EUA não pode se autoproclamar senhor do mundo na Internet

Nehemias Gueiros Júnior*

Recebi uma simpática ligação da Cora Ronai com uma consulta de última hora sobre o velho problema dos downloads de música na Internet e do assédio jurídico que diversos provedores vêm sofrendo, diretamente das empresas que se julgam lesadas. Entendo que cabem algumas considerações importantes a esse respeito, pois vários princípios fundamentais de Direito estão sendo esquecidos nesse particular e ainda vislumbro uma atitude um tanto quanto imperial por parte do país criador da Internet.

Esse assédio, originado lá em território americano através das divisões empresariais competentes para o combate à pirataria que existem em todas as grandes corporações modernas, toma como fundamento a legislação especial americana denominada Digital Millennium Copyright Act (DMCA), uma peça de lei promulgada e assinada pelo ex-presidente Bill Clinton em 1999, seu penúltimo ano de mandato.

Com intenções louváveis e bastante promissoras – a lei tinha por objetivo precípuo realizar um upgrade nas leis até então existentes nos EUA para incluir [e regular] os meios digitais de armazenamento de informações, a Internet e todos os seus desdobramentos legais ao nível de comércio e usuários – esse novo diploma legal acabou por se tornar uma espada arrojada, disposta a talhar fronteiras e intervir em sistemas legislativos alienígenas, como se a Constituição e as leis dos Estados Unidos fossem a última fronteira consolidada do conhecimento jurídico mundial.

Não se pode negar que sob a égide do DCMA passos importantes foram conseguidos na direção de um maior controle e mais eficiente punição da pirataria, a evolução tecnológica se fez sentir com mais intensidade e a comunidade como um todo se beneficiou de uma maior divulgação – e assimilação – das questões do mundo digital. Sem dúvida. O que não podemos admitir em hipótese nenhuma, nem mesmo sob a bandeira camuflada da globalização, é que determinada nação, hoje sabidamente possuidora de hegemonia econômica, cultural e militar em todo o planeta, queira ainda estender além de todas as terras e mares, seu sistema legislativo e seu ordenamento jurídico, tentando emular a inexistência de limites geográficos na rede de computadores Internet.

Ora, é justamente a pulverização das fronteiras que resulta da Grande Rede que nos leva a todos, juristas, estudiosos e especialistas a continuamente buscar soluções e alternativas para abrigar um consenso supranacional que reúna todas as modalidades de tráfego da rede, sejam de pesquisa, comerciais ou outros, sob um único sistema capaz de regulamentar, desenvolver e permitir a utilização pacífica de todos os seus quase infinitos recursos. Desta sorte, não podem os Estados Unidos se autoproclamarem senhores do mundo na Internet – o que já fazem regularmente em várias outras áreas – e decretarem que suas leis têm eficácia e força vinculante fora de suas fronteiras territoriais.

Não é novidade que os tribunais estadunidenses “condenam” países inteiros a pagar indenizações milionárias, ignoram solenemente decisões de cortes e tribunais especialmente criados para um convívio mundial mais harmônico, tais como Haia, a WIPO em Genebra, o GATT, a OMC etc., e até mesmo lançam mão de sua insuperável força militar em outros países para cumprir mandados de prisão americanos, como no caso do Gen. Noriega no Panamá e recentemente no Afeganistão. Agora, o xerifado chegou à Internet.

É preciso que se esclareça que o articulista não defende a anarquia nem a ausência de controle na Web, mas, sim, esforços conjuntos da comunidade internacional para solucionar as crescentes e sérias questões de fraude, pirataria e violação de direitos que crescem exponencialmente no mundo digital como o excelente painel da Ordem dos Advogados dos Estados Unidos denominado Global Cyberspace Jurisdiction Project, uma iniciativa que visa a unir os países interessados em conhecer e controlar o seu tráfego e comércio digitais.

Uma notificação em inglês, enviada dos Estados Unidos a um provedor no Brasil, sem sua devida tradução juramentada ou qualquer outro preceito de cumprimento das leis e da Constituição em vigor no Brasil, ainda que via Embratel ou outro órgão de comunicação nacional, não tem o condão de gerar efeitos oficiais ulteriores, nem deveria ser objeto de preocupação para o(s) remetente(s).

Causa apenas, como era de se esperar da pressão vinda de Tio Sam, temor e confusão no mercado. Tudo indica que se trata de revanchismo dos controladores dos direitos autorais diante da derrota do download gratuito celebrizado pela era Napster nos tribunais norte-americanos

Nehemias Gueiros Júnior é advogado especializado em Direito Autoral e professor da Fundação Getúlio Vargas

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