplinar é definido na Lei 8.112/90, que estabelece o prazo de cinco anos de prescrição (art. 142, I), contados da “data do conhecimento do fato pela autoridade competente para instaurar o processo administrativo disciplinar” (art. 142, §1.º)[8]. Se o ato de improbidade também for caracterizado como crime e uma investigação criminal estiver em curso (art. 142, §2.º), o prazo prescricional será regido pelo Código Penal, em específico pelo prazo de prescrição vinculado à pena em concreto aplicada[9]. O lapso do prazo prescricional ainda poderá depender de causas de interrupção decorrentes da instauração da sindicância e processo disciplinar, cujo prazo voltará a correr após 140 dias (arts. 152 e 167 da 8.112/90)[10].

Dentre as sanções mencionadas no §4.º do art. 37 da CF e no art. 12 da Lei de Improbidade, a jurisprudência tem entendido que há sim prescrição quanto às sanções de (i) perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, (ii) perda da função pública, (iii) suspensão dos direitos políticos, (iv) pagamento de multa civil, (v) proibição de contratar com o Poder Público e (vi) de receber incentivos fiscais ou creditícios. Apenas a prescrição do ressarcimento integral dos danos, prevista no §5.º do art. 37 da CF, tem gerado posicionamentos variados. Por isso, o julgamento da repercussão geral no RE 852.475/SP terá impacto.

Quanto aos danos morais coletivos, objeto de pedidos constantes em ações de improbidade da Operação Lava Jato[11], decisões do STJ têm admitido a sua cominação com base na Lei da Ação Civil Pública[12], embora não previstos expressamente dentre as sanções da Lei de Improbidade.[13]Subsistem, porém, divergências em torno da prescritibilidade da pretensão em virtude da violação a interesses coletivos e difusos. A corrente em defesa da prescritibilidade sustenta que “a natureza da pretensão de reparação por danos morais coletivos, em se tratando de ato de improbidade administrativa, não possui o caráter ressarcitório patrimonial como se vislumbra no ressarcimento integral do dano”[14]. Esta vertente recorre à analogia para aplicar o prazo de prescrição de 5 anos da Lei da Ação Popular à ação civil pública[15]. Outra corrente, no entanto, sustenta a imprescritibilidade dos danos morais coletivos em virtude de envolver lesão a direitos difusos e coletivos[16].

Com o peso da prescrição longínqua, a eventual responsabilidade solidária[17] e os inúmeros pormenores a serem observados para o cálculo do prazo, ter a possibilidade de negociar a aplicação das sanções previstas na Lei de Improbidade torna-se algo vital. E é exatamente neste ponto que a controvérsia sobre a prescrição estabelece um diálogo com a MP da Leniência, bem como com os acordos de leniência e de colaboração premiada. Eis aqui o terceiro passo a ser trilhado.

A despeito de não ter sido convertida em lei, a polêmica MP da Leniência havia revogado o §1.º do art. 17 da Lei de Improbidade, o que viabilizou a realização de transações, acordos e conciliações, além de ter inserido os parágrafos 11 e 12 no art. 16 da Lei Anticorrupção com o intuito de impedir a continuidade ou o ajuizamento de ações de improbidade quando celebrados acordos de leniência.

Com a perda da eficácia da MP da Leniência seus efeitos intertemporais ainda demandarão profundas reflexões. O §3.º do art. 62 da CF impõe a ineficácia desde a edição e atribui ao Congresso Nacional o dever de editar decreto legislativo para disciplinar as relações jurídicas dela decorrentes. Mas quais as consequências da perda da eficácia da MP para os acordos de leniência e as delações pertinentes a atos de improbidade administrativa celebrados? Serão considerados atos jurídicos perfeitos? Lembre-se que anteriormente à EC 32 o STF já se manifestara no sentido de que a não conversão em lei ou a rejeição de medida provisória “opera efeitos extintivos radicais e genéricos”[18]. Isto fará com que o MP, para evitar o transcurso do prazo de prescrição, retome as ações de improbidade?[19] As respostas a estas perguntas deverão ser conhecidas em breve[20]. Parte delas foram recentemente analisadas em decisões nas ações de improbidade propostas pelo MPF no âmbito da Operação Lava Jato[21].

Mas a perda da eficácia da MP da Leniência repercutirá pouco sobre o debate da prescrição do ressarcimento do dano, uma vez que a Lei Anticorrupção (art. 6.º, §3.º) e a Lei de Improbidade (art. 5.º) o impõem em qualquer circunstância[22]. De fato, o STF terá de dirimir em definitivo a controvérsia.

Duas correntes no STJ sustentavam ser prescritível o ressarcimento integral. A primeira delas entendia que, “por carecer de regulamentação a segunda parte do § 5º do art. 37 da CF, no que diz respeito às respectivas ações de ressarcimento, aplicável, in casu, a prescrição vintenária prescrita no art. 177 do CC/1916 vigente à época do fato”[23]. A segunda corrente também se atinha, tal como em relação aos danos morais coletivos, à ausência de prazo prescricional definido para a propositura de ação civil pública. Por isso, ela se valia das alterações promovidas no art. 1.º-C da Lei 9.494/97 para aplicar por analogia o prazo de prescrição quinquenal da Lei de Ação Popular[24]. Ainda assim, a posição majoritária do STJ acompanhava a do STF no sentido da imprescritibilidade da sanção de ressarcimento integral dos danos ao erário[25].

Resta saber se o STF confirmará a sua jurisprudência no julgamento da repercussão geral no RE 852.475/SP ou se resgatará a tese da prescritibilidade. A decisão não será fácil. E isso não apenas pela ambiguidade das normas: também pelos dilemas de política pública que estão por trás do debate. A prescrição muitas vezes frustra o controle, o que é ruim. Mas a falta de prescrição gera risco permanente de agentes públicos e particulares serem chamados a juízo, o que pode fazer do campo público um lugar hostil demais para bons profissionais e empresas. De outro lado, se os recursos do controle sempre serão finitos, como ele vai ao mesmo tempo cuidar do presente e remexer infinitamente o passado? Empilhar cada vez mais processos, para que se arrastem na Justiça atrapalhando uns aos outros, não parece estratégia inteligente para aumentar o ressarcimento de danos ao estado. Daí as dúvidas do presente: mais ou menos prescrição, mais ou menos leniência?

 

 

 

Autores: Carlos Ari Sundfeld é advogado e professor de Direito Administrativo da Fundação Getúlio Vargas.

Thiago Luís Sombra  é procurador do estado de São Paulo, mestre em Direito Civil pela PUC-SP e pela Università degli Studi di Camerino (Itália).


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